Aníbal de Sousa

 

Aníbal de Sousa

A Catástrofe

     O homem passou por mim a correr e nem me falou. Fiquei profundamente espantado. É que cada vez que ele me vê, me cumprimenta e me pergunta pela família e por aquela dor que me deu no fígado, depois de festejar o primeiro aniversário da morte do meu tio Gustavo, que viveu frutuosos anos em Terras de Santa Cruz e não tinha mais ninguém na família. Era de espantar. Não podia conceber que existisse algo nesta vida que o pudesse perturbar. Acreditem que era de espantar. Se vocês o conhecessem acreditavam com certeza. E – agora me lembro – ele vinha pela escada, o que é mais extraordinário de tudo, pois seria incapaz de o fazer em situações normais. De uma vez até fez esperar o diretor-geral mais de cinco minutos só por teimar em utilizar o elevador. E o gabinete dele é só um andar acima do seu. Não! Ali tinha de haver coisa!

     Mas eis que o homem passa de novo por mim. Eu ficara a coçar o queixo à entrada (ou à saída?) da repartição e ali me mantinha nessa paciente atitude.

     Decido de repente tirar a questão a limpo. Subo as escadas a correr atrás dele e ainda vou a tempo de o ver entrar (sem bater?) no gabinete do director-geral. Escondo-me no vão da escada à sua espera e fico a recordar-me do seu ar transtornado. Tinha a face congestionada e o olhar vermelho, fora das órbitas. E outra coisa espantosa: tinha o colarinho ligeiramente desapertado.

      Aproxima-se um contínuo pachorrento. Vou interpelá-lo.

     -Ouça lá, ó Sr. Guilherme: o que é que se passa com o Dr. Mesquita?

     -O Sôtor Mesquita? Oh! Sabe lá! É uma coisa de pasmar. Há mais de uma hora que anda p´ra baixo e p´ra cima com papeis e pastas de baixo do braço. Constou-se para aí que havia grossa asneira na costa. Mas há bocadinho o director-geral chamou-me e vi que estavam os dois muito bem a conversar.

     -Mas, oh Guilherme, o que é que lhe parece?

     -Eu sei lá Soares! Eu sei lá! Eu não sou de atoardas. Mas ele diz-se para aí cada coisa, que só visto!

      E o bom do contínuo abanava as mãos e a cabeça desconsoladamente.

     -Oh homem, desembuche!

     -Oh Soares, eu sei que os senhores são muito amigos…Não vá parecer-se mal…

     -Não parece nada mal. Ande lá! Atire cá para fora o que sabe.

       -Dizem para aí mil coisas, Soares. Nosso Senhor me perdoe. Dizem que a mulher o atraiçoou…

     -A D. Augusta? – atalho trespassado.

     -Sim senhor! É o que dizem. E dizem mais. Dizem que veio cá o amante falar com ele. E que a filha, ao saber, fugiu com um estudante de barbas. Eu sei lá, Soares…Eu sei lá…

    -Mas isso será verdade, Guilherme? – estou lívido.

     -Não senhor! Quero dizer…Sabe-se lá…Eu não acredito. – E noutro tom, falando baixo, quase junto ao meu ouvido – E sabe o que dizem mais? Que ele anda com uma pistola e que quer matar a mulher, o amante da mulher, quer matar a filha e o barbaças e que se quer matar a ele também.

     -Tch!...

     Tomo uma decisão rápida. Tenho de evitar a catástrofe. Vou segui-lo para toda a parte, custe o que custar. Escondo-me nos lavabos e fico a espreitar pela fresta da porta.

      Abre-se de repente o gabinete e o Mesquita sai a correr, deixa cair as pastas e vem direito a mim desvairado. Mal tenho tempo de fechar a porta precipitadamente. E fico a ouvir um bater de punhos fechados na porta. Não sei, sinceramente, por que fechei a porta. Só sei que tenho o coração a bater desalmadamente. Reconsidero. Abro a porta a saio. Já não há pastas no chão. Corro pela escada abaixo. Ouço passos. Escondo-me. Passa o Mesquita a correr. Lanço-me pela escada atrás dele. Ele sai para a rua como louco e atravessa a avenida. Para. Olha para um lado, para outro, depois decide-se. Volta a correr avenida acima. Volta a parar e a olhar. Entra no Café Central. Precipito-me no Café atrás dele.

     Ao entrar no Café sou aguardado por meia centena de olhos pasmados a considerarem-me por cima de bocas semi-abertas, de jornais da tarde e de bicas. Silêncio absoluto no Café. Procuro por todo o lado. Nem sombra do Mesquita. Está tudo de olhos postos em mim. Acendo um cigarro, nervoso, e enterro as mãos nos bolsos, entre confuso e angustiado. Resolvo esperar. Passeio de um lado para outro, inquieto. Ninguém se mexeu no Café. Apetece-me gritar. Fico de costas para aquela gente, que não consigo encarar. O Mesquita entrou no Café de certeza. Mas onde estará ele? E aquela gente saberá o que se passa? É certo que entrei no Central a correr, mas isso não é razão para me continuarem a olhar daquela maneira. Suspeito que no Café se sabe de alguma coisa. Vou pensar um bocadinho se devo ou não perguntar claramente. Resolvo não perguntar nada. Volto-lhes as costas de novo. Tenho o queixo na mão.

     Nisto, abre-se uma porta e tenho o Mesquita a trinta centímetros de mim. É outra vez o Mesquita sereno, sorridente, impecável, que sempre conheci. Está na minha frente de mão estendida para mim. Vai certamente perguntar-me pelo fígado, mas eu já não o estou a ver. Os meus olhos estão presos na súbita revelação de todo aquele mistério, pregados nas duas letras risonhas, trocistas, cravadas a três quartos da altura da porta por onde o Mesquita saiu: um W e um C.

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