Os novos medievais
Margarida Vale
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A lepra
- Partilhar 26/07/2021
A lepra é uma doença infecciosa. O
médico Gustav Hansen, em 1873, identificou o
bacilo que a provoca, semelhante ao de Koch,
o responsável pela tuberculose. Esta doença
reveste-se de dois aspetos, sendo que um
deles é a forma tuberculóide, com manchas
que se infiltram nos nervos, de forma lenta
e que lhe provoca uma atrofia das
extremidades que acabam por ser amputadas de
modo espontâneo. Este lento definhar pode
durar até trinta anos. A outra forma é a
lepromatosa, contagiosa, formando nódulos
que se infiltram na pele, provocando o
facies leonino, o osso do orifício nasal
fica erodido e o palato esburacado. Acrescem
ainda as febres, escamas e comichões que
paralisam o corpo. Esta forma é mais rápida
e em cerca de três a cinco anos leva à
morte.
Nos tempos remotos, no auge
das cruzadas, esta doença já era conhecida.
A sua primeira referência é feita em França,
no século II e a mesma remete para um
santuário pagão, em Berry, cuja reputação
milagrosa, curava a doença. A primeira
leprosaria, se assim se pode chamar, tem a
data de 460, construída ao lado da abadia de
Saint-Claude. Os concílios debruçaram-se
sobre o tema e a respetiva assistência,
sendo que, cerca de 580, o bispo de
Chalon-sur-Saône mandou construir um
estabelecimento especializado, junto às
portas da cidade.
Depois desta data
ouve-se falar de novo da doença, no século
VIII, aquando das invasões muçulmanas, que
favoreceram a sua disseminação. Após esta
data, a doença recua até ser falada,
novamente, no século XII. Considerada como
hereditária e incurável, já em pelo século
XX, era tratada com sulfonas, nos Estados
Unidos, em 1943. Mesmo depois da descoberta
do bacilo, não se chegou a uma vacina.
A lepra é um dos flagelos da Idade Média
pois pelo pânico que gera, o horror que
espalha e a condição miserável dos doentes,
leva a uma tomada de medidas preventivas
urgentes de forma a evitar o contágio. No
século XIII, no ocidente, era a doença
dominante. O surto foi resultante das
cruzadas pois foi a época de maior
intercâmbio entre o Ocidente e a zona da
Palestina, onde a lepra é endémica. É
precisamente aí que é fundada, em 1189, a
ordem hospitalária de S. Lázaro, que tem
como mote o cuidado dos leprosos.
Leprosarias, gafarias ou lazaretos são nomes
que identificam os locais onde os doentes
são encerrados para fugir dos olhares
assustados da população e terem um pouco de
paz. Na ausência de conhecimento sobre a
doença, o modo mais eficaz que foi
encontrado, era o afastamento para esses
locais específicos que foram fundados pelos
príncipes. Esta seria a sua participação no
combate à doença e o retomar da
tranquilidade urbana. O leproso era vítima
de denúncia, que podia ser de uma familiar
ou alguém próximo. As autoridades eram
alertadas e o suspeito comparecia perante um
júri.
Inicialmente este era
constituído por leprosos sendo que mais
tarde tinha como membros, um médico, um
preboste e um padre. Se fosse certo que
padecia da doença, seguia-se um ritual que
simbolizava a sua partida: o padre lançava,
sobre a cabeça do leproso, um punhado de
terra do cemitério e isso era como se
tivesse morrido ali. Separado dos demais,
fica sem possibilidade de ter mais vida. Não
podia ter direito a porte de arma, de clamar
justiça ou de casar com uma mulher saudável
e muitos menos batizar os filhos.
Há
toda uma parafrenália de identificação que o
coloca em desvantagem. Tem que usar vestes
especiais, com o aviso do seu estado,
sapatos, luvas e ainda uma espécie de som
especial, umas castanholas que indicavam que
se aproximava. Ao ouvir esse barulho, os
saudáveis afastavam-se e os doentes eram
ainda mais mal tratados, chegando a ouvir
insultos ou ainda estarem sujeitos a
receberem pedras.Nas leprosarias os cuidados
eram mínimos, apenas uns banhos e unguentos
que de nada serviam. Em certos casos ainda
se praticava a castração do homem.
Nestas circunstâncias, os leprosos tornam-se
vagabundos pois ser internado significa que
a vida acaba de vez. Como não podem entrar
nas cidades, são errantes e tentam
sobreviver conforme conseguem. O cenário
pode parecer dantesco, com os doentes a
caminharem em busca de alimento. Alguns
camponeses, poucos, condoíam-se destes
desgraçados e alimentavam estes corpos
miseráveis. O ódio que gera a sua presença
mostra bem como era o espírito da época que,
curiosamente, nada mudou no século XXI.
Os reis dão grandes somas de dinheiro
para as gafarias como forma de seguir as
mais básicas indicações do evangelho que
incita à ajuda ao próximo. Contudo a
associação que é feita entre esta doença e o
pecado torna tudo mais complexo. Em França,
em 1320/1321, corria o boato de que os
leprosos, enjaulados por judeus e muçulanos,
envenenavam as fontes para matar os cristãos
saudáveis. É assim que muitos leprosos
morrem queimados nas fogueiras e não da
doença.Tudo isto se perpetuou até aos finais
do século XIV mas outros desafios apareceram
para continuar o medo.
Hoje em dia a
doença ainda existe e persiste. Cerca de 10
milhões de pessoas ainda são afetadas pela
mesma, mudando apenas a situação geográfica.
Na Europa são poucos os casos, pois a mesma
chega através de um sistema de importação.
Em África, sobretudo na dita África Negra, a
contaminação é muito elevada e a sua
contagem torna-se impossível. Na Ásia, a
maior incidência é na Índia, com cerca de
dois milhões de doentes, tendo-se, então,
propagado à Oceânia através da imigração
chinesa e japonesa. No que concerne a
América, a América Latina, palco de grandes
grupos de escravos, ainda é uma zona com
grande incidência. O Brasil terá cerca de
160000 leprosos.
Apesar de se saber
que é um bacilo o responsável pela doença, o
mito da praga ainda se propaga. Como
tratamento para a mesma, o primeiro passo
continua a ser o isolamento, a profilaxia
que evita o terror geral. Sabe-se que o
microorganismo responsável é o mycobacterium
leprae, que se vulgarizou pelo nome de
bacilo de Hansen. O germe da lepra penetra
no organismo através das mucosas, da pele e
ainda das vias respiratórias,
disseminando-se por todo o corpo. O
diagnóstico é clínico e deve ser confirmado
através de uma biópsia cutânea. O tratamento
de eleição é a DDS, diaminodifenilsulfona,
isolada e em associação com a rifampicina.
Este tratamento pode durar até dez anos.
Em Portugal só se conheceu a primeira
evidência paleopatológica em 2003,
resultante de uma escavação próxima da
Ermida de Santo André, em Beja. Foram
encontrados corpos de indivíduos que teriam
sofrido da doença, o que se verificou
através das lesões. Outra descoberta foi
feita em Lagos, com o mesmo tipo de lesão.
Sabe-se que existiram cerca de 70
leprosarias, ou gafarias, conforme a
nomenclatura, desde o século XI, que tinham
como mote o internamento destes doentes,
sendo que não se conhecia mais nenhuma forma
de tratar a doença.
A gafaria mais
conhecida foi o Hospital Rovisco Pais, no
século XX. O professor Bissaya Barreto criou
a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, uma
propriedade enorme, de teor agrícola, a
Quinta da Fonte Quente, na Tocha. Aí os
doentes, com uma lotação para mil, ficavam
isolados das cidades e assim sendo evitavam
os surtos de afastamento e de rejeição. O
internamento era compulsivo e os seus
direitos deixavam de existir. Qualquer
tentativa de fuga era punível e o trabalho
funcionava como processo terapêutico e de
formação profissional. Esta era uma medida
já a pensar na reinserção social. O ponto
fundamental era a alfabetização dos que
podiam sobreviver.
Independentemente
da doença ter ou não cura, o cinema
eternizou-a como algo de muito negativo e
até mesmo assustador. Os leprosos eram os
proscritos, os bandidos e por isso o castigo
era aquela doença que o fazia morrer aos
poucos, por não terem cumprido certas regras
impostas pela sociedade. O imaginário
popular tende a eternizar este mito. A
palavra leproso era dita em tom receoso,
como se fosse uma forma de nunca chegar
perto do que se desconhecia, mas que
aterrorizava todos.
O curioso é que
em pleno século XXI os medos ancestrais
regressaram todos levando a que as pessoas
se afastem umas das outras e que se esqueçam
do poder do toque e da sensibilidade de cada
um. Há um saltar constante de egoísmos
diários, de não querer saber e de denúncias
como se nada se soubesse sobre medicina.
Esta ciência continua em evolução, como é
natural, mas a humanidade, aquilo que dá
destaque às pessoas, parece estar em modo de
esgotado ou até mesmo de desconhecido.
Agora não existem os sons matraqueantes
das castanholas de aviso, mas sim os designs
digitais que continuam a fazer a
diferenciação entre as pessoas. Novos tempos
e novos métodos de separar, de criar
divisões, de afastar e manter os que não se
deixam moldar, longe dos que tudo permitem.
Em nome da saúde de todos, matam-se os sãos
e os fracos e incapazes, ganham primazia e
são o novo exército que se chega à frente e
faz ouvir a sua voz. Mesmo que nem todos
concordem, permitem que lhes seja roubada a
liberdade de decidir.
- n.27 • agosto 2021