Os novos medievais
Margarida Vale
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A ciência e a magia
A Idade Média,
tempo compreendido entre o século V e o
século XV, ficou conhecida pela Idade
das Trevas. Nada mais errado. Durante
tantos anos as transformações sofridas
pela sociedade foram inúmeras e de tal
forma importantes que moldaram a
sociedade que hoje conhecemos. Contudo a
falta de conhecimento e o ódio
irracional pela História, faz com que as
pessoas se convertam em profetas da
ignorância.
O século XIV foi
fustigado pela desgraça e ainda hoje é
um marco impossível de esquecer. A fome,
as guerras e a doença tornaram-se uma
constante nos povos que tiveram que
enfrentar estes tão negativos
acontecimentos. Guerra é palavra que soa
a constante e fome tornou-se atual. Da
qualidade adquirida, passa-se ao seu
oposto e num dia tudo desaparece. Quanto
à doença, o caso torna-se bem mais
interessante.
A chamada Peste
Negra, o horror que levava todos pela
frente e que, passados três dias do
contágio, levava à morte, assolou a
Europa levando a uma drástica redução da
sua população. Acarretando custos
elevados, o homem medieval soube
contornar as misérias e recomeçar de
cabeça erguida. Sem grandes ou nenhuns
conhecimentos de ciência e medicina,
tinha como aliado o improviso e com ele
fazia o que entendia ser mais certo para
o combate ao flagelo.
As máscaras, em
feitio de bico de pato, bem conhecidas
nos manuais e no imaginário popular,
eram uma forma de defesa contra os males
que não tinham ainda nome e que eram
totalmente desconhecidos. Com ervas
aromáticas, para conseguirem aguentar o
cheiro pestilento que o ambiente
libertava, ainda tinham uma outra
função, que era purificar e defender o
organismo. Hoje olha-se para esse tempo
e é inevitável sorrir da ingenuidade de
pensamento.
Mais tarde, na
época dos descobrimentos, o medo voltou
com formas distintas. Não que as doenças
tenham desaparecido mas outros receios
se ofereceram para que a humanidade
voltasse a ser testada. Agora foi a vez
dos monstros, dos seres de várias
cabeças e disformes, os que comiam os
seres humanos ou os colocam em torturas
inimagináveis e horripilantes. O medo
ganhou o nome de monstro mas o
sentimento era o mesmo.
Isso não impediu
que os fiéis descendentes dos clássicos,
esses bravos homens que tanto fizeram
pela humanidade mas que caíram em
completo e total esquecimento,
continuassem com os seus intentos e
chegassem onde pretendiam. A conquista
do caminho marítimo para a Índia foi um
marco que a todos beneficiou e serviu
como prova para testar as capacidades
escondidas dos destemidos.
Chegados ao
século XXI, com anos e mais anos de
qualidade, de evolução da medicina, de
conhecimento vários e de vidas tão
díspares como interessantes, voltamos a
bater num muro de ignorância e de medos.
Os vírus são estruturas simples e não
são organismos pois não possuem
organelos nem ribossomas, ou seja, não
possuem potencial bioquímico para
sobreviver. Como é que algo minúsculo
pode assustar tanto?
A ignorância, e
não o véu de ignorância como um certo
filósofo defendia, ainda cobre grande
parte da população. As pessoas,
simplesmente, não querem aprender.
Recusam-se a abrir os olhos e a mente e
viver em mundos paralelos onde as
fantasias persistem torna-se mais
simples. Afinal que temem? O acordar
para a realidade? A verdade? O saberem
que estão cada vez mais fracos e não
conseguem superar uma dificuldade?
Que tipo de
geração estamos a criar? A dos
coitadinhos que se assustam logo com
palavras e que nem sabem o que é sentir?
Sentimentos? Emoções? Dói e a dor
evita-se, o importante é o prazer e a
felicidade mesmo que não saibam o que
verdadeiramente significa. Vivem em
completo pânico e criaram uma ansiedade
que tende a permanecer e se espalhar.
Por mais que se faça para desmistificar
a situação, os receios iniciais ficam
ativos.
Levam todos pela
mão como se fossem crianças inaptas ou
com problemas cognitivos graves.
Proíbe-se tudo e acaba-se com os
direitos fundamentais sem que exista
revolta nem sentimento de indignação.
Aceita-se como se fosse normal espoliar
o que tanto custou a conquistar. O
rebanho está domado e o cão pode dormir
tranquilo. Só falta o bibe que a chucha,
a que é colocado na boca para não falar,
está perfeita e pode ter variados nomes.
Que é feito dos
destemidos guerreiros que nos legaram a
herança? Onde é que ainda habitam os que
sabiam dar o corpo e a alma ao
desconhecido? O mundo nunca foi seguro
nem nunca o será. O mundo é dos audazes,
dos que se aventuram e que vão à
conquista do desconhecido. Que se passa
com as pessoas de agora que vivem em
redomas? Não se podem colocar barreiras
nem almofadas para se caminhar com
segurança e de cabeça erguida. É preciso
que haja coragem e esse é inerente a
cada um.
Se os novos
aventureiros não derem a cara e
colocarem mãos à obra para o que se
possa avizinhar, estaremos muito mal e
no fim da civilização. É preciso ter
garra e firmeza para se ultrapassar os
portais e entrar nas dimensões certas e
corretas. Vamos todos enrolar o corpo e
regressar à posição fetal? Para quando o
crescer e ser adulto? Que exemplo se
passa aos mais novos?
As máscaras
sempre foram simbólicas. Umas por
conterem a génese da cura e da saúde,
outras por taparem o rosto de uns
quantos e lhes permitirem certas
liberdades que não ousariam de cara
destapada e estas, as modernas, onde os
estampados, os bonecos e tanto mais
marcam presença, servem para retirar a
humanidade que ainda restava em cada um.
Roubam as emoções, as marcas de
personalidade e a individualidade que é
a marca pessoal.
Descaraterizando
as pessoas, não lhe vendo as expressões
e muito menos os sentimentos aliados a
elas, há apenas a desconfiança e o medo
e esse, como tão bem se sabe, faz
maravilhas sem trabalho algum. Semeia a
discórdia entre todos, espalha o pânico
e gere conflitos que tendem a nunca
terminar. Logo a seguir ao medo surge a
ignorância e séculos de avanços redundam
logo em trevas que se instalam e que
permitem, sem qualquer tipo de entrave,
que a vontade e os direitos fundamentais
desapareçam.
- n.18 • novembro 2020