Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Um Natal diferente

Natal nos trópicos! Um sonho para os europeus. Tropical New Year’s Eve. Banho de mar em pleno mês de Dezembro. Como seriam os portugueses sem o seu imaginário povoado dos mitos cor-de-rosa das praias de além-mar e areal sem fim? Oh, estas ondas de suave vai-e-vem das terras de Vera-Cruz.
Sento-me na praia. Alheia ao afogo com que naturais e turistas se gozam do sol e do prazer de mergulhar nas salsas águas dos mares do sul.
Natais da minha infância. Igualmente decorridos sob a doçura de um clima assim ameno. Não exactamente a mesma coisa, bem entendido, há diferenças. Os natais no Norte de Portugal serão autênticos natais de postal ilustrado, com frio e neve, e lareiras, luvas, cachecóis. Pantufas. Mas no Sul, é muito diferente, com o seu clima de excepção.
Antigamente, os portugueses não se metiam ao mar, em dezembro. Agora é fácil, fazem surf, body-board, têm os fatos isolantes. Mas na época que neste preciso instante está a acampar na minha mente, nada disso estava na moda, aliás, pergunto-me se alguma coisa desse tipo existiria. Apenas os nórdicos, com diferente sensibilidade ao frio, se metiam ao mar, no inverno.
Aqui, na Bahia de Todos os Santos, estou mesmo dentro de um natal de verão! Mas a imagem que agora me absorve é a Rua de St.º António.
A câmara municipal de Faro tinha brindado a cidade com uma inovação de peso. Tinha montado iluminações festivas na rua principal, e havia pequenas lâmpadas coloridas suspensas em arcos metálicos, montados sobre a rua! Nunca antes tinha acontecido nada assim! As pequenas luzes suspensas brilhavam furiosamente, acompanhadas de canções de natal, em inglês! Gravações indefinidamente recomeçadas ao longo da noite! As melodias amplificadas pelos largos altifalantes de brilho bronzeado, campânulas cor de chumbo, pendurados nas sacadas das casas, com seu reflexo de pequeninas luzes como minúsculas estrelas! Foi aí que fiz o meu primeiro contacto com as famosíssimas gingle bells e silent night. E havia quem soubesse contar a história do nascimento dessas canções. Gente que sabia tanto! Como a minha família era culta.
Temperatura primaveril. Noite de inverno, límpida, como só no Algarve! A cidade em peso veio para a rua passear. Foi uma consoada de modernização, de progresso, de entusiasmo! Quem nessa noite teria ido à missa-do-galo? Qual o quê? Famílias inteiras, dos avós aos netos, passeavam Rua de St.º António acima, Rua de St.º António abaixo, gingle bells e mais gingle bells, pela cálida noite adentro.
Não era com as canções, tão repetidas que até já cansava, nem com as luzinhas ridículas, penduradas sobre a rua em arquinhos de marcha de S. João, nem com o passeio rua abaixo/rua acima já tão monótono que dava a volta ao estômago, que me vibrava o coração. O meu coração vibrava porque ele estava ali. Ainda agora, aqui mesmo, à beira do Atlântico Sul, recordando essa noite mágica, sinto uma estranha e indizível comoção. Mas já não é por ele. Não; que a vida passou. É por mim, a jovem que eu fui.
Nessa época eu não teria mais de quinze anos; ele era um pouco mais velho. – Com seu jeito de homenzinho, todo assumido, a pera crescida, o sorriso auto-satisfeito. Aquele andar seguro.
...Tanta gente ao nosso lado. Porém, era ele, e só ele, quem eu via sobressair do grupo. Monopolizando a atenção das outras jovens que lhe puxavam pela conversa, as mãos nos bolsos das calças, o peito inchando e atirando a cabeça para trás conforme ria; mas sorrindo no olhar, olhar que sempre que podia me dirigia a mim, só a mim. Pelo menos, era o que eu imaginava... Ainda hoje, ele está ali a sorrir para mim, aquele sorriso que me ficou eterno...
 Dir-se-ia que toda a sua performance perante o grupo se destinava apenas a seduzir a deferência com que eu o contemplava. Ainda hoje estou para saber – teria ele tido consciência do encantamento com que eu o via? Ou seria apenas o efeito daquele céu tão límpido e cintilante na noite escura, daquela temperatura maviosa, juvenil, em pleno inverno?
Dentro de dias, aqui na Bahia, vai ser a passagem de ano. O povo virá à praia celebrar Yemanjá, a deusa dos mares e das profundezas das águas, mãe da fertilidade e da fecundidade, mãe maternal, sempre pronta a amamentar as crianças sob o seu domínio, mãe delicada. Mas de espada em punho para defender os seus filhos. Porque não fui eu afilhada de Yemanjá? Porque nunca lhe lancei flores ao mar? Fala-se tanto em deuses, deuses diversos... Por que nunca ao pé de mim se falou em Yemanjá? Talvez nunca me tivesse ficado este vazio na mácula do coração, esta sensação insatisfeita que me faz sentir sempre a falta premente de um algo indefinido que nunca se encontra.
O casal que me acompanha sai da água, pingando dos pés à cabeça – “Porque não vens nadar? Está boa!” – “Não, não, está fria. É muito fria para mim”.
Dentro de dias, vai ser a passagem de ano. O povo vai descer à praia e vai passar a noite sambando para ajudar o ano novo a romper na alvorada. E lançar ao mar pétalas e corolas de flores em honra de Yemanjá, a deusa que amamentou seus filhos até os seios lhe crescerem desmesurados. Yemanjá que evadindo-se da humilhação que lhe causou seu segundo marido, abalou sem olhar para trás, em direcção a ocidente. Também eu me tenho esforçado por me evadir, tanto da minha própria memória, como por vezes da própria realidade... E certamente me tenho orientado para ocidente, o lado do ocaso, da Sabedoria. O lado onde o sol se põe. Cada dia que passa, é mais um passo para ocidente.
Yemanjá transformou-se em rio. E com a ajuda de Xangô, seu filho, venceu Okêrê, seu marido, a montanha. Dirigindo-se sempre para ocidente, chegou ao mar, ao oceano. Tornou-se imortal.