Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Um brinde, pela manhã
- Partilhar 30/10/2022
Como sempre, ao
acordar, após o pequeno-almoço, dirigi-me à
varanda e abri as janelas da marquise. A
manhã estava fresca, luminosa mas fresca...
Princípios de outono... Cheguei-me ao
parapeito, e como sempre, admirei a vista
maravilhosa que se espraiava na minha
frente... O amplo Largo, sem construções que
impedissem a brisa do Rio de se difundir
pela cidade...
Ia a reentrar em casa,
quando me apercebo de um breve ruído nas
minhas costas... Uma coisa suave... mas
audível...
Virei-me para trás...
Surpresa...
Um periquito acabava de
aterrar – não sobre o parapeito da varanda,
mas suavemente, no chão...
– Olha o
brinde com que a manhã me saúda! Sejas
bem-vindo...
Perguntei-lhe donde vinha,
o que lhe tinha acontecido... Mas o bichinho
preferiu guardar segredo... Apenas estendia
as asas sobre o pavimento... Vi que
tremia...
– Estás ferido? – perguntei...
– Tens fome?
Correndo o risco de que ele
levantasse voo e voasse para longe,
desviei-me quase sem me mexer, entrei na
sala, e fui rapidamente à cozinha...
Que
é que eu faço? – perguntava a mim própria...
Um pouco ao acaso, abri de par-em-par as
portas do armário, em busca de alguma
sugestão – pedindo aos Deuses que a avezinha
não se lembrasse de continuar no seu rumo de
acaso...
Alpista? Oh, ainda há aqui um
resto... Quem sabe, um pouco de cuscuz...?
Peguei numa mão-cheia de cuscuz e alpista,
também numa banana, e regressei, ansiosa, à
marquise... Oh, que bom, ele ainda lá
estava!
Lentamente, suavemente,
abaixei-me sobre as pontas dos pés, e a
alguma distância, depus na frente dele,
aquela refeição improvisada... O meu
visitante devia estar assustado, debilitado,
com fome talvez, e debicou... com cautelas
mil, como se os grãozinhos pudessem
agarrá-lo, ou fazer-lhe algum outro mal...
Vendo-o mais tranquilo, com cuidados
redobrados, avancei a mão direita... e sem
dificuldade alguma, agarrei-o... ou foi ele
que se deixou agarrar...
– Estás
habituado às pessoas – disse-lhe...
Tinha tido um canário, que certa manhã se
tinha evadido... A gaiola estava limpa,
devoluta, à espera de novo ocupante... E lá
o encerrei...
– Quando estiveres
recomposto, deixo-te partir... – disse,
antecipando o desgosto de o perder...
Deixando o passarito bem aferrolhado,
arranjei-me e fui ao super-mercado. O meu
objectivo – trazer-lhe um reconfortante
repasto de bananas, mangas, mamão, verduras
frescas...
Os dias passaram... O meu
novo amigo já cantava. As suas penas azuis,
suavemente azuis, a cabecita parda, todo ele
tinha recuperado do esforço do voo e da fuga
que o tinha trazido até mim... As suas
áreas, embora indecifráveis, eram cada vez
mais frequentes!
– Estás feliz? –
perguntava-lhe...
Ele movia a cabecita em
sinal de assentimento!
– Muito bem,
compadre! Acho que gostas de ouvir a minha
voz! Eu também adoro ouvir a tua!
Passou
um mês, passaram dois...
Pensei que o
meu amigo já estaria tão habituado comigo –
e grato, porque não? – que experimentei
levá-lo até à janela da cozinha...
Depus
a gaiola sobre a máquina de lavar roupa, e
abri um pouco a portinha para que ele
recebesse mais ar! E ele cantou, cantou,
enquanto eu arrumava a louça na máquina!
Tranquilamente, vim ao computador, como
sempre... A curiosidade de ver os mails...
Quem se lembrou hoje de mim?...
Esqueci-me das horas. Estive compenetrada! E
mais um conto saiu do dedilhar do teclado...
Enfim, eram horas de preparar o almoço...
Regressei à cozinha...
Uma aragem
entrava pela janela... Cheirava a mar! A
cidade, entre o Rio e o Mar, por vezes
enche-se deste aroma marinho e de gaivotas!
Algumas, têm ninho sobre a chaminé do meu
prédio! É um prazer ouvi-las grasnar!
O
meu periquito abanava as asitas...
Persuadi-me de que cantava com mais energia!
Eu vivia feliz com este companheiro
discreto! As suas áreas deliciavam-me.
A
aragem que entrava pela janela ficou mais
intensa... O outono tinha avançado, havia
mais vento... Um vento húmido, ameaçando
chuva...
O periquito deixou de cantar.
Eu, entretida nas minhas lides, nem
reparei...
Na sua sensibilidade voadora
de animal provido de asas, e sabendo que as
asas foram feitas para voar – o meu
amiguinho sentiu no biquito, intensamente, o
aceno das ramadas das árvores da rua...
...Olhei para ele... E vi...
...Muito ao
de leve, eriçou as penas das asas, a
auscultar as correntes de ar que lhe
chegavam pela janela...
Sem um pio, sem
uma área de despedida, alongou o seu corpito
aerodinâmico... Esticou, abriu as asas...
tomou balanço...
- n.42 • novembro 2022