Os novos medievais
Margarida Vale
A ciência e a magia | Os filhos e os enteados | Os invisíveis | Os primeiros monges do Ocidente | Os Reinos Merovíngios | Feliz Aniversário | A Peste Negra | Santiago de Compostela | Inês de Castro, o amor eterno | A lepra | O ensino português |
Os Reinos Merovíngios
- Partilhar 27/02/2021
Nos finais do século V, o rei Clóvis
conquista a Gália através das armas. Os
romanos não aceitam esta derrota com
facilidade por isso o período que se segue
será de lutas pelo poder supremo. A boa e a
má vontade dos nobres será testada até ao
extremo através da violência e da desordem.
Esta é a imagem que vai sendo passada na
memória coletiva desta época, um período
muito obscuro e sanguinário.
No
decurso dos séculos V e VI, os Bárbaros
fixaram-se nas regiões da Europa e aí
criaram estados. Dir-se-ia que continuariam
a chacina a eito mas algo se modificou
nestas gentes que acabaram por dar origem a
reinos que deixaram marcas poderosas mas com
sinal oposto ao do seu início. Se antes a
ideia era devastar, agora era conquistar e
assim amealhar.
Oriundos da região do Elba, ao Anglos e os
Saxões, tomaram posse do território que,
mais tarde, ganhará o nome de Inglaterra.
Fundaram sete pequenos estados que ficaram
conhecidos com o nome de Heptarquia.
Nortúmbria, Mércia, Ânglia Oriental, Essex,
Sussex e Wessex. Reinos pagãos que depois se
cristianizaram.
Os Ostrogodos tomaram
Itália em 489-93 fundando um reino que vai
passando de mãos. Meio século depois o
imperador bizantino reconquista-o e, na sua
última vaga de trocas, é substituído pelos
últimos invasores germanos, os Lombardos já
em 568. Um território que andou em bolandas
e que se reinventou.
Os Visigodos, os
mais temíveis e terríveis destruidores de
Roma em 410, arrebanham caminho e seguem até
à Gália, ficando instalados dos dois lados
dos Pirinéus, quer na Aquitânia, quer em
Espanha. Toulose vem a ser a capital do
reino que estende os seus domínios até ao
Loire.
Os Burgúndios instalam-se no
sudoeste da Gália e no final do século V
dominavam toda a zona da bacia do Ródano,
marcando a sua forma de estar e de manter
alianças com quem lhes poderiam trazer os
maiores benefícios políticos, incluindo os
casamentos.
Os Francos ficam no
norte da Gália, dividindo-se em tribos com
reis individuais. É uma destas tribos que
tem como soberano Childerico, pai de Clóvis,
sendo que consegue a unidade destes povos
deixando aos seus sucessores um trabalho
menos penoso.
Clóvis assistirá a
inúmeros confrontos contra todos os
mencionados povos. A guerrilha alastra até
Espanha, contra a resistência basca,
provando que estava apto a qualquer
confronto. As guerrilhas dinásticas são um
palco interessante para a conquista do
poder, mostrando o alastrar da violência
como se fosse um fósforo lançado em palha
seca.
O assassinato político, o que
leva à eliminação do inimigo, é uma técnica
bem explorada nestes tempos apesar de não
ser seu apanágio. A pesada herança romana
assim o obriga. Sem corpo não existem provas
e o dito fica por não dito. Ideia que terá
seguimento ao longo dos tempos.
Clóvis será o primeiro a conduzir a
unificação do seu povo e, como se pode
calcular, passa ordens para que Sigesberto,
o Coxo, rei de Colónia, deixe de existir.
Fica o caminho liberto para que Ragnacário,
rei de Cambrai e Riquier, o seu irmão, sejam
também eliminados. Desta vez foi Clóvis que
tratou do assunto com um machado.
O
sangue não se perdeu e durante anos a
chacina foi contínua chegando a ter
requintes de malvadez de que se destaca o
episódio da morte de Brunilde, uma mulher de
80 anos. Foi presa pelos cabelos à cauda de
um cavalo selvagem. Um espetáculo de teor
pedagógico com os resultados desejados.
Claro que estamos a falar de contendas
dentro da mesma família.
A escalada
de terror e horror inclui ainda os grandes
nobres e os prelados de que se destaca o
martírio do bispo de Autun, Léger. Este, por
se opor a uma certa nomeação, foram-lhe
cortados os lábios e a língua, os olhos
vazados e de seguida, como toque final, é
degolado. Como se tudo não fosse suficiente,
ainda foi ainda lançado a um poço.
É
neste contexto que surge a lei sálica, uma
forma de travar esta onda desenfreada que
invadia povos e se propagava a olhos vistos.
As penas criminais tentam tornar a pena de
talião " olho por olho, dente por dente ",
de forma a quebrar o ritmo das vinganças.
Assim sendo, a forma de reparação dos males
feitos pode ser amenizada com pagamento de
coimas. Criam-se, assim, listas
compensatórias para fechar o ciclo. Caso não
haja possibilidade de pagar, o direito de
represália assiste-lhes.
Tempos
medievais que soam a muito familiares. Hoje
a violência é exercida de modo mais suave,
com nomes elegantes mas que continua a
castrar de forma dolorosa. São as multas, os
castigos, as detenções, o enxovalho público,
o ansiado gozo popular. E o povo é sempre
aquele que mais sabe apontar o dedo e virar
o prego quando é preciso.
As trevas
tendem a descer e a cobrir os céus de hoje.
Se não é pelo lugar de chefia é pelo
mediatismo e, estes novos dirigentes,
precisam de ter um exército grande e bem
domesticado. O pão que lhes lançam, cheio de
ranço, é tido como especial. Os escolhidos,
os que o pensam ser, estão atentos a todos
os movimentos para ver se alguém levantou a
cabeça e se as normas, aquelas que mudam a
toda a hora, estão a ser cumpridas.
Hoje não são os reinos que se degladiam mas
existem somente uma espécie de guerra civil.
De um lado temos os mascarados e do outros
os de cara lavada. Uns aparentam ser as
formigas que se encaminham para o carreiro e
os outros desviam-se para encontrar novas
rotas. Ainda não são muitos, o que provoca o
efeito necessário, o de revolução.
Se
Jesus Cristo não tivesse dito que vinha
salvar os pecadores, todos os que viviam
naquela época continuavam a ser politeístas.
Ele, um, o homem, apenas uma pessoa,
conseguiu virar o mundo e transformá-lo de
tal ordem que se tornou persona non grata.
Se houve muitos que o seguiram, aquando da
sua detenção, esses mesmos, viraram-lhe as
costas e até o insultaram.
Galileu,
aos olhos de agora, seria considerado um
negacionista. Foi forçado a retirar o que
tinha afirmado mas a ciência e o tempo
vieram a dar-lhe toda a razão. Ele sabia mas
o mundo da ignorância onde a população
vivia, era bem mais confortável e seguro do
que aquele que ele apresentava. Era um risco
grande pensar.
A Resistência teve um
papel preponderante. Sem a ajuda preciosa
dos que se chegaram à frente, arriscando a
sua vida para que se soubesse, por artes e
manhas nem sempre fáceis, o que estava
previsto acontecer do lado do inimigo, a
guerra talvez tivesse um outro desfecho. A
coragem e a audácia permitiu que o rumo
desejado fosse atingido.
Salgueiro
Maia não vacilou nem um momento. O que
estava combinado, mesmo com desvios e
percalços, foi levado até ao fim. Era uma
ilegalidade, uma violência maior para um
militar, um capitão que se revoltava. A
ideia inicial podia não ser aquela em que se
transformou mas a sua coragem e a garra,
permitiram-lhe o avanço.
Que se
passa, então? Onde está a fibra dos
destemidos e ousados que deram novas terras
ao mundo e que não se incomodaram de
enfrentar as vagas em barcos que mais
pareciam casca de noz? Os deuses estiveram
do seu lado e encaminharam-nos até à vitória
final, a chegarem a bom porto. Heróis que se
glorificam e que se eternizam.
Onde
reside a herança que nos foi legada? Que é
feito daquela ancestral e poderosa audácia
que favoreceu os bravos e os valentes?
Estaremos destinados a entrar em declínio ou
há esperança de que o Quinto Império ainda
possa ser uma realidade? A liberdade sempre
gostou de passar por aqui e há que a
continuar a acolher e cuidar, como se fosse
sempre jovem e atraente.
- n.22 • março 2021