Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

A lepra

A lepra é uma doença infecciosa. O médico Gustav Hansen, em 1873, identificou o bacilo que a provoca, semelhante ao de Koch, o responsável pela tuberculose. Esta doença reveste-se de dois aspetos, sendo que um deles é a forma tuberculóide, com manchas que se infiltram nos nervos, de forma lenta e que lhe provoca uma atrofia das extremidades que acabam por ser amputadas de modo espontâneo. Este lento definhar pode durar até trinta anos. A outra forma é a lepromatosa, contagiosa, formando nódulos que se infiltram na pele, provocando o facies leonino, o osso do orifício nasal fica erodido e o palato esburacado. Acrescem ainda as febres, escamas e comichões que paralisam o corpo. Esta forma é mais rápida e em cerca de três a cinco anos leva à morte.

Nos tempos remotos, no auge das cruzadas, esta doença já era conhecida. A sua primeira referência é feita em França, no século II e a mesma remete para um santuário pagão, em Berry, cuja reputação milagrosa, curava a doença. A primeira leprosaria, se assim se pode chamar, tem a data de 460, construída ao lado da abadia de Saint-Claude. Os concílios debruçaram-se sobre o tema e a respetiva assistência, sendo que, cerca de 580, o bispo de Chalon-sur-Saône mandou construir um estabelecimento especializado, junto às portas da cidade.

Depois desta data ouve-se falar de novo da doença, no século VIII, aquando das invasões muçulmanas, que favoreceram a sua disseminação. Após esta data, a doença recua até ser falada, novamente, no século XII. Considerada como hereditária e incurável, já em pelo século XX, era tratada com sulfonas, nos Estados Unidos, em 1943. Mesmo depois da descoberta do bacilo, não se chegou a uma vacina.

A lepra é um dos flagelos da Idade Média pois pelo pânico que gera, o horror que espalha e a condição miserável dos doentes, leva a uma tomada de medidas preventivas urgentes de forma a evitar o contágio. No século XIII, no ocidente, era a doença dominante. O surto foi resultante das cruzadas pois foi a época de maior intercâmbio entre o Ocidente e a zona da Palestina, onde a lepra é endémica. É precisamente aí que é fundada, em 1189, a ordem hospitalária de S. Lázaro, que tem como mote o cuidado dos leprosos.

Leprosarias, gafarias ou lazaretos são nomes que identificam os locais onde os doentes são encerrados para fugir dos olhares assustados da população e terem um pouco de paz. Na ausência de conhecimento sobre a doença, o modo mais eficaz que foi encontrado, era o afastamento para esses locais específicos que foram fundados pelos príncipes. Esta seria a sua participação no combate à doença e o retomar da tranquilidade urbana. O leproso era vítima de denúncia, que podia ser de uma familiar ou alguém próximo. As autoridades eram alertadas e o suspeito comparecia perante um júri.

Inicialmente este era constituído por leprosos sendo que mais tarde tinha como membros, um médico, um preboste e um padre. Se fosse certo que padecia da doença, seguia-se um ritual que simbolizava a sua partida: o padre lançava, sobre a cabeça do leproso, um punhado de terra do cemitério e isso era como se tivesse morrido ali. Separado dos demais, fica sem possibilidade de ter mais vida. Não podia ter direito a porte de arma, de clamar justiça ou de casar com uma mulher saudável e muitos menos batizar os filhos.

Há toda uma parafrenália de identificação que o coloca em desvantagem. Tem que usar vestes especiais, com o aviso do seu estado, sapatos, luvas e ainda uma espécie de som especial, umas castanholas que indicavam que se aproximava. Ao ouvir esse barulho, os saudáveis afastavam-se e os doentes eram ainda mais mal tratados, chegando a ouvir insultos ou ainda estarem sujeitos a receberem pedras.Nas leprosarias os cuidados eram mínimos, apenas uns banhos e unguentos que de nada serviam. Em certos casos ainda se praticava a castração do homem.

Nestas circunstâncias, os leprosos tornam-se vagabundos pois ser internado significa que a vida acaba de vez. Como não podem entrar nas cidades, são errantes e tentam sobreviver conforme conseguem. O cenário pode parecer dantesco, com os doentes a caminharem em busca de alimento. Alguns camponeses, poucos, condoíam-se destes desgraçados e alimentavam estes corpos miseráveis. O ódio que gera a sua presença mostra bem como era o espírito da época que, curiosamente, nada mudou no século XXI.

Os reis dão grandes somas de dinheiro para as gafarias como forma de seguir as mais básicas indicações do evangelho que incita à ajuda ao próximo. Contudo a associação que é feita entre esta doença e o pecado torna tudo mais complexo. Em França, em 1320/1321, corria o boato de que os leprosos, enjaulados por judeus e muçulanos, envenenavam as fontes para matar os cristãos saudáveis. É assim que muitos leprosos morrem queimados nas fogueiras e não da doença.Tudo isto se perpetuou até aos finais do século XIV mas outros desafios apareceram para continuar o medo.

Hoje em dia a doença ainda existe e persiste. Cerca de 10 milhões de pessoas ainda são afetadas pela mesma, mudando apenas a situação geográfica. Na Europa são poucos os casos, pois a mesma chega através de um sistema de importação. Em África, sobretudo na dita África Negra, a contaminação é muito elevada e a sua contagem torna-se impossível. Na Ásia, a maior incidência é na Índia, com cerca de dois milhões de doentes, tendo-se, então, propagado à Oceânia através da imigração chinesa e japonesa. No que concerne a América, a América Latina, palco de grandes grupos de escravos, ainda é uma zona com grande incidência. O Brasil terá cerca de 160000 leprosos.

Apesar de se saber que é um bacilo o responsável pela doença, o mito da praga ainda se propaga. Como tratamento para a mesma, o primeiro passo continua a ser o isolamento, a profilaxia que evita o terror geral. Sabe-se que o microorganismo responsável é o mycobacterium leprae, que se vulgarizou pelo nome de bacilo de Hansen. O germe da lepra penetra no organismo através das mucosas, da pele e ainda das vias respiratórias, disseminando-se por todo o corpo. O diagnóstico é clínico e deve ser confirmado através de uma biópsia cutânea. O tratamento de eleição é a DDS, diaminodifenilsulfona, isolada e em associação com a rifampicina. Este tratamento pode durar até dez anos.

Em Portugal só se conheceu a primeira evidência paleopatológica em 2003, resultante de uma escavação próxima da Ermida de Santo André, em Beja. Foram encontrados corpos de indivíduos que teriam sofrido da doença, o que se verificou através das lesões. Outra descoberta foi feita em Lagos, com o mesmo tipo de lesão. Sabe-se que existiram cerca de 70 leprosarias, ou gafarias, conforme a nomenclatura, desde o século XI, que tinham como mote o internamento destes doentes, sendo que não se conhecia mais nenhuma forma de tratar a doença.

A gafaria mais conhecida foi o Hospital Rovisco Pais, no século XX. O professor Bissaya Barreto criou a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, uma propriedade enorme, de teor agrícola, a Quinta da Fonte Quente, na Tocha. Aí os doentes, com uma lotação para mil, ficavam isolados das cidades e assim sendo evitavam os surtos de afastamento e de rejeição. O internamento era compulsivo e os seus direitos deixavam de existir. Qualquer tentativa de fuga era punível e o trabalho funcionava como processo terapêutico e de formação profissional. Esta era uma medida já a pensar na reinserção social. O ponto fundamental era a alfabetização dos que podiam sobreviver.

Independentemente da doença ter ou não cura, o cinema eternizou-a como algo de muito negativo e até mesmo assustador. Os leprosos eram os proscritos, os bandidos e por isso o castigo era aquela doença que o fazia morrer aos poucos, por não terem cumprido certas regras impostas pela sociedade. O imaginário popular tende a eternizar este mito. A palavra leproso era dita em tom receoso, como se fosse uma forma de nunca chegar perto do que se desconhecia, mas que aterrorizava todos.

O curioso é que em pleno século XXI os medos ancestrais regressaram todos levando a que as pessoas se afastem umas das outras e que se esqueçam do poder do toque e da sensibilidade de cada um. Há um saltar constante de egoísmos diários, de não querer saber e de denúncias como se nada se soubesse sobre medicina. Esta ciência continua em evolução, como é natural, mas a humanidade, aquilo que dá destaque às pessoas, parece estar em modo de esgotado ou até mesmo de desconhecido.

Agora não existem os sons matraqueantes das castanholas de aviso, mas sim os designs digitais que continuam a fazer a diferenciação entre as pessoas. Novos tempos e novos métodos de separar, de criar divisões, de afastar e manter os que não se deixam moldar, longe dos que tudo permitem. Em nome da saúde de todos, matam-se os sãos e os fracos e incapazes, ganham primazia e são o novo exército que se chega à frente e faz ouvir a sua voz. Mesmo que nem todos concordem, permitem que lhes seja roubada a liberdade de decidir.