Os novos medievais
Margarida Vale
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Tribunal da Inquisição - século XXI
- Partilhar 25/09/2021
Quando comecei a escrever por aqui, decidi
dar o nome de Novos Medievais à minha
rúbrica. O título prendeu-se com o facto de
as pessoas estarem em tempos de
obscurantismo e de terem esquecido o que
significa lucidez e bom senso. Estamos num
século onde a informação está disponível
para quem a quiser procurar mas, na verdade,
é bem mais fácil "engolir" o que se vai
dizendo e não cansar os neurónios.
Estes precisam de ser ginasticados e sem
essa força de querer, perdem-se por caminhos
estranhos, em boqueirões onde a luz não
penetra e tudo é permitido. Usar a cabeça e
pensar por si é um mote quase revolucionário
pois deixar-se ir é sempre suave e sem
percalços. Só que não. Os loucos, afinal são
os que se deixaram cegar e não os cegos.
Estava longe de pensar que seria
testemunha e atriz num episódio onde a
igreja, aquela instituição tão santa que
forma homens de bens e dá a mão a quem
precisa, ainda tem em seu seio seres de
caráter muito duvidoso e malévolo. Se
representação do marrafico houvesse, este
senhor podia encarná-la com perfeita forma.
Aliás, o papel assenta-lhe que nem uma luva
e o tom em que o fez é a prova da falta de
humildade e nobreza de muitos, em personagem
tipo desenvolvida por ele.
Uma destas
noites, estava reunida com os meus colegas
do grupo de teatro, a ensaiar a peça que
teremos muito gosto de levar a palco ainda
este ano, se nos for permitido pois os
avanços e recuos são enormes, quando, sem
nos darmos conta, fomos surpreendidos por
uma viagem no tempo.
Convém que deixe
bem claro que somos uma Associação cultural,
identificada por quem de direito e que os
ensaios são feitos no salão paroquial de uma
igreja. É um recurso de que dispomos e foi o
acordo feito com a Associação e o padre da
paróquia. O espaço é usado exclusivamente
para esse fim e foi nesse mesmo local que
tivemos ensaios para levar à cena peças que
oferecemos a todos.
Subitamente, sem
que ninguém estivesse à espera, chega o
tribunal da inquisição corporizado na figura
de um padre idoso e acusador. O senhor,
talvez julgando ser deus, ai valha-me deus
que se me quebra o verniz!, nem cumprimentou
os presentes, passando logo a presidir à
acusação, mesmo que não usasse o famoso
chapéu com borlas para ser levado a sério.
Assim, sem anestesia nem nada, um grupo
de seis adultos, passou a ser enxovalhado,
acusado e humilhado, como se fossem uns
meros e perigosos fora da lei. O tom altivo
e cheio de jactância que usou, além de lhe
retirar qualquer razão, provou que deus faz
escolhas muito erradas para os seus
representantes. Ora não é na ideia de deus
que todos são seus filhos? Afinal há os que
são enteados e tratados com desprezo.
Para se proceder a acusações há que
haver provas e como quando não se quer
emprestar, qualquer desculpa serve, toca de
chamar todos os nomes que trazia no bolso:
ladrões, usurpadores e até ficou bem clara a
ideia de uma certa prostituição. É bonito.
Uma pessoa sente-se acolhida na casa do
senhor que devia ser de todos.
Perante os factos e sem argumentos, o tom
eleva-se numa súplica ao pai, talvez pedindo
que lhe fornecesse provas do que não pode
haver. A Idade Média só devia ser mais
escura e mal cheirosa que o caráter era
mesmo este. A tocha para queimar as bruxas,
que até é posterior, estava acesa e bem
forte. A camisa do senhor ganhava vida
própria e a língua enrolava-se com palavras
que lhe ficavam mal.
Desculpou-se por
ser italiano e ter dificuldade na
articulação de certos vocábulos, o que não é
verdade pois expressou-se bem, em tom alto e
bom som. Ocorreram-me algumas palavrinhas em
italiano mas guardei-as para mim pois tenho
mais nível do que alguém que devia ser um
exemplo. Entende-se agora a falta de vocação
e os espaços vazios nas igrejas.
Perante a realidade, as desculpas seriam bem
vindas mas quem nasce torto escusa de se
querer esticar. Ficou bem pior a emenda e é
inadmissível que um padre tenha um
comportamento deste teor. É assim que quer
salvar as almas? Pois se nem a sua, que anda
à deriva num espaço secular atrasado,
retrógrado e bafiento, consegue, como fará
com os que estão perdidos?
Apenas um
homem e fez um estrago que não terá mais
reparo. Uma quebra de honra, falando de quem
não se pode defender, acusando o antecessor
e soltando, pelos olhos e boca, o fel que
nem o peixe de Tobias sarava. Assim deve ter
sido a vida de milhares de pessoas que foram
acusadas injustamente, por terem cometidos
actos que não foram nunca seus. Dizia ele,
que tinha autoridade para falar. Que pena,
era mais para se calar, que direitos todos
temos e os mais poderosos são os argumentos
de defesa, por acusações que só circulam nas
cabeças mal formadas e sem educação.
Mostrou quem era, um homem machista,
injusto, frio e sem um pingo de clemência ou
compaixão. Tivesse sido ao contrário e
certamente que o resultado seria outro.
Estando presente apenas um homem, no grupo,
ainda perguntou quem era fulano de tal. A
cegueira do ódio, a razia das cabeças a
rolar e a pureza que nunca existiu,
toldou-lhe a mente de tal forma que se
queimou sozinho. Fel que não cura a cegueira
pode matar de ódio.
Nunca fui crente
e perante um exemplo tão evidente de
violência e de maldizer, resta-me desejar
aos paroquianos que rezem para que este
pastor de almas arrastadas, seja substituído
em breve. O céu deve estar envergonhado e o
diabo bateu palmas, na certa. Não admito que
falem nesse tom comigo e pouco me importa
que seja um padre. Foi um estúpido e
ordinário. A sorte dele foi ter lidado com
gente bem formada.
No final disse
qualquer coisa caricata, como o seu discurso
todo o tempo e, entredentes, desejei-lhe um
bom regresso à Idade Média e aos concílios
onde se discutia se as mulheres eram seres
dotados de alma, uma vez que os homens não o
são. Que faça boa viagem e não se perca no
século. Sugiro o X, que é mais alegre e
animado.
Ele há coisas que não deviam
acontecer mas ainda bem que são comigo.
Sugo-lhes o sumo e ainda consigo fazer uma
limonada. Aquela casa parece ter algo que
atrai a raiva, a arrogância e o
convencimento. Alguns dos jovens que a
frequentam são tão queridos, fofos e
altruístas que até olham para as outras
pessoas com ar de desdém. Que fixe!
Que se acenda a fogueira!.
- n.29 • outubro 2021