Aníbal de Sousa

 

Aníbal de Sousa

Uma leve e ligeira
Aliteração aliterante

Aqui, onde me encontro com o sonho real da vida, num recanto encantado do Algarve, são quase permanentes os dias ensolarados e quentes e as noites quedas e mornas; e os céus noturnos, veludíneos, são uma inesgotável montra de pedrarias flamantes. Todavia, alguns raríssimos dias despontam muito nublados, embrulhados, como por aqui se diz. Então toda a paisagem entorpece numa tristeza dócil e até os odores da terra e do barrocal se suspendem. E não se ouvem pássaros, nem cães, nem os brados das vizinhas, nem se sente o gemer das rodas dos carros de besta pelas ladeiras, nem se escutam os incentivos dos carreiros aos machos indolentes. Até mesmo os fumos dos fornos e das chaminés são só diluídas insinuações que ascendem verticais pelo espaço, sem que a mínima brisa os ouse perturbar.

Já o largo, longo e ledo verão de Vale de Éguas é uma sublime sucessão de santos, de suaves, de ditosos, edénicos, lúdicos e litúrgicos, momentos mágicos.

O alvorecer é aleluia de frescas, de fúlgidas fragrâncias e da graça e do esplendor de lúcidas e plácidas paletas. Já se não ouvem os latidos sentinelas dos cães nos quintais, nem os estrídulos avisos dos galos, arautos guturais, e ainda se não sentem nem trilos de melros, nem gorjeios de gaios, nem cegarregas de ralos.

Os primeiros rútilos e ridentes raios de Sol começam por matizar as matinais e opacas copas românticas das alfarrobeiras robustas, em viçosas e variadas versões de verde. Depois, traços límpidos e rescendentes projetam-se pelos pastos planos, louros, lentos e cansados, e tingem pitas e moitas e vetustos valados e figueiras furtivas. As amendoeiras amorosas, depois do vibrante e violento varejo, ficam mais livres e leves, e pouco mais são que elegantes e gráceis suspiros a sorrir serenas e despidas na paisagem pura.

Rompem depois as gargalhadas brilhantes das buganvílias, que, em grinaldas gloriosas, iniciam os seus cânticos vermelhos de vitória, álacres, angélicos, polícromos. Logo se começam a perceber os gritos claros da cal dos eirados, dos beirais, das açoteias, enquanto as voluptuosas filigranas brancas das chaminés se estampam triunfantes nos céus em sonoros açafates de orações.

Decifram-se então os floridos figos das piteiras austeras, nos aromas de mel das brisas bravias do bendito, benfazejo e benquisto barrocal.

Os ares enchem-se agora do credo transparente do cravo de cristal da crispação agreste da cigarra, e o zumbido azul do horizonte exibe, exulta, exala os coloridos corais das finas e felizes harmonias das vozes venturosas da alvorada.

Ah! Mas em Vale de Éguas também chove. Chove em invernias tempestivas, breves, ora em cascatas curtas, caudalosas, cardas, ora em francos e afetuosos afagos, ou em plangentes prantos promitentes, de chorinas cerradas, de ligeiras, ledas, cintilantes sedes.

A terra seca, assediada, assusta-se com súbitos, severos e agressivos esgarrões, e despede os aguaceiros em gárrulos córregos, regueiros e regatos expeditos e fugidios, ou guarda-os em lavajos e nateiros.

Mas quando a chuva chora em limpa, delicada chufa, é jovial o choro da providente rega de celestial hissope, em penetrante prece de preciosa seiva, tão perfumada e fértil, de frívolos, flácidos e fluentes borrifos.

Então a terra úbere abre-se sedenta, e entrega-se em nupcial letícia a libações lascivas, e em sensual luxúria lateja licenciosa, e em libertino coito explode em lúbricas verduras, libidinosas, vivas, prenhes, vaporosas. E quando o sol, insubmisso, surge e vence fogoso o céu sombrio e a iníqua conspiração nefasta, nebulosa, sobre o túrgido manto esmeraldino, espalha o esmalte do topázio das azedas, o jaspe do jasmim, a purpurina roxa e recatada do tomilho, das gardénias, dos lírios, do alecrim.

Não é vulgar, mas acontece vociferarem ventos vigorosos, que em vingativas revoltas, fustigam as vestes virginais do florido e frágil arvoredo.

As amendoeiras, medrosas, tremem tímidas e castas e a tormenta, em fragorosa fúria, desfralda-lhes o alvo e imaculado manto em torpe e pecaminoso estupro.

À noite o céu é um cenário de sonho acetinado e sacro, um crepe cravejado do crente crepitar de centelhas, de poalhas e de brilhos. E as estrelas atrevidas, trémulas e intrépidas, sediciosas tecem searas de sirénicas serenatas silvestres de constelações e nebulosas.

E Cassiopeia, Sírio, Aldebarã, Perseu, as Ursas, celebram líricas latrias, enquanto a grave Pégaso, garbosa, se penteia, e, amargurada, Andrómeda se entrona nos altares de Antares e de Centauro.

E quando chega a chama excelsa e plena da Lua cheia e nua e núbil, a noite, silenciosa, suspensa em pasmo, apenas pensa que aquela divina e dulçorosa claridade é já clangor do dia.

Outros textos de Aníbal de Sousa