Aníbal de Sousa

 

Aníbal de Sousa

O Padre Pedro e a Professora Sara

Na primeira vez que me confessei, senti que iria realizar uma experiência iniciática, que me transformaria e me colocaria a par de toda a gente que enchia a igreja, conhecedor, também, daquele mistério. Estava nervoso, mas decidido.

Quando me ajoelhei e encostei a cabeça à grade do confessionário, ouvi uma voz, que eu sabia ser a do padre Pedro, mas que me parecia vir do Além inatingível. Era uma voz segredada, bíblica, que me comandava e à qual eu me entregava sem reservas. Repeti o Ato de Contrição e logo me senti esmagado pelo peso dos enormes pecados de que, só naquele momento, tomava consciência plena de ter cometido. «-Confessa os pecados que cometeste por pensamentos, palavras e ações!» E confessei que tinha chegado a casa depois da hora que me fora estabelecida; que, sem querer, partira a asa de uma terrina, e não me tinha acusado; que durante a missa não tirava os olhos de uma menina, a Gracinha, que me fascinava; que tinha copiado uma conta numa prova, na escola; que uma vez em que me baixei para apanhar um lápis do chão, vi as pernas e as cuequinhas azuis da professora D. Sara; que mentira ao Jesuíno Rochinha, dizendo-lhe que tinha no Algarve uns avós muito ricos; que tinha achado o abafador perdido pelo Costinha e não lho devolvera; que tinha chamado nomes ao Luís Henrique; que tinha roubado uns damascos do quintal do Salvador Matias.

E talvez não me tivesse calado nunca mais, se a voz surdinada do confessionário não me tivesse interrompido para me admoestar com severidade e para me impor a penitência de seis ave-marias e seis pai-nossos. Que me arrependesse e não voltasse a pecar.

Quando saí da igreja, com a penitência cumprida, senti-me leve, puro, bom. No dia seguinte, rapazes e raparigas fariam a primeira comunhão. Nós, com laços alvíssimos no braço; elas, todas de branco e com grandes véus de tule presos na cabeça com singelas coroas de flores.

Foi outro momento de grande exaltação, aquele em que recebi solenemente a Hóstia Consagrada. Senti um frémito purificante que me deixou pronto para franquear as portas do Paraíso.

Durante algum tempo essas sensações místicas foram-se mantendo e mesmo aprofundando, por exemplo, quando por vezes me era pedido que fizesse a leitura da Epístola. Nessas alturas sentia-me instruído por celestiais anélitos.

Mas o contacto mais próximo com as cerimónias religiosas e com os objetos do culto - cálice, patena, sacrário, píxide, custódia, turíbulo - e com estolas, casulas, alvas e amictos, e com o ambiente da sacristia, foi pouco a pouco embaciando aos meus olhos o brilho luminoso das encenações litúrgicas. E também a vida, que corria célere, todos os dias me confrontava com novas dúvidas e interrogações. E, com o andar dos tempos, passei a sentir um grande desconforto com as missas, a sacristia, as procissões. E passei mesmo a chegar tarde e a faltar às eucaristias dominicais, e deixei de me ajoelhar no confessionário, onde havia já muita matéria que eu omitia, por não acreditar que pudesse ser pecaminosa.

In Cerro Alto, inéd.