
Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Um Natal diferente
- Partilhar 09/12/2021

Natal nos trópicos! Um
sonho para os europeus. Tropical New Year’s Eve.
Banho de mar em pleno mês de Dezembro. Como
seriam os portugueses sem o seu imaginário
povoado dos mitos cor-de-rosa das praias de
além-mar e areal sem fim? Oh, estas ondas
de suave vai-e-vem das terras de Vera-Cruz.
Sento-me na praia. Alheia ao afogo com que naturais
e turistas se gozam do sol e do prazer de mergulhar
nas salsas águas dos mares do sul.
Natais da
minha infância. Igualmente decorridos sob a doçura
de um clima assim ameno. Não exactamente a mesma
coisa, bem entendido, há diferenças. Os natais no
Norte de Portugal serão autênticos natais de postal
ilustrado, com frio e neve, e lareiras, luvas,
cachecóis. Pantufas. Mas no Sul, é muito diferente,
com o seu clima de excepção.
Antigamente, os
portugueses não se metiam ao mar, em dezembro. Agora
é fácil, fazem surf, body-board, têm
os fatos isolantes. Mas na época que neste preciso
instante está a acampar na minha mente, nada disso
estava na moda, aliás, pergunto-me se alguma coisa
desse tipo existiria. Apenas os nórdicos, com
diferente sensibilidade ao frio, se metiam ao mar,
no inverno.
Aqui, na Bahia de Todos os Santos,
estou mesmo dentro de um natal de verão! Mas a
imagem que agora me absorve é a Rua de St.º António.
A câmara municipal de Faro tinha brindado a
cidade com uma inovação de peso. Tinha montado
iluminações festivas na rua principal, e havia
pequenas lâmpadas coloridas suspensas em arcos
metálicos, montados sobre a rua! Nunca antes tinha
acontecido nada assim! As pequenas luzes suspensas
brilhavam furiosamente, acompanhadas de canções de
natal, em inglês! Gravações indefinidamente
recomeçadas ao longo da noite! As melodias
amplificadas pelos largos altifalantes de brilho
bronzeado, campânulas cor de chumbo, pendurados nas
sacadas das casas, com seu reflexo de pequeninas
luzes como minúsculas estrelas! Foi aí que fiz o meu
primeiro contacto com as famosíssimas gingle
bells e silent night. E havia quem
soubesse contar a história do nascimento dessas
canções. Gente que sabia tanto! Como a minha família
era culta.
Temperatura primaveril. Noite de
inverno, límpida, como só no Algarve! A cidade em
peso veio para a rua passear. Foi uma consoada de
modernização, de progresso, de entusiasmo! Quem
nessa noite teria ido à missa-do-galo? Qual o quê?
Famílias inteiras, dos avós aos netos, passeavam Rua
de St.º António acima, Rua de St.º António abaixo,
gingle bells e mais gingle bells, pela
cálida noite adentro.
Não era com as canções, tão
repetidas que até já cansava, nem com as luzinhas
ridículas, penduradas sobre a rua em arquinhos de
marcha de S. João, nem com o passeio rua abaixo/rua
acima já tão monótono que dava a volta ao estômago,
que me vibrava o coração. O meu coração vibrava
porque ele estava ali. Ainda agora, aqui
mesmo, à beira do Atlântico Sul, recordando essa
noite mágica, sinto uma estranha e indizível
comoção. Mas já não é por ele. Não; que a
vida passou. É por mim, a jovem que eu fui.
Nessa época eu não teria mais de quinze anos; ele
era um pouco mais velho. – Com seu jeito de
homenzinho, todo assumido, a pera crescida, o
sorriso auto-satisfeito. Aquele andar seguro.
...Tanta gente ao nosso lado. Porém, era ele,
e só ele, quem eu via sobressair do grupo.
Monopolizando a atenção das outras jovens que lhe
puxavam pela conversa, as mãos nos bolsos das
calças, o peito inchando e atirando a cabeça para
trás conforme ria; mas sorrindo no olhar, olhar que
sempre que podia me dirigia a mim, só a mim. Pelo
menos, era o que eu imaginava... Ainda hoje, ele
está ali a sorrir para mim, aquele sorriso que me
ficou eterno...
Dir-se-ia que toda a sua
performance perante o grupo se destinava apenas a
seduzir a deferência com que eu o contemplava. Ainda
hoje estou para saber – teria ele tido
consciência do encantamento com que eu o via? Ou
seria apenas o efeito daquele céu tão límpido e
cintilante na noite escura, daquela temperatura
maviosa, juvenil, em pleno inverno?
Dentro de
dias, aqui na Bahia, vai ser a passagem de ano. O
povo virá à praia celebrar Yemanjá, a deusa dos
mares e das profundezas das águas, mãe da
fertilidade e da fecundidade, mãe maternal, sempre
pronta a amamentar as crianças sob o seu domínio,
mãe delicada. Mas de espada em punho para defender
os seus filhos. Porque não fui eu afilhada de
Yemanjá? Porque nunca lhe lancei flores ao mar?
Fala-se tanto em deuses, deuses diversos... Por que
nunca ao pé de mim se falou em Yemanjá? Talvez nunca
me tivesse ficado este vazio na mácula do coração,
esta sensação insatisfeita que me faz sentir sempre
a falta premente de um algo indefinido que nunca se
encontra.
O casal que me acompanha sai da água,
pingando dos pés à cabeça – “Porque não vens
nadar? Está boa!” – “Não, não, está fria. É
muito fria para mim”.
Dentro de dias, vai ser a passagem de ano. O povo vai descer à praia e
vai passar a noite sambando para ajudar o ano novo a
romper na alvorada. E lançar ao mar pétalas e
corolas de flores em honra de Yemanjá, a deusa que
amamentou seus filhos até os seios lhe crescerem
desmesurados. Yemanjá que evadindo-se da humilhação
que lhe causou seu segundo marido, abalou sem olhar
para trás, em direcção a ocidente. Também eu me
tenho esforçado por me evadir, tanto da minha
própria memória, como por vezes da própria
realidade... E certamente me tenho orientado para
ocidente, o lado do ocaso, da Sabedoria. O lado onde
o sol se põe. Cada dia que passa, é mais um passo
para ocidente.
Yemanjá transformou-se em rio. E
com a ajuda de Xangô, seu filho, venceu Okêrê, seu
marido, a montanha. Dirigindo-se sempre para
ocidente, chegou ao mar, ao oceano. Tornou-se
imortal.
- n.31 • dezembro 2021