Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
As Pepitas-de-Ouro de Almada
- Partilhar 27/02/2022
O topónimo
ALMADA deriva do Árabe al-ma’adana que
significava “a mina”. Em tempos do domínio
árabe-berbere, houve exploração de ouro na
zona da Adiça, praia de extenso areal a sul
da Fonte da Telha. Actualmente conhecido
como Praia da NATO.
A mina
esgotou-se. Mas Almada conserva as suas
pepitas de ouro...
Cacilhas
6 da tarde, fim de Agosto – Cacilhas
está em obras.
Parece que finalmente vai
nascer uma zona de descanso e deleite junto
ao Rio... Será?... Será desta?!
Fim de
Verão. Turistas de dentro, e turistas de
fora.
Gente que sai para Lisboa. Gente
que mora na Margem Sul e agora regressa a
casa. Gente que aqui desembarca para,
simplesmente, ir jantar à Costa... – ou
simplesmente, para aqui vir jantar junto ao
Rio!
Abanquei numa esplanadazinha
abrigada, à base da ladeira Carvalho
Freirinha.
– “Carvalho Freirinha, um
herói almadense da Batalha da Cova da
Piedade”, travada em 1833, durante a Guerra
Civil (1). Uma batalha aliás decisiva, que
deu a derrota final às forças miguelistas.
...a Guerra Civil, no século XIX...
Também se lhe chama “as Lutas Liberais” ...
...Há coisas para mim mais difíceis de
compreender que as “contas” ... As “contas”,
os “problemas” ... Assombraram-me a
infância; garantiram-me o eterno desprezo da
família... Se fosse hoje, alguém teria
alvitrado algo como “A Menina é disléxica,
mais, além de Dislexia também é sofre de
“Discalculia” ... Mas ao que parece, nada
disso tinha ainda sido identificado. E
Dislexia mais Discalculia valeram-me a fama,
mil vezes difundida e repetida, de burra,
burrinha, estúpida...
...A Dislexia vem
acompanhada de “compreensão lenta” ...
Parece que os estímulos captados pelo
cérebro, em vez de atingirem de imediato o
alvo que os tornará inteligíveis, muito pelo
contrário, percorrem longos percursos até
atingirem o cerne da interpretação...
...Talvez devido às minhas
super-extraordinárias capacidades de
compreensão lenta, há coisas que eu nunca
percebi... Nem certamente hei-de vir a
perceber. A Guerra Civil, no século XIX,
aqui, entre nós, na nossa casa... A Guerra
Civil de Espanha, cerca de um século depois
da nossa... A Revolução Francesa, a
Revolução Russa... porquê? ...Por que razão
será preciso tanto sofrimento, tanto
estertor, para que se possa dar um passo em
frente no caminho de uma vida social mais
justa, mais igualitária, com uma
distribuição de possibilidades mais
equitativa para todo o mundo? E porque é que
uma vez vitoriosa, a luta libertadora se
converte em nova opressão?... Porque é que
“Tudo deve mudar para que tudo fique como
está”?
...Tanta reflexão, apenas porque
vim a Cacilhas neste fim de tarde de fim de
Verão... Felizmente, algo se interpõe, de
momento, entre as minhas reflexões e o mundo
que me cerca – Um cartaz anunciando um
concerto de André Rieu.
Buldózeres e
escavadoras. Já estão em descanso – já hoje
trabalharam muito. Autocarros que chegam,
autocarros que saem.
Estou aqui nesta
esplanada abrigada do vento. Aquilo que se
pode designar como “café de bairro”.
Clientes atrás de mim, falam alto. Cantam.
Cabo-verdianos cantam em crioulo, doces
melodias dolentes. Que bem que se está aqui!
Toda a gente se conhece.
No meio do
bulício, gente que chega, que sai dos
Cacilheiros, gente que parte – e aqui, neste
canto de um paraíso não identificado, toda a
minha gente se conhece. Em volta de umas
b’jolas, tagarelam e cantam.
Chega
mais um companheiro que já cantou “com um
grupo senegalês em Sesimbra e Porto Côvo”!
Agora, todos falam um franco-inglesu
meio tuga, meio crioulo. Párias em busca de
um mundo, de um sítio onde ganhar a vida...
“É preciso dar no duro...”
– Sim, é
preciso dar no duro.
É preciso ser bem
acolhido!
Adoro Cacilhas, uma das
muitas “pepitas de ouro” de Almada. Este ir
e chegar, este vai e vem, este duro ter e
não-ter e não se conformar, este correr
mundo em busca de um lugar...
O azul do
céu começa a esmorecer... A aragem da tarde
começa a arrefecer... É fim de Agosto...
Cacilhas-pepita-de-ouro de toda a gente, de
todo o mundo.
Um cão senta-se ao lado da
minha mesa. Mas é conhecido de um dos
clientes, e ambos regressam a casa, mochila
ao ombro...
(1)
Batalha da Cova da Piedade
*
“Tudo deve mudar para que tudo fique
como está” – A desiludida frase final do
romance de Tomasi de Lampedusa, “O
Leopardo”.