Aníbal de Sousa

Breves Notas

Aníbal de Sousa

Tenho medo
Até de não ter medo

Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo

Tenho medo de ficar e de partir
tenho medo também de regressar
de cair e não me levantar
de falar de calar e não ouvir

Tenho medo de ser velho e tombar pelas valetas
de apanhar do chão
abandonadas pontas de cigarro
de salivar falando
e de agradecer com vénia
e chapéu na mão aos domingos
à saída da missa
uma esmolazinha

Tenho medo de roto feio e sujo
causar pena a toda a gente

Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo

Tenho medo de comer sem parar até morrer
tenho medo de ter fome e de ter sede
muita fome e muita sede

Tenho medo de rir e de chorar
e de amar e de odiar
sem fim e sem medida
tenho medo até de perdoar
àqueles que me têm ofendido

Tenho também temor de dar e receber
de negar e recusar
e é claro tenho medo muito medo de roubar

Tenho pavor de dormir e de acordar
de subir de descer e viajar

Tenho medo de sofrer
de adoecer
e de ter de ficar
nas camas malcheirosas
dos hospitais repletos indiferentes

Tenho medo de esperar e fazer esperar
e me atrasar
Temo muito a perda da memória
como temo recordar-me
dos passados bons ou maus
da minha triste história

Tenho medo do escuro
do vento impuro a uivar pelos telhados
das portas a gemer torpes sinais na tempestade
das inundações devastadoras
dos fogos infernais descontrolados

Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo

Assustam-me cães danados
e tremendos
ladradores enraivecidos
e ratos pulgas percevejos furibundos
aranhiços horrendos
cobras viscosas sapos imundos
sanguessugas lesmas
mochos vampiros avantesmas
e morcegos
mesmo adormecidos

Tenho medo dos bairros degradados
das cidades grandes violentas
de paredes grafitadas pestilentas
com gente conspícua circulando
com ar desconfiado
e até ameaçador

Tenho medo de grandes casas velhas
de soalhos podres gemebundos
portas tombadas
janelas a dançar ao vento
escadarias nobres mas decrépitas
teias de aranha imensas
cheias também quem sabe de fantasmas
almas penadas génios malditos

Tenho medo do frio
e de ficar gelado
e assusta-me o tórrido calor abrasador

Temo a piedade devota instituída
e a caridade ritual do agiota

Tenho medo de me perder
e perder coisas
e de esquecer também o que é preciso

Tenho medo de bruxas feiticeiros
magos xamãs esbás pajés
temo pandoros juremeiros
e carimbambas macumbeiros
temo puçanguaras
e hierofantes

Tenho pavor de ficar desfeito em pó
e das entranhas me deixarem
plásticas pelo chão
dos olhos me saltarem das órbitras
e escorrerem flácidos pelo corpo até aos pés
e temo que os dentes todos me saltem da boca
e tenha de os cuspir sanguinolentos

Tenho medo da guerra
da traição
da tortura do exílio
da prisão

Tenho medo do censor
temo a mentira vil e a calúnia
e a sevícia brutal do inquisidor

Tenho medo das leis e da justiça
dos tribunais juízes da polícia
dos funcionários dos balcões
dos merceeiros lojistas dos ferreiros
e tenho muito medo de ladrões

Tenho medo de chefes
inspetores de senhorios

E temo os de cara inocente
de peles pálidas
e olhos de serpente

Tenho medo
tenho muito medo até de não ter medo

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