Os novos medievais
Margarida Vale
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Os primeiros monges do Ocidente
- Partilhar 26/01/2021
Bento, um nobre italiano que vivia como
se fosse um eremita na zona de Roma,
funda a Abadia de Monte Cassino, no ano
de 529. Como tal necessitava de normas
que fossem aplicadas aos seus seguidores
e, em 530, redige a regra fundamental da
ordem beneditina: a Regra de S. Bento.
Na verdade Bento já tinha uma vida
de solidão e meditação que o levara a
olhar para os céus de modo especial.
Apesar da inexistência de qualquer vida
monástica, ele vivia em recolhimento e
foi assim que a sua mente se moldou para
um coletivo que iria mudar a vida de
muitos e mudar a forma de estar
religiosa.
Assim, nasce um
estaleiro, o mais antigo de todos os
mosteiros da Europa. Enquanto as obras
decorriam a sua mente acelerava e queria
chegar a um documento que pudesse ser a
norma de todos os que seguissem a mesma
ordem. Foi assim que nasceu um extenso e
bem elaborado regulamento que estipulava
as normas de convívio e de trabalho para
todos os monges.
Um monge não se
dedica apenas à oração e ao trabalho,
precisa de estar sempre bem ocupado e
com a certeza de que o que está a fazer
é correto. A ociosidade é inimiga da
alma e assim os ditos monges devem
dedicar-se aos trabalhos manuais e à
leitura das escrituras divinas. Só assim
será a sua função certa.
O
mosteiro estava dividido em várias
partes e a vida acontecia nesse mesmo
local sem necessidade de ajudas
externas. Seriam auto suficientes e
produtores. Além das celas onde
pernoitavam, a biblioteca seria um lugar
de primordial importância. Apesar de nem
todos os monges saberem ler e escrever,
os livros foram um tesouro que nos
chegou até hoje.
Os monges
copistas, escolhidos de forma especial,
tinham a tarefa de copiar os livros que
já existiam e outros completavam a obra
com os desenhos e as iluminuras.
Verdadeiras obras de arte que eram
repartidas entre muitos trabalhadores
aplicados. Um livro era um verdadeiro
tesouro que demorava muito tempo a ser
elaborado.
Outros dedicavam-se
às oficinas, construindo o que fosse
preciso, criando ferramentas que seriam
usadas igualmente na agricultura pois o
mosteiro possuía uma farta horta que
alimentava toda a congregação e ainda
permitia excedentes.
O moinho
era essencial para que os grãos ficassem
reduzidos a farinha e das mãos dos
irmãos, palavra encontrada para se
identificarem os que acreditavam no
mesmo, saíam os alimentos que mantinham
o corpo são e a mente desperta para a
realidade.
O jardim permitia
passeios que levavam à meditação e à
prática do exercício físico. Eram monges
mas, ao mesmo tempo, homens que sentiam
no corpo os abusos alimentares e o
pecado da gula. O lazer também era
aproveitado para benefício da
coletividade.
"Da quarta até à
sexta hora devem ocupar-se da leitura. A
partir da sexta hora depois de se
levantarem da mesa, devem repousar no
leito em perfeito silêncio, ou se
quiserem ler não devem incomodar nenhum
dos outros... Se a necessidade ou a
pobreza assim o exigirem, devem
ocupar-se das colheitas..."
Os
monges beneditinos desempenharam um
papel decisivo na história da
civilização ocidental. Encerrados no
scriptorium, conseguiram a proeza de
salvar do desaparecimento muitas obras
de literatura da antiguidade. Só assim
foi possível chegar até hoje esses
pensamentos e ensinamentos antigos.
Situadas fora das cidades, as casas
beneditinas tiveram uma função
primordial na difusão da organização e
da cultura bem como terem prestado os
ensinamentos básicos para que a ordem
social viesse, mais tarde, a ser o motor
da revolução. Para estes homens, todos
os outros eram merecedores do perdão e
da salvação.
A regra coloca um
abade à cabeça de cada mosteiro, que é
eleito pela comunidade. Este deve amar
os seus monges como se fossem seus
filhos e tudo fazer para ser amado pelos
mesmos. Contudo o caráter humano que
este homem dá à dita regra, fará dele
uma fonte de piedade e de misericórdia.
Bento pode ser considerado o pai da
Europa, o fundador do ideal europeu, o
que unifica e revitaliza os tempos e os
homens. A sua inovação é o sustentáculo
da igreja medieval primitiva e rompe com
a forma intransigente que existia
buscando o equilíbrio há muito buscado.
O ensino nas abadias beneditinas,
nos períodos mais complexos e agitados
onde a guerra ganhava terreno, era o
único sistema de formação de homens
cultos que se preparavam para as novas
formas de governo e para os tempos de
grandes mudanças. O certo é que em pleno
século XXI, ainda está viva em muitos
mosteiros espalhados pelo mundo.
Foi o inovador, o homem que sentiu o
apelo e a necessidade de mudar o rumo
das vidas que andam perdidas, alinhar as
almas que esvoaçavam desorientadas e
lhes encontrar um propósito. As vidas
tinham um valor alto e deviam ter uma
missão específica. Bento abriu portas e
caminhos que ainda hoje são percorridos.
Nos nossos tempos a vida é bem
diferente. Apesar de existirem regras,
que não a deste visionário, os seres que
habitam por estas localidades são todos
diferentes e com ideias próprias onde as
interpretações são múltiplas. Contudo há
sempre quem as quebre ou seja contra as
mesmas. Faz parte duma sociedade que
evolui.
Os tempos em que vivemos
são estranhos e confusos. As novas
trevas tomaram conta da vida quotidiana
e os cegos que conseguem ver, deixam-se
levar como se estivessem acorrentados a
uma grade invisível onde os pregos
servem de suporte. Picam-se como se
fosse coisa boa, sangram sem que a cor
se veja e aceitam tudo o que lhes dizem.
Servidão humana. Aceita-se que se
quebrem todas as lutas, que se rasguem
as conquistas de anos e anos de
progresso que afinal não surtiram o
efeito que os nossos tão honrados
antepassados, aqueles que deram o corpo
às balas, pretendiam. Para onde foi a
liberdade que tanto custou a conquistar?
Agora a religião é outra, passa a
ser a sobrevivência, a do salve-se quem
puder e nada mais interessa. Os valores
esgotaram-se, escorregaram por entre os
dedos e tornaram-se apenas ideias dum
passado que não interessa recordar. O
ser humano, aos poucos, vai-se
desumanizando e perdendo o saber ser
pessoa. Vai ficando uma réstia de algo
que foi grandioso.
Não aceitar
opiniões diferentes, atacar que nem um
leão quem o contestar e a educação, a
das regras sociais e de etiqueta, caiu
por terra e foi espezinhada por todos.
Saltam as ameaças, o palavrão, a
ausência de carácter e a baixeza que
enfeita os convencidos. Ai de quem tente
provar o seu ponto de vista que a falta
de tolerância, a cegueira mental é tão
forte que tolda as mentes fracas que se
deixam levar em rebanhos de tudo e de
coisa nenhuma.
A liberdade de
viver está condicionada e os que mais
dedos apontam são aqueles que, em tempos
que já não se recordam, queriam que as
amarras fossem quebradas, que o proibir
fosse proibido e que a vida era um bem
maior. Os tempos são de mudanças mas
querer ficar amarrado por querer apenas
deve ser se for por amor.
A regra
que nos regula hoje está bem distinta da
de S. Bento. A auto suficiência
perdeu-se, a meditação é de outro teor,
a leitura passou a ter conotação
negativa, as hortas são dos rurais e o
ensinar, passar a mensagem para as
gerações vindouras, é um cabo dos
trabalhos, ou das tormentas, que as
tempestades continuam a assolar.
- n.21 • fevereiro 2021