
Aníbal de Sousa
Um Novo Auto das Barcas
O barqueiro partiu não me levou
Leva-me contigo barqueiro dos infernos
Não és ainda tão mau quanto preciso
E abalou
Volta aqui barqueiro
miserável
dar-te-ei tudo o que quiseres
farei tudo
o que ordenares
Já disse
não és ainda tão mau quanto tu
pensas
Não te
vás barqueiro maldito
ensina-me a ser mau
então
quanto precisas
Terás muito
que esperar ó triste
a maldade não se
ensina
é um dote natural
Ó Belzebu
desventrado
estás enganado ignorante
foi por isso talvez que não te quiseram
sagrado
Como te atreves a insultar-me
farsante
Vai-te vai-te demónio imbecil
sou eu
agora que não te quero acompanhar
a maldade não é coisa natural
é algo que se instila que se induz
Tenho o inferno cheio rapaz
ainda duvidas
de que a gente adora o mal
mais tudo
quanto o mal produz
O ser humano é
frágil e gentil
mas crente curioso e
atrevido
Vê tu Eva e Adão como caíram
Foi Kundalini torpe a tentação
São fracos e a carne ódio febril
A
tentação os fez cair perdidos
mas choram
depois arrependidos
Não dá trabalho
algum tentar a gente
não sei como podes
tu ser diferente
A maldade ensina-se
e aprende-se
regula-se e sempre se
difundirá
mas não há na natureza coisa
alguma
que seja
verdadeiramente má
Ah ah ah nem eu
Um dia também tu
te vais cansar
e
desistir
também tu na barca branca hás de
partir
Ah ah ah
Também tu te vestirás de alvuras
e
pureza
e vais gostar das coisas puras
da beleza
Ah ah ah e tu dez réis de
gente
por que não vais também
para o
céu como eu
Como tu sabes muito bem
eu sou diferente
Vou-me embora estou
zangado
Vai-te vai-te marafado
e
não voltes nunca mais a este lado
…
…
Vês regressei
encostei a barca ao cais
Ó meu cretino Asmodeu
onde vais tu
encontrar
alguém pior do que eu
Por teus dotes naturais
ia perdendo a
paciência
mas vejo que dás sinais
de alguma oculta ciência
Tens o
tridente a pingar
o sangue dos inocentes
não sabes verdades dar
quanto mais tentas
mais mentes
Porque não foste na
barca
daquele barqueiro branco
É
mais tanso do que tu
ó meu reles Belzebu
não sei mais o que fazer
com seus ares angelicais
diz que no seu
entender
serei talvez bom de mais
e também não me
vai querer
*In Sombras Ocultas, inéd.
- n.46 • março 2023