Aníbal de Sousa

 

Aníbal de Sousa

Cem Haikus portugueses 

O Haiku é uma forma literária tradicional japonesa que nasceu da transformação progressiva de outras expressões poéticas mais remotas, como o Tanka, o Haikai no renga, o Hokku. É muito comum no Japão, onde sempre teve mestres cultores de grande prestígio.

Eram poemas combinados, em que participavam muitas pessoas, aristocratas em especial, e que chegavam a funcionar como divertimentos.

Foi Matsu Bashô (1644-1694) que conferiu dignidade literária ao Haikai. Mais tarde Masaoka Shiki (1867-1902) associou as formas Haikai e Hokku e criou o Haiku, tal como hoje se conhece.

Além dos já citados poetas podemos considerar ainda, por exemplo, os nomes de Yosa Buson (1716-1784), Kobayashi Issa (1763-1827) ou Santoka Taneda (1882-1940), todos autores de Haiku muito venerados no Japão.

O Haiku ganhou também inúmeros cultores de grande prestígio no resto do mundo, merecendo destaque a experiência brasileira de Afrânio Peixoto (1876-1947) e, sobretudo a de Guilherme de Almeida (1890-1969). Este último praticou um modelo de Haiku, que considerou mais próximo dos estilos de Bashô e Shiki, embora adaptados à especificidade da língua portuguesa.

Assim, temos que o Haiku, no modelo clássico, como no de Guilherme de Almeida, é constituído por três versos totalizando 17 sílabas métricas, sendo dois de 5 sílabas e um de 7, na forma 5-7-5. O primeiro dos versos deve rimar com o último, e no verso de 7 sílabas, a segunda dessas sílabas deve rimar com a sétima.

Na construção do Haiku deve considerar-se uma referência sazonal à época do ano ou ao estado do tempo e da Natureza – Kigo, e uma outra importante peça: Kireji, ou palavra de corte, que altera abruptamente a corrente poética.

O tema do Haiku deve ser sempre a Natureza, o tempo e as coisas naturais e simples, e deve ser elaborado no rigor e na economia linguística, evitando adjetivos, advérbios e ornamentos desnecessários.

Em Portugal também existem importantes cultores deste modelo poético. Pode citar-se a Professora Zlatka Timenova, docente da Universidade Lusófona, que tem composto Haikus em várias línguas, e a Professora Dr.ª Patrícia de Jesus Palma, estudiosa e praticante do tema.
Pode citar-se ainda o poeta, cantor e compositor, Afonso Dias, autor de inúmeras peças do género.

Merecem destaque Leonilda Cavaco Alfarrobinha, inspirada autora do livro O Respirar das Flores, edição Pássaro de Fogo, Lousa, 2007, e Joaquim M. Palma, autor de uma versão portuguesa de Os Animais, de Kobayshi Issa, Assírio & Alvim, Porto, 2019.

Além de outros nomes, merece especial registo o poeta Casimiro de Brito, que viveu no Japão, onde estudou a língua local e traduziu poemas de Bashô e de outros autores. Este escritor foi galardoado com o Prémio Mundial de Haikus, atribuído pela World Haiku Association, de Tóquio.

De entre a sua vastíssima obra – mais de 70 títulos – podemos referir Memória do Paraíso, Editora Licorne, sem data nem local de edição. Este livro contém 333 Haikus, que não seguem, no entanto, a fórmula de Guilherme de Almeida, conferindo-lhe o autor uma tonalidade predominantemente erótica.

De sublinhar ainda o papel de alguns importantes tradutores que têm proporcionado a divulgação de Haikus de autores japoneses clássicos e contemporâneos. Sem recorrer a uma exaustiva investigação, invocamos a obra Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Mundo, Assírio & Alvim, Porto 2001. Aqui podemos encontrar trabalhos de dois eminentes escritores e académicos: Stephen Rekert e José Alberto Oliveira.

Stephen Rekert traduziu Bashô (1644-1694), Sora (1649-1717), Onitsura (1660-1738), Sodô (séc. XVIII), Ryôta (1707-1787), A Freira Sogetsu (séc.XVIII), Buson (1716-1784), Shiki (1867-1902) e Sen no Rikyo (1521-1591).

José Alberto Oliveira traduziu Mukai Kyorai (1651?-1704), Konishi Raisan (1674-1716), Takayama Kyoshi (1874-1959), Kobayashi Issa (1763-1827), Syôdai (séc. XVIII) e Kawabata Bósha (1900-1941).

Resta referir a querela que existe em relação aos termos usados em Portugal e no Brasil para nomear este género poético. Há quem escreva Haiku, Haicu, Haikai e Haicai, referindo mais ou menos a mesma coisa. E isso é também evidente nos mais importantes dicionários da língua portuguesa.

Quanto a mim, que não sinto competência para tratar o assunto, passarei ao lado dessa polémica, escolhendo o termo Haiku, escrito desta forma, embora com a definição e modelo de Guilherme de Almeida.

i
O Sol ferve no ar
Em brasa; de frente à casa
Fonte a festejar.

ii
Sombras a brincar
No chão cheio de neve; o cão
Passa sem ladrar.

iii
No ar a tarde grita
Azul; sorri o Sol no Sul;
A Lua sibarita.

iv
Vento na vidraça
Vai manso; eu depois descanso.
Na rua um gato passa.

v
O caminho ri
Sem cor; no ar o Sol em flor,
Lúbrico rubi.

vi
Pedras do valado
Vão pardas; veredas, guardas
Sobre o chão molhado.

vii
A chuva crepita,
Resfria. No amarelo dia
Um velho tirita.

viii
A noite não tarda.
Ar quente; Lua Plena e gente.
Luzes na mansarda.

ix
Um pássaro passa
E risca o espaço; faísca
O mar na barcaça.

x
No jardim florido
A abelha trabalha; a velha
Com o olhar perdido.

xi
O cerro vigia
O rio que lesto fugiu.
Já vai longo o dia.

xii
A folha cai ao chão
E dança; logo descansa.
Adeus do verão.

xiii
A noite cintila
E a Lua vaidosa vai nua:
Noiva rejubila.

xiv
Cai a geada na rosa,
A neve cai muito leve;
Virgem vaporosa.

xv
O galo a cantar
Festivo; decreto altivo.
O Sol a raiar.

xvi
O melro a brincar
Na horta; espreito-o da porta,
Põe-se a solfejar.

xvii
O comboio rola
Feliz, vai nos seus carris;
Uma barcarola.

xviii
O trânsito agasta
A gente; traz a serpente
Que infinita se arrasta.

xix
Meninos a brincar
No chão; rodopia o pião
Que não quer parar.

xx
O Sol a nascer
Vermelho; no vale, um velho
Que não vai morrer.

xxi
Sino a suplicar
Na igreja; Deus nos proteja.
Chuva a jubilar.

xxii
A manhã de Abril
Convida a viver a vida;
Abriu-se o redil.

xxiii
Um aroma no ar;
Jardim sorrindo ao jasmim.
A jovem no lar.

xxiv
Estrelas no céu,
Um manto cintila, santo.
Vai sem noiva o véu.

xxv
Amendoeira em flor,
Alvura que pouco dura.
Um breve fulgor.

xxvi
Vento na ramagem
Da ágil roseira frágil.
Hábil jardinagem.

xxvii
Passos na viela
Escura; uma festa impura.
Apelo à janela.

xxviii
Um barco a zarpar;
No cais, acenos finais.
A gente a chorar.

xxix
Manhã de neblina:
Um véu cobre o dia e o céu.
Suspira a campina.

xxx
O moinho espera
O vento; descansa um momento.
Já é primavera.

xxxi
Está calmo o mar;
As ondas brincam redondas.
Gaivota a pairar.

xxxii
Com o olhar distante,
Donzela olhando à janela:
Está longe o amante.

xxxiii
Na orla da floresta
As fadas vão de mãos dadas;
Os faunos na sesta.

xxxiv
No bosque florido,
Bravia era a festa; alegria.
O amor proibido.

xxxv
No barco veleiro,
De vela larga amarela,
Feliz passageiro.

xxxvi
Na serra o rebanho
Que pasta na encosta vasta
Vê nascer um anho.

xxxvii
A lareira acesa;
Calor que invoca o amor.
O jantar na mesa.

xxxviii
Está frio lá fora;
Em casa a lareira em brasa.
Ninguém vai embora.

xxxix
O pinheiro manso
E forte; redondo porte.
À sombra descanso.

xl
Uma amora brava,
Escura, da silva impura
Não quer ser escrava.

xli
Banco de jardim
Pousado à sombra, cansado.
Ri e repousa assim.

xlii
Riso de criança:
A paz que a pureza traz.
Um passo de dança.

xliii
Procissão na aldeia;
A gente vai penitente.
A chuva escasseia.

xliv
A água da fonte
Vai fria refrescar o dia
Na falda do monte.

xlv
Um acordeão:
Doçura na toada pura,
Bate um coração.

xlvi
As nuvens no céu,
Pinturas lá nas alturas;
As ninfas sem véu.

xlvii
As paredes brancas
Dos lares já seculares,
São puras e francas.

xlviii
A jovem bonita
Na rua passa e, como a Lua,
Lá no céu gravita.

xlix
Florzinha do mato
Ri pobre e modesta; nobre
E altiva no trato.

l
O vento assobia
Nas telhas; rezam as velhas.
Noite de invernia.

li
A cigarra rasga
O espaço, sem ter cansaço
E nunca se engasga.

lii
O palhaço tropeça:
Palmadas e gargalhadas;
A dor de cabeça.

liii
Feliz borboleta
Pintada, de asa bordada,
Não lhe falta nada.

liv
Há risos e flores
Na festa; tudo o que resta
No fim dos amores.

lv
A formiga forte
Enfrenta a subida, atenta,
Não lamenta a sorte.

lvi
O autocarro chega,
No fole a multidão engole,
Atrasada e cega.

lvii
Abre-se a janela;
Vai gente a passar em frente.
O cão com a trela.

lviii
À beira do charco
A rã arranha a manhã.
Ao largo vai um barco.

lix
Um sapo no lago
Coaxa cansado em voz baixa;
Precisa de afago.

lx
De manhã, o frio;
Pombais cheios nos quintais.
Vai gelado o rio.

lxi
Tarde o rouxinol
Desperta a cotovia incerta;
Vai nascer o Sol.

lxii
Festa no jardim:
A rosa branca desposa
O alegre alecrim.

lxiii
O despertador
Alerta e pronto desperta
Do manso torpor.

lxiv
Pela greta grossa
Grita na gruta o granito;
Um grilo que almoça.

lxv
Um grito na rua;
A mulher passa a correr.
Que desgraça a sua.

lxvi
O batel no mar;
Nas fragas rebentam vagas.
Velhas a rezar.

lxvii
A senhora fina
Que vai de salto alto, cai.
Faz troça a menina.

lxviii
Ventania na tarde;
Jasmim treme no jardim.
Deus o salve e guarde.

lxix
Pardais a brincar
No chão. Migalhas de pão.
O gato a rondar.

lxx
O cisne passeia
Altivo, com o ar lascivo
De uma sereia.

lxxi
Passa o funeral;
Chapéu na mão, olhos no céu.
O tema banal.

lxxii
A banda a tocar
Na rua; o homem do bombo sua.
Muita poeira no ar.

lxxiii
O circo acordou
A vila. Gente na fila.
O trapézio voou.

lxxiv
Um tango na pista;
O par enleado a dançar
À hora prevista.

lxxv
Jaz o livro aberto;
Na mesa uma candeia acesa.
Um lugar deserto.

lxxvi
A criança ao colo
Da mãe que nem mama tem;
Um parco consolo.

lxxvii
Ondula a seara
Serena em campina amena.
A brisa não para.

lxxviii
A Estrela Polar
Vigia; sentinela e guia.
Não sai do lugar.

lxxix
Põe-se o Sol no mar:
A gema divina é um poema.
Vai ressuscitar.

lxxx
O vinho borbulha,
Gargalha vivo na talha;
Na selha mergulha.

lxxxi
O deserto moreno
Que arde impiedoso na tarde;
Não sei se o condeno.

lxxxii
Menina à janela;
Nutrido colo florido.
Sensual aguarela.

lxxxiii
O espelho na sala;
A valsa que a orquestra realça.
O baile de gala.

lxxxiv
A chaminé a fumar
As francas bandeiras brancas.
No lar o jantar.

lxxxv
O fogo na serra.
Chamas consomem as ramas.
É como na guerra.

lxxxvi
O espelho revela,
Falseia, castiga, premeia.
Olhar com cautela.

lxxxvii
Fruta no pomar;
O grão na tulha e o marrão.
Fartura no lar.

lxxxviii
Um fado menor;
Resiste a guitarra triste
Infeliz no amor.

lxxxix
A uva madura
Espera a vindima austera;
Na adega a tortura.

xc
Cabana no monte;
A terra ruiva da serra.
Na frente uma fonte.

xci
Jovens a cantar
Na rua; serenata. A Lua
Decide brilhar.

xcii
Couval; vai no pasto
Ao sol, calmo, o caracol.
Pardal no seu rasto.

lxciii
Amola-tesoiras;
A flauta indolente e arauta.
Cutelos, rasoiras.

lxciv
Vai de braço dado
O par amoroso a andar;
Romance iniciado.

lxcv
Pregão de varina:
Tem pressa, o peixe à cabeça;
Marujo na esquina.

lxcvi
Saudade infinita:
Candeia já acesa na aldeia.
Um corvo crocita.

lxcvii
As ruas vazias;
Surpresas montras acesas.
A noite agonia.

lxcviii
O galo na torre,
Cinzento no catavento.
No Entrudo ele morre.

lxcix
A tarde a queimar
A praça; povo que passa.
Ninguém quer falar.

c
A feira franca:
A gente segue em torrente,
Vai de banca em banca.