Os novos medievais
Margarida Vale
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Santiago de Compostela
- Partilhar 26/05/2021
Em 1078, Afonso VI, rei de Leão e Castela,
decidiu reconstruir a basílica consagrada ao
apóstolo Tiago Maior, tendo recebido todo o
apoio do bispo de Compostela. Tudo se prende
a uma tradição remota, de 951, quando
Gotescalc, bispo de Puy, efetua a primeira
peregrinação a Santiago de Compostela, um
hábito que não existia e que se tornou
vulgar. Somente no final do século XI,
quando a insegurança abandona o norte da
Europa, com a acalmia das várias investidas
mouras, este caminho religioso conhece o seu
apogeu.
Segundo uma tradição, do
século VIII, depois da morte de Tiago,
decapitado em Jerusalém, os discípulos
teriam depositado o seu corpo numa barca, de
forma a manter o resto da sua integridade.
Os anjos encaminharam a mesma até Espanha,
reino já evangelizado por ele e que o
estimava. Outra lenda fala de um eremita, no
século IX que, surpreendido pela luz de uma
estrela, seguia-a até chegar ao local exato
da sua sepultura, que estava enterrado na
Galiza, em Padron.
O bispo autenticou
os despojos e mandou construir uma igreja
nesse local. Rapidamente se tornou o patrono
da luta contra os infiéis, os mouros, que
dominavam uma grande parte do território.
Num ápice foi-lhe atribuído o epíteto de
Matamore, matador de mouros, É curioso
verificar que um homem pacífico e de cariz
peregrino, se transforme em guerreiro. Uma
coabitação precisa e necessária. A fé tem
contornos que o comum dos mortais nem sempre
consegue alcançar.
Os trabalhos são
entregues a dois mestres de obra que se
supõe serem de origem francesa e com
experiência neste tipo de edifícios. Tem 90
metros de comprimento e é adotada a cruz
latina como planta, o que inclui três naves
e um vasto transepto com 67 metros de
comprimento. Na parte traseira situa-se o
altar mor e abriga o túmulo do santo que
pode e deve ser visitado. Em redor, várias
capelas convidam à oração e o silêncio que
se sente é de emoção. Com o passar do tempo,
a decoração original foi sendo alterada.
Em meados do século XIII, Mestre Mateo,
procede uma remodelação no portal principal
e esculpe representações com grande
significado teológico. Aí se encontra
representado o santo, Tiago com vestes de
peregrino, sentado e acolhendo os que o
pretendem visitar. Todos este belo trabalho
acabou por ser em vão pois no século XVIII o
estilo barroco deu entrada nesta igreja e
nasce assim o Pórtico da Glória, uma obra
emblemática e que atrai ainda mais
peregrinos, sejam eles religiosos ou não.
Este Pórtico, inicialmente pensado pelo
Mestre Mateo, tinha como missão nivelar as
naves do templo com o terreno circundante e
por isso foi construída uma nova cripta. As
figuras esculpidas tinham uma missão
pedagógica e calmante pois a forma como eram
detalhadas, levava os crentes a evitar o
contacto direto. Foram, posteriormente
retiradas e podem ser vistas no museu da
catedral. O policromado esbateu-se e restam
poucos vestígios das suas cores.
Os
peregrinos que pretendem entrar em Santiago
têm um longo caminho a percorrer. Trajados
com uma túnica curta, com uma romeira e um
chapéu de abas largas enfeitado com uma
cocha de vieira, o símbolo de Tiago, tinham
ainda uma saca de mendigo e um bordão. Era
os auxiliar para a caminhada e a saca seria
para recolha dos alimentos que conseguissem.
Antes da partida eram abençoados pelo bispo
e seguiam em grupo. Nos tempos idos as
estradas, poeirentas e estreitas, pouco
tinham de segurança e por isso os grupos
ofereciam uma forma de apoio e de
sobrevivência.
As pernoitas eram
feitas nos mosteiros ou nos hospícios, os
que incluíam esse serviço pois os albergues
eram zonas onde a marginalidade acontecia
com facilidade e assim sendo os roubos eram
frequentes. A comida era mendigada mas como
os cristãos sabiam que deviam ajudar os
seus, por pouco que tivessem, não faltava
para acalmar o estômago que pedia atenção. O
caminho era longo mas o mote era ainda
maior. Quando chegavam ao Monte da Alegria,
sobranceiro a Compostela, as dúvidas que
podiam existir, dissipavam-se e sentiam que
a recompensa pelo esforço era grande.
Antes de entrar na Catedral o peregrino
tinha um ritual a cumprir. Era a purificação
através da lavagem e onde as dores que
pudessem sentir ficavam esquecidas. Passavam
a noite na catedral e entoavam cânticos como
forma de agradecimento. No dia seguinte era
o tempo das oferendas e da missa. Só depois
é que se dirigiam ao altar mor e rezavam
junto do túmulo do santo. Havia lugar ao
beijo e às procissões, ao confessar e à
comunhão. O ponto alto estava atingido. A
partir do século XIV surge a compostela, um
certificado que comprova a peregrinação e
que deve ser marcado em todos os pontos.
As motivações de cada um eram diferentes
e criavam expetativas fortes e singulares. A
viagem é feita de livre vontade para pagar
uma promessa, para procurar a cura ou apenas
por agradecimento. No caso oposto, onde a
dita era uma obrigação, seria uma penitência
para a remissão dos pecados. Também havia
quem fizesse a peregrinação em nome de
outros para que Tiago tivesse a graça de
auxiliar os que não a podiam fazer. A
finalidade era sempre a mesma, o que variava
era a forma de a obter.
Para um
cristão estar junto da tumba de um santo era
a porta aberta para a solução da questão que
lhe colocava. Era a cura da doença, o
desenlace do problema ou ainda os mais
variados milagres que o patrono conseguia
fazer. Aos doentes era dada a saúde, aos
cegos a vista, aos mudos desata-se a língua,
os surdos passam a ouvir, os coxos andam
naturalmente, os possessos são libertados do
mal, o pecado é perdoado e ao céu abre as
suas portas para receber os crentes.
O Caminho de Santiago tem sete rotas
históricas: o francês, o do Norte, a Via de
la Plata, a Rota Marítima, o inglês, o
Primitivo e o Português. Qualquer um deles
tem como missão chegar a Santiago de
Compostela e orar ao santo. Ou apenas
conversar com ele e admirar as maravilhas da
catedral. Dos tempos antigos até à
modernidade tanto aconteceu e por isso os
motes sofreram alterações. A época medieval
deixou marcas profundas mas os que chegam
agora sabem como se adaptar.
Percorrer os caminhos que os antepassados
calcorrearam, com dor e lamento é um valor
acrescido e poderoso. As estradas são as
mesmas, mas os tempos são outros. Agora é
tudo mais fácil mas o mote pode ser igual. O
peregrino quer sempre algo de volta, o seu
eu que foi sendo moldado ao longo da viagem.
Hoje pode ser feito através de outros meios
e até o carro, a bicicleta ou mesmo o
cavalo, são auxiliares para o mesmo fim. Se
antes o peregrino ia só, encontrando outros
que palmilhavam as mesmas rotas, agora é
muito possível cruzar-se com famílias que
iniciam os seus elementos mais novos nesta
tão salutar prática. Há a cultura e há a
religião.
Quando o peregrino chega à
Cruz de Ferro, sente que os outros todos, os
milhares que lá estiveram, o abraça pois é
um local emblemático. A partir de agora o
caminho é sempre a descer e o destino está
mais próximo. É neste local muito aprazível
que se deposita o que se leva de propósito:
um santo, um lenço, um pedaço de cabelo, um
escrito, uma pedra, o que se quiser. Eu
deixei a pedra que foi escolhida, de
propósito, para esse fim. Estará em
confraternização com todos os votos de cada
um.
Não perca uma visita por Santiago
de Compostela com detalhes acrescidos. Agora
é zona de gentes bem jovens, que estudam na
Universidade e, por isso, os bares estão
sempre cheios de alegria e boa disposição. A
noite também faz parte do final da
peregrinação e pode ser celebrada em grande.
Visite o Casco Histórico e oiça as vozes dos
que por ali andaram e deixaram os seus
lamentos e desejos. Passeie nos vários
parques que estão equipados para receber os
visitantes. Oiça os pássaros e sente-se no
chão. Sinta tudo. Viva o momento.
Assista à Missa do Peregrino e delicie-se
com o Botafumeiro, o incensário que seis
homens empurram, de um lado para o outro da
nave, perfumando o ambiente e soltando as
mil e umas bênçãos que todos desejam. O som
que se ouve é inesquecível e dá vontade de
voltar, de sentir, com outros a mesma
sensação de pertença e de união. Qualquer
lugar é perfeito para se sentar e ficar.
Fique. Ajoelhe-se perante o santo e coloque
os dedos nos locais certos. Dizem que ajuda
os estudantes e os necessitados mas a
verdade é que tudo justifica o seu caminho.
Visite o Museo do Pobo Galego. Instalado
num edifício emblemático, o antigo convento
de San Domingos de Bonaval, reconhecido como
"centro sintetizador dos museus e coleções
antropológicas da Galiza". É um concentrado
das tradições e da memória coletiva dos
galegos, ao longo dos anos. Uma viagem comum
a muitos povos e uma forma de se sentir
ainda mais integrado na cultura popular.
Além da coleção permanente ainda pode
usufruir das exposições temporárias.
Este ano é o Xacobeo, ou Jacobeo. É o nome
que se dá ao ano santo, quando o dia 25 de
Julho, data de nascimento do santo, S Tiago,
calha a um domingo. Isto significa que
existem mais festas e mais comemorações
especiais numa terra já de si sempre em
festa. Como no ano passado, a pandemia não
permitiu celebrações assim sendo, o ano
santo prolonga-se até 2022 e terá muito para
oferecer. Aproveite para conhecer os
recantos desta cidade e entre em tudo o que
seja possível. Há cafés com decorações
únicas e ruas que sabem abraçar.
O
peregrino tem os seus símbolos, que o
identificam em cada sítio por onde passa. Um
deles é a vieira, uma concha que tem o
tamanho certo para recolher a água e servir
de bitola para os alimentos. Um pouco de
arroz ou qualquer outro abafo do corpo, se
couber naquele espaço, é suficiente para o
corpo. Os sulcos são uma metáfora pois
convergem para o mesmo ponto, que é a
catedral com o santo, a rota que todos une.
O bordão ajuda na caminhada e se tiver um
gancho serve de auxiliar de transporte, um
outro braço que ajuda a carregar. A
compostela é o passaporte, ou seja, onde é
registado o percurso que cada um fez pois
recebe um carimbo por cada local percorrido.
O mais importante de todos é o que é
colocado em Santiago de Compostela.
É
natural que em cada recanto seja presenteado
com grupos de músicos ou de novos
saltimbancos que alegram todos com a sua
arte. A cidade fervilha e não dorme. Há vida
em todos os locais e as comidas são outro
atrativo. Fique ciente que está na Galiza e
come-se bem em todos os cafés, bares,
restaurantes e similares. Aventure-se e
deixe-se levar por tantos anos de história e
de lendas. Compre recuerdos, vagueie pelas
ruelas e sente-se nos degraus que, outrora,
foram companheiros de quem sabia que a
chegada a Santiago iria mudar a sua vida
para sempre. Esses, mesmo não sendo vistos,
continuam vivos.
- n.25 • junho 2021