Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Tribunal da Inquisição - século XXI

Quando comecei a escrever por aqui, decidi dar o nome de Novos Medievais à minha rúbrica. O título prendeu-se com o facto de as pessoas estarem em tempos de obscurantismo e de terem esquecido o que significa lucidez e bom senso. Estamos num século onde a informação está disponível para quem a quiser procurar mas, na verdade, é bem mais fácil "engolir" o que se vai dizendo e não cansar os neurónios.

Estes precisam de ser ginasticados e sem essa força de querer, perdem-se por caminhos estranhos, em boqueirões onde a luz não penetra e tudo é permitido. Usar a cabeça e pensar por si é um mote quase revolucionário pois deixar-se ir é sempre suave e sem percalços. Só que não. Os loucos, afinal são os que se deixaram cegar e não os cegos.

Estava longe de pensar que seria testemunha e atriz num episódio onde a igreja, aquela instituição tão santa que forma homens de bens e dá a mão a quem precisa, ainda tem em seu seio seres de caráter muito duvidoso e malévolo. Se representação do marrafico houvesse, este senhor podia encarná-la com perfeita forma. Aliás, o papel assenta-lhe que nem uma luva e o tom em que o fez é a prova da falta de humildade e nobreza de muitos, em personagem tipo desenvolvida por ele.

Uma destas noites, estava reunida com os meus colegas do grupo de teatro, a ensaiar a peça que teremos muito gosto de levar a palco ainda este ano, se nos for permitido pois os avanços e recuos são enormes, quando, sem nos darmos conta, fomos surpreendidos por uma viagem no tempo.

Convém que deixe bem claro que somos uma Associação cultural, identificada por quem de direito e que os ensaios são feitos no salão paroquial de uma igreja. É um recurso de que dispomos e foi o acordo feito com a Associação e o padre da paróquia. O espaço é usado exclusivamente para esse fim e foi nesse mesmo local que tivemos ensaios para levar à cena peças que oferecemos a todos.

Subitamente, sem que ninguém estivesse à espera, chega o tribunal da inquisição corporizado na figura de um padre idoso e acusador. O senhor, talvez julgando ser deus, ai valha-me deus que se me quebra o verniz!, nem cumprimentou os presentes, passando logo a presidir à acusação, mesmo que não usasse o famoso chapéu com borlas para ser levado a sério.

Assim, sem anestesia nem nada, um grupo de seis adultos, passou a ser enxovalhado, acusado e humilhado, como se fossem uns meros e perigosos fora da lei. O tom altivo e cheio de jactância que usou, além de lhe retirar qualquer razão, provou que deus faz escolhas muito erradas para os seus representantes. Ora não é na ideia de deus que todos são seus filhos? Afinal há os que são enteados e tratados com desprezo.

Para se proceder a acusações há que haver provas e como quando não se quer emprestar, qualquer desculpa serve, toca de chamar todos os nomes que trazia no bolso: ladrões, usurpadores e até ficou bem clara a ideia de uma certa prostituição. É bonito. Uma pessoa sente-se acolhida na casa do senhor que devia ser de todos.

Perante os factos e sem argumentos, o tom eleva-se numa súplica ao pai, talvez pedindo que lhe fornecesse provas do que não pode haver. A Idade Média só devia ser mais escura e mal cheirosa que o caráter era mesmo este. A tocha para queimar as bruxas, que até é posterior, estava acesa e bem forte. A camisa do senhor ganhava vida própria e a língua enrolava-se com palavras que lhe ficavam mal.

Desculpou-se por ser italiano e ter dificuldade na articulação de certos vocábulos, o que não é verdade pois expressou-se bem, em tom alto e bom som. Ocorreram-me algumas palavrinhas em italiano mas guardei-as para mim pois tenho mais nível do que alguém que devia ser um exemplo. Entende-se agora a falta de vocação e os espaços vazios nas igrejas.

Perante a realidade, as desculpas seriam bem vindas mas quem nasce torto escusa de se querer esticar. Ficou bem pior a emenda e é inadmissível que um padre tenha um comportamento deste teor. É assim que quer salvar as almas? Pois se nem a sua, que anda à deriva num espaço secular atrasado, retrógrado e bafiento, consegue, como fará com os que estão perdidos?

Apenas um homem e fez um estrago que não terá mais reparo. Uma quebra de honra, falando de quem não se pode defender, acusando o antecessor e soltando, pelos olhos e boca, o fel que nem o peixe de Tobias sarava. Assim deve ter sido a vida de milhares de pessoas que foram acusadas injustamente, por terem cometidos actos que não foram nunca seus. Dizia ele, que tinha autoridade para falar. Que pena, era mais para se calar, que direitos todos temos e os mais poderosos são os argumentos de defesa, por acusações que só circulam nas cabeças mal formadas e sem educação.

Mostrou quem era, um homem machista, injusto, frio e sem um pingo de clemência ou compaixão. Tivesse sido ao contrário e certamente que o resultado seria outro. Estando presente apenas um homem, no grupo, ainda perguntou quem era fulano de tal. A cegueira do ódio, a razia das cabeças a rolar e a pureza que nunca existiu, toldou-lhe a mente de tal forma que se queimou sozinho. Fel que não cura a cegueira pode matar de ódio.

Nunca fui crente e perante um exemplo tão evidente de violência e de maldizer, resta-me desejar aos paroquianos que rezem para que este pastor de almas arrastadas, seja substituído em breve. O céu deve estar envergonhado e o diabo bateu palmas, na certa. Não admito que falem nesse tom comigo e pouco me importa que seja um padre. Foi um estúpido e ordinário. A sorte dele foi ter lidado com gente bem formada.

No final disse qualquer coisa caricata, como o seu discurso todo o tempo e, entredentes, desejei-lhe um bom regresso à Idade Média e aos concílios onde se discutia se as mulheres eram seres dotados de alma, uma vez que os homens não o são. Que faça boa viagem e não se perca no século. Sugiro o X, que é mais alegre e animado.

Ele há coisas que não deviam acontecer mas ainda bem que são comigo. Sugo-lhes o sumo e ainda consigo fazer uma limonada. Aquela casa parece ter algo que atrai a raiva, a arrogância e o convencimento. Alguns dos jovens que a frequentam são tão queridos, fofos e altruístas que até olham para as outras pessoas com ar de desdém. Que fixe!

Que se acenda a fogueira!.