
Breves Notas
Aníbal de Sousa
No Pulo do Lobo
Em êxtase
- Partilhar 10/06/2024
…Atraía-nos um fragor sempre crescente,
poderoso e ameaçador e de súbito abriu-se à
nossa frente, no contorno de um penhasco, o
luminoso espelho de uma insuspeitada lagoa.
Nem a mais impercetível ruga perturbava
a pureza absoluta da superfície.
Porém, percebia-se que um farto caudal, por
misteriosos poderes, ali tornado manso,
fluía vindo sabe-se lá de que remotos e
agrestes leitos e, por uma breve e
intolerável garganta, como que sugada por
potente feitiçaria, despenhava-se a água
numa violência avassaladora e num rugido que
emergia das profundezas e se assinalava
medonho pelo espaço.
Por muito tempo
nos pasmou a estupenda rebeldia das águas e
o seu formidável bramir e deixámos que nos
aspergisse a bênção refrescante da ressaca
que, numa diáfana florescência, coroava
aquela tremenda manifestação de poder.
As águas pareciam querer fulminar as
entranhas da terra e pareciam animadas de
uma insuperável e súbita amotinação, ou
agitadas por alguma implacável e portentosa
força subterrânea.
Contudo, por
espantosa magia, as águas caíam num breve
desnível e, sem transição aparente,
serenavam num plácido reduto e, diligentes,
acomodavam-se a um coleante percurso talhado
nas pedras, no que teria sido um amplo e
áspero leito de bem conflituosa e bárbara
torrente.
Ao longe perdia-se agora um
agressivo corredor de antigas lavas que
teriam mordido e trucidado sem piedade as
rochas, que nos surgiam
como
gigantesca e apodrecida dentição de
descomunal e jacente monstruosidade.
Suspensos pasmámos ante aquele prodígio e
nos questionámos sobre como as águas mansas,
sem aviso, se enraiveciam, para logo
esquecerem esse passado recente e, em grande
paz, se espelharem e gentilmente fluírem sem
rancor e talvez também sem memória.
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- Ano VI • junho 2024