Os novos medievais
Margarida Vale
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A Peste Negra
- Partilhar 27/04/2021
A peste é propagada por um bacilo transmitido pela pulga quando passa do rato para o homem. Foi a maior catástrofe demográfica da Idade Média, que se abateu sobre a Europa em meados do século XIV, tendo levado ao pânico e a massacres, bem como à mortalidade tão elevada que ceifou um terço da população. Este século foi apelidado de nefro pelas mazelas que deixou.
O clima estava mais frio, as epidemias eram mais numerosas e a fome andou sempre de mãos dadas com as gentes. Além disso as guerras não tiveram tréguas sendo que a Guerra dos Cem anos tem o seu início nesta época, Bizâncio tem que lutar contra a pressão turca e os cavaleiros teutónicos invadem, por sucessivas vezes, a Prússia. Uma paleta de situações que em nada favorece os habitantes dos vários reinos europeus.
A ideia que se tem é que a peste terá tido a sua origem na Ásia, através dos navios que vinham da Crimeia e que aportaram em todos os portos europeus. Difunde-se com os viajantes, a partir das costas italianas e espanholas. Atravessa os Pirinéus e entra no sul da França, em Avinhão e Toulouse, em 1348. Atravessa a Mancha, com as mercadorias dos navios e Inglaterra e a Irlanda são infestadas. A Escandinávia não foi poupada e daí vai até à Rússia e à Hungria.
O que se notava, nos contaminados, eram gânglios nas virilhas, no pescoço e nas axilas que iam mudando. Primeiro ficavam duros e depois mudavam de cor, ficando pretos o que deu o nome à doença. Seguia-se a febre e vinham as hemorragias, levando à fraqueza. A parte final seria o delírio e a morte era certa. Em dois ou três dias, a ceifeira era eficaz. Este foi um fenómeno essencialmente urbano devido à proximidade das gentes. O campo, com o seu isolamento, funcionou como uma espécie de proteção, fazendo com que os que viviam nesses locais ficassem afastados da doença.
Claro que as classes sociais sentiam a doença de forma diferente. Os pobres eram os mais afetados devido à sua exposição. Sem comida nem poiso certo e muito menor roupa a proteger o corpo, era a porta de entrada para o mal. Há que referir que a higiene era muito duvidosa e deficiente. Sem posses de fugir do antro de propagação, a morte era certa. É assim que se sabe como foi escrito o Decameron. Boccaccio refugia-se nas suas villas, nas colinas de Florença e a inspiração surge com o auxílio de um grupo de jovens.
Sem saber a causa da doença, atribui-se ao ar e aos alimentos a sua origem. Ou até mesmo à água. As suspeitas ganham dianteira e o medo instala-se- Suspeita-se de todos, até mesmo dos mais próximos. A morte ganha contornos estranhos e irregulares. O pouco conhecimento que havia sobre a medicina leva a conjeturas estranhas e incongruentes: os quartos devem ser quentes e secos, deve comer-se apenas carnes brancas e evitar as bebidas.
Igualmente se aconselhava a evitar os amores, as carícias, qualquer tipo de toque e até mesmo as conversas que podem propagar a doença. Nenhuma destas medidas tiveram alguma eficácia, revelando-se todas impotentes. É compreensível que se buscassem ajudas externas, tais como a magia ou a astronomia. O mais comum era entregarem a sua vida nas mãos de santos protetores. É neste contexto que Sebastião, cujo corpo estava trespassado por flechas e cujo sangue jorra, se torna o patrono da esperança.
Os médicos usavam uma máscara com um bico e na ponte do mesmo colocavam ervas aromáticas para evitar o cheiro pestilento dos mortos e dos doentes. Assim ainda se mantinha o afastamento e o toque era quase impossível. Contudo nada resultava e a doença continuava a matar.
Procuram-se bodes expiatórios e os pavor dos pecados e castigos assolam a mente de muitos. Alguns açoitam-se e outros cometem outras atrocidades contra a sua pessoa na ânsia de encontrar uma cura. Tudo está envenenado, segundo eles e a culpa é dos judeus, os que mataram Jesus Cristo e querem, agora, a morte de todos os cristãos. Fazem-se execuções e queimam-se pessoas. Algumas cidades impõem prazos para a saída dessas indesejadas pessoas.
Com eles vão também os prestamistas, os usurários, os ricos e todos aqueles que os pobres, na cegueira do medo e do pânico instalado, acusam de serem os responsáveis pela peste. Com estes atos, as aversões sociais e os ódios raciais ficam ao rubro.
Tudo o que se refere aconteceu no século XIV, um tempo em que as trevas cobriam o mundo e toldavam as mentes. As pessoas viviam em profunda miséria e ignorância e os avanços científicos eram rudimentares ou nulos. O medo ganhava terreno fértil devido à inexistência de conhecimento e os comportamentos sociais eram a prova de que a ideia de o castigo existia.
A vida, mesmo que fosse assustadora e repleta de imagens de sofrimento real, continuou como se a tal doença, o castigo que entendiam ser maior, não desse quebra. Nada parou e a vida, dura e incerta, seguiu o seu rumo natural. A morte rondava os dias que se cobriam de tonalidade escura e pestilenta. A cidade e o campo pulsavam com os que sobreviviam à tormenta.
Hoje estamos no século XXI. Um tempo que cresceu com sinal contrário e onde as trevas encontram pouso seguro. Os avanços tecnológicos permitiram uma maior qualidade de vida da população mas, por oposição, retiraram o instinto natural de sobrevivência.Não sabem como se defender quando são alvo de ameaças e, sem se darem conta, regressam a um passado que deveria estar muito bem encerrado.
Em tempo de conhecimento o mundo decide parar, refugiar-se debaixo das camas como se houvesse um botão imaginário para retroceder no tempo, nas mentalidades funcionou em pleno, evitando encarar o que estava a acontecer. A vida continua mas as pessoas agora são mais fracas e desconfiadas. Vão perdendo a sua humanidade e tudo é motivo para atiçar os ódios que estavam recalcados.
Vivemos no século da ciência, das alterações da sociedade, da mudança de sexo e afinal nada sabemos. O medo, que aumentado exponencialmente resulta em pânico, continua a ser rei e senhor. Os maus hábitos não se perdem só que o horror à morte ganha dianteira, alguns sentem-se perdidos e outros seguem para uma nova guerra onde se cria um exército de soldados coxos que se limitam a reproduzir o que ouvem. Seja ou não verdade.
Tristes os que nunca perceberam que a morte é natural. Sempre se morreu e esse é o fim da linha da vida. Essa não termina nunca pois o seu ciclo é contínuo e perpétuo. Não há lugar para todos e a velhice é a recompensa para quem consegue viver muitos anos. Morrer é fechar os olhos de vez e seguir para uma paz ansiada. Felizes os que o conseguem.
Viver continua a ser uma aventura constante que apresenta inúmeros riscos. O simples facto de respirar é um perigo pois o planeta está a ser envenenado por todos, pela poluição que o Homem provoca e pela falta de cuidado que é da responsabilidade de todos. As doenças são barreiras naturais e algumas são fruto da civilização.
Os amuletos que se usavam na Idade Média, aqueles que davam alguma esperança para que a vida fosse maior e a morte se afastasse, estão agora de volta com novas formas. Volta-se a acreditar em fetiches, em bugigangas e outros que tais para que tudo se apague e seja perfeito. A realidade é outra mas a mentalidade é a mesma, pequenina e curta como se a ciência fosse uma vaca sagrada e não tivesse avanços e recuos.
O mundo que se conhecia está tapado com outras trevas que são difíceis de levantar. Os pobres, em frente unida, sentem-se escorraçados e humilhados e os ricos continuam a ser o mesmo, ricos e a olhar com desdém para os que não são da mesma laia. A divisão está maior e tende a continuar. Já há quem medigue a saúde e o comer, os restos, os despojos que os outros, os que têm a tal ciência do seu lado, ainda podem ou querem dispensar.
- n.24 • maio 2021