Breves Notas
Aníbal de Sousa
Tenho medo
Até de não ter medo
- Partilhar 12/08/2024
Tenho medo
tenho muito medo até de não
ter medo
Tenho medo de ficar e de
partir
tenho medo também de regressar
de cair e não me levantar
de falar de
calar e não ouvir
Tenho medo de ser
velho e tombar pelas valetas
de apanhar
do chão
abandonadas pontas de cigarro
de salivar falando
e de agradecer com
vénia
e chapéu na mão aos domingos
à
saída da missa
uma esmolazinha
Tenho medo de roto feio e sujo
causar
pena a toda a gente
Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo
Tenho medo de comer sem parar até morrer
tenho medo de ter fome e de ter sede
muita fome e muita sede
Tenho medo de
rir e de chorar
e de amar e de odiar
sem fim e sem medida
tenho medo até de
perdoar
àqueles que me têm ofendido
Tenho também temor de dar e receber
de negar e recusar
e é claro tenho medo
muito medo de roubar
Tenho pavor de
dormir e de acordar
de subir de descer e
viajar
Tenho medo de sofrer
de
adoecer
e de ter de ficar
nas camas
malcheirosas
dos hospitais repletos
indiferentes
Tenho medo de esperar e
fazer esperar
e me atrasar
Temo muito
a perda da memória
como temo recordar-me
dos passados bons ou maus
da minha triste
história
Tenho medo do escuro
do
vento impuro a uivar pelos telhados
das
portas a gemer torpes sinais na tempestade
das inundações devastadoras
dos fogos
infernais descontrolados
Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo
Assustam-me cães danados
e tremendos
ladradores enraivecidos
e ratos pulgas
percevejos furibundos
aranhiços horrendos
cobras viscosas sapos imundos
sanguessugas lesmas
mochos vampiros
avantesmas
e morcegos
mesmo
adormecidos
Tenho medo dos bairros
degradados
das cidades grandes violentas
de paredes grafitadas pestilentas
com
gente conspícua circulando
com ar
desconfiado
e até ameaçador
Tenho
medo de grandes casas velhas
de soalhos
podres gemebundos
portas tombadas
janelas a dançar ao vento
escadarias
nobres mas decrépitas
teias de aranha
imensas
cheias também quem sabe de
fantasmas
almas penadas génios malditos
Tenho medo do frio
e de ficar gelado
e assusta-me o tórrido calor abrasador
Temo a piedade devota instituída
e a
caridade ritual do agiota
Tenho medo
de me perder
e perder coisas
e de
esquecer também o que é preciso
Tenho
medo de bruxas feiticeiros
magos xamãs
esbás pajés
temo pandoros juremeiros
e
carimbambas macumbeiros
temo puçanguaras
e hierofantes
Tenho pavor de ficar
desfeito em pó
e das entranhas me
deixarem
plásticas pelo chão
dos olhos
me saltarem das órbitras
e escorrerem
flácidos pelo corpo até aos pés
e temo
que os dentes todos me saltem da boca
e
tenha de os cuspir sanguinolentos
Tenho medo da guerra
da traição
da
tortura do exílio
da prisão
Tenho
medo do censor
temo a mentira vil e a
calúnia
e a sevícia brutal do inquisidor
Tenho medo das leis e da justiça
dos
tribunais juízes da polícia
dos
funcionários dos balcões
dos merceeiros
lojistas dos ferreiros
e tenho muito medo
de ladrões
Tenho medo de chefes
inspetores de senhorios
E temo os de
cara inocente
de peles pálidas
e olhos
de serpente
Tenho medo
tenho muito
medo até de não ter medo
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