Os novos medievais
Margarida Vale
| Os invisíveis | Os filhos e os enteados | A ciência e a magia |
Os filhos e os enteados
A sociedade
medieval estava bem fragmentada. O
senhorios eram governados por cada
senhor e as leis e as regras, se assim
se podem chamar, eram da
responsabilidade de cada um. O tecido
social era pouco uniforme sendo que os
servos da gleba seriam os mais fáceis de
moldar. Sem qualquer perspetiva de
futuro, a terra dava-lhes o sustento e
criava-lhes os laços que jamais
conseguiriam cortar. A escravidão tinha
outro nome mas estava em pleno. Uns
pedaços de alguns restos e estava a
família alimentada.
Contudo novos
ventos e novas marés chegaram a uma
Europa que cheirava a mofo. O
Renascimento veio oferecer uma visão
mais alargada da vida e o teocentrismo,
a ideia de que Deus era o centro de
mundo, altera-se para dar lugar à luz
que ensina o novo caminho, o
antropocentrismo, o homem passa a ser a
medida de todas as coisas. Não quer isto
queira dizer que a noção de Deus e da
religião tivesse sido abandonada mas a
frescura das novas ideias aliciavam os
mais afoitos.
Assim, uma nova
sociedade apresenta um caminho mais
aprazível onde a luminosidade e a
abertura da mente terão a primazia.
Itália, não como a conhecemos agora,
será a pioneira do movimento que mudará
as formas de se posicionar. Os povos
desta zona, vivendo com uma confortável
e basta largueza de bens materiais,
serão os arrojados da beleza e cultura
que ainda hoje pode ser apreciada.
Pegando nos clássicos, os Gregos e
os Latinos, dão-lhes uma nova roupagem
usando os novos instrumentos de que
dispõem. As ciências são agora de
interesse coletivo, sobretudo a
matemática e a geometria. Assim sendo o
chamado número de ouro entra em
funcionamento e as proporções, aquilo
que havia sido esquecido, passam a ser
naturais, leves e realistas. O Homem,
ainda adolescente, tarda a dar os
primeiros passos para um jovem adulto.
A máquina do estado inicia-se agora,
criando um monstro que conhecemos muito
bem. Aos poucos os cargos foram sendo
criados de forma a servir um grupo de
gentes que se individualiza e ganha
caráter próprio. É o nascimento da
burocracia, não como a sabemos hoje mas
ainda pequena, envergonhada e cheia de
boa vontade. Uma criança que vai crescer
cheia de manias e de birras, até aos
dias de hoje e que não se cala.
Na Administração Municipal, a Câmara,
detinha o governo através da vereação.
Para isso necessitava de oficiais
subalternos como o escrivão da câmara, o
da almotaçaria, o meirinho, alcaides
pequenos, quadrilheiros, porteiro e
caminheiro. Aqui está um esboço das
necessidades. Na Fazenda estavam os
juízes das sisas, coadjuvados pelos
escrivães, varejadores, alcaides,
meirinhos porteiros e seladores. Outros
cargos importantes eram o tesoureiro e
os recebedores e contadores. Umas
finanças em embrião que se enrolavam de
tal forma que conseguiam cobrir todo o
território.
Mas ainda restava a
parte da Politia, onde os almotacés
tinham uma palavra a dizer, bem como os
juízes dos órfãos que se faziam
acompanhar dos seus respetivos
escrivães, avaliadores e partidores.
Havia ainda o procurador do concelhos
que representava e zelava por um
determinado concelho. Como se compreende
a máquina crescia a olhos vistos e
apenas se fala duma parte da
administração.
Na parte da
Justiça tinham lugar os juízes
ordinários e os juízes de fora que
tinham a função de desempate em
contendas que se arrastavam. Sendo
externos ao concelho seria mais fácil a
tomada de decisão. Neste caso há a
acrescer os oficiais de justiça mais os
escrivães das notas e tabeliães,
escrivães do judicial, inquiridores e
contadores. Uma perfeita especialização,
como se depreende. Resta a Milícia com o
seus oficiais militares e ordenanças que
ainda incluia os alcaides mores dos
castelos, capitães das ordenanças,
alferes das ordenanças e sargentos
mores.
Os tempos agora são
outros. O rei é apenas uma ideia que foi
ficando e a república tomou-lhe o lugar.
O aparelho ficou pesado e forte e
dividiu-se em duas posições bem
desiguais: o setor público e o setor
privado. Ainda são muitos os que
alimentam o sistema e com tendência a
aumentar. A terciarização da sociedade
permite que assim o seja e apresenta
inúmeras vantagens que podem tornar-se o
seu oposto.
Os que estão no
Estado acabam por ter a protecção de um
pai quase invisível mas que os acolhe.
Cuida-os, acarinha-os ainda lhes oferece
doces de tempos em tempos. Mas não
chega, que os meninos choram, barafustam
e fazem birras, clamando que ficaram
esquecidos. E o pai, conscencioso e
atento, continua a ter alguns rebuçados
na manga para os calar.
Os
outros, os que são de outra mãe,
calam-se e não comem. Continuam a olhar
para ver se lhes sobra alguma pequena
migalha mas raramente a conseguem. São
como as meninas feias de família
vulgares que não conseguem casamento nem
dote decente. As gatas borralheiras a
quem não é permitido ter um dia de
descanso e que todos os dias se deparam
com pilhas de loiça para lavar.
Ora, se todos fazem parte do mesmo não
se entendem estas diferenças. Qual o
motivo de tanta discriminação? Não vai
tudo para o mesmo saco? Claro que vai
mas separa-se de modo bem diferente. São
estas, as últimas que servem de carne
para canhão, que alimentam o batalhão
dos que veneram o rei que um dia foi
deposto. Mas não. Eles são os escolhidos
e os outros, os que se vergam.
Façamos um pequeno exercício para melhor
entender. Imaginemos que os enteados, os
que lavam as escadas e as ditas tarefas
menores, deixavam de o fazer. Um dia
acordavam todos mal dispostos e zangados
e recusavam-se a trabalhar. Não serviam
os senhores, não ouviam as suas
solicitações, não produziam nada. Do
outro lado, os patrões, aguardavam
ansiosos pela refeição inicial e pelas
seguintes. Tardava a chegar. Não vinha.
Desapareceu. E agora?
Podem, os
outros, os eleitos, argumentar que eles
também são peças da máquina e que a
sabem olear. E depois? São mais as vezes
que não estão do que as que estão. São
tantas as más vontades que demonstram e
os impedimentos encontrados que só
demonstram uma enorme falta de empatia.
São tantos os que olham para as horas
para se irem embora em vez de as dividir
para as rentabilizar e trabalhar.
Por mais que se avance, que se saiba
evoluir num caminho plano, há quem crie
sempre os obstáculos e as barreiras para
justificar a sua presença e lugar.
Contudo estão bem firmes, de costas
quentes e seguros, apoiados num pai que
os beija e acolhe como se ainda fossem
meninos. Um pai que cegou e não sabe
atribuir as tarefas aos que as sabem
desempenhar mas oferece-as para os
calar.
Os enteados existem em
números grandes, em batalhões de força,
em grupos que sabem como é importante
fazer. Sem estes nada acontecia, tudo
mirrava e desaparecia. O que deixam para
todos, os impostos, são bem mais
elevados do que se pensa, mas no dia em
que não puderem continuar a contribuir,
são os mais lesados, os que menos levam
para o conforto do lar, se ainda
continuarem a ter um lugar que chamem de
seu.
Filhos e enteados, duas
formas bem distintas de tratar os que
são da mesma casa, do mesmo país e que
deveriam ser abraçados do mesmo modo. Os
que continuam do lado do rei estão
sempre com a graça do seu senhor mas os
outros, os que se afoitam e querem que
se faça mais e ainda mais, são olhados
como desertores e serão penalizados.
Caminhamos para os jardins do mal
onde os que ainda sabem ver, avistam uma
luz estranha que os conduz até ao
caminho real.
01-12-2020
- n.19 • dezembro 2020