Os novos medievais
Margarida Vale
| Os primeiros monges do Ocidente | Os invisíveis | Os filhos e os enteados | A ciência e a magia |
Os invisíveis
- Partilhar 21.12.2020
Cristo
disse que haveria sempre pobres.
O apóstolo Paulo explicou o que
era a caridade e o auxílio ao
próximo. Nos dias de hoje
fala-se de solidariedade, de
consciência cívica, de
voluntariado. Uma dupla corrente
atravessa a Idade Média, uns
continuaram a sê-lo, na sua
expressão mais viva e outros,
animados pelo fermento
evangélico e estimulados pelo
movimento franciscano, tentaram
conciliar a abjeção da miséria
vivida com a virtude da pobreza
e aliaram-se nas obras de
misericórdia.
Perceber a
diferença entre pobres e
marginais, uma vez que poderiam
ter proveniências diferentes e
as suas conotações, será muito
difícil de definir e de limitar,
encontrando-se claros
cruzamentos ao longo do seu
percurso de vida. O espaço
ocupado poderia variar, pois as
flutuações eram endémicas e sem
qualquer tipo de controle. Em
tempos de tanto desconhecimento
a luta pela sobrevivência era o
mote principal.
Os pobres
São aqueles que, de uma
maneira permanente ou
temporária, se encontram numa
situação de fraqueza, de
dependência, de humilhação,
caracterizada pela privação dos
meios variáveis, segundo as
épocas e as sociedades:
dinheiro, relações, influências,
poder, ciência, qualificação
técnica, honra, capacidade
intelectual, liberdade e
dignidade.
Encontramo-los
nos campos e nas cidades, onde o
crescimento urbano e a riqueza
material tornaram a pobreza um
problema estrutural. Eram os
camponeses, assalariados rurais
e urbanos, os sem emprego, os
incapacitados, os órfãos, as
viúvas, os velhos e os pedintes.
Existiam vários graus de pobreza
involuntária: limiar fiscal, que
isentava o pagamento de impostos
ao rei; limiar económico,
condição do indivíduo que caiu
em desgraça; limiar biológico,
idade e saúde física e mental
para servir a comunidade; limiar
social, o fraco e o desprotegido
e limiar de sociabilidade, os
marginais fora da ordem social.
A pobreza caracterizava-se
pela ausência de uma ou mais
qualidades essenciais para que o
indivíduo conseguisse vingar na
sociedade e se pudesse
auto-afirmar. Eram identificados
como os velhos e mancos e cegos
e doentes bem como os
mesquinhos, minguados,
esbulhados, forçados e vilões.
No entanto as comunidades também
caíam em pobreza e arrastavam
consigo as gentes honradas. Era
uma situação diferente dos
pobres de nascimento e podia ser
temporária. Era a pobreza
envergonhada pois eram gentes
que não podiam esmolar. Para
estes foram criadas as casas de
mercê, onde eram acolhidos e
resguardados dos olhares
indiscretos. Eram-lhes
fornecidos alimentos e conforto.
Chamavam-se mercearias.
À
ausência do ter juntava-se a
consciência do não ser. O pobre
começa a exigir uma maior
justiça social e o
reconhecimento da dignidade
humana. Tal ficou a dever-se à
sua mobilidade, ao ideário da
pobreza evangélica e às Ordens
menores de Francisco de Assis e
Domingos de Gusmão. A mobilidade
era um grito de revolta
individual dos mais fracos
contra os poderosos. Os eremitas
e os emparedados eram chamados
os pobres de vida era uma
pobreza assumida e integradas
nas ordens religiosas. Outros,
os irmãos conversos, viviam no
exterior dos mosteiros,
despojando-se do mundo.
O pobre passa a ser conhecido
por Pobre de Cristo. Uma das
funções da igreja era dar
conforto aos miseráveis da
sociedade. A prática da caritas
era uma manifestação de amor ao
próximo para todo o cristão e
era apregoada nos sermões, como
medida pedagógica de salvação da
alma. O pobre era o
intermediário para as portas do
céu e a eles estava destinado o
fim melhor, a recompensa. As
carências económicas eram muitas
das vezes, com a debilidade
física, a idade, a viuvez ou a
orfandade, a razão da queda em
pobreza de homens, mulheres e
crianças.
Esta situação
preocupou os soberanos que
tomaram medidas para colmatar e
evitar que se repetissem. Além
das mercearias já citadas, foi
fundado um hospital para homens
e mulheres honrados que caíam em
pobreza, os pobres
envergonhados, impedidos de ter
a sua vida anterior, contemplado
na 1ª Lei da Sesmarias.
Os marginais
Era um
grupo que não possuía nem
independência económica nem
direito de cidadania. Podiam ser
assalariados de diversos tipos
mas um grupo maior é de
elementos pouco estabilizados,
inclinados para as migrações,
sem relação profissional ou
produtiva durável. Tem uma
fronteira flutuante onde a
rejeição e a aceitação andam de
um lado para o outro. Não têm
função permanente, nem vida
social estável. Temos que cortar
deste grupo os criminosos
vulgares, os ladrões, os
homicidas e os traidores e
incluir a falsa mendicidade, a
prostituição, os saltimbancos,
os jograis e outros grupos do
mesmo teor, que são muitos.
Os falsos mendigos eram
aqueles que não tinham ofício,
bens ou senhor, sendo apelidados
de maus homens e sujeitos à
expulsão. A errância provocada
pela oferta e pela procura
acompanhava a mendicidade
temporária bem como a
mendicidade crónica dos falsos
pedintes. Estes eram um perigo
para a sociedade trabalhadora
que não os via com bons olhos,
formando grupos de vagabundagem.
São criadas leis que proíbem a
mendicidade quando existe
capacidade de trabalho.
A única indigência oficial era a
invalidez do indivíduo atestada
pelas autoridades municipais. Os
falsos mendigos eram inúteis à
sociedade e não estavam
contemplados na assistência
caritativa tendo- se tornado num
flagelo.
A prostituição
O mundo da
prostituição era quase
exclusivamente feminino. A
mulher surge associada a uma
família, do pai ou do senhor, em
solteira e do marido, se casada
ou viúva. A mulher estava muito
condicionada e as opções que
tinha para fugir a este jogo
eram sempre mal vistas na
sociedade. A violação devia ser
vulgar, por parte do senhor da
terra, do clérigo, das
autoridades, de todo o tipo de
homens. E era praticada com todo
o tipo de mulheres.
Os
reis publicaram leis que
castigavam o violador mas a sua
execução tornava-se difícil.
Caía a infâmia sobre a família
ou sobre a mulher , tornando-se
uma presa fácil da
marginalidade, o que fazia com
que não houvesse denúncias. As
jovens que rompiam com as
estruturas familiares
frequentemente caíam na
prostituição.
Os nomes
porque eram conhecidas eram
vários: mancebas, soldadeiras,
mulheres da segre, barregãs e
putas. Habitavam na rua, na rua
da putaria, ou mancebia e usavam
um vestuário que as distinguia
das mulheres honestas. Era-lhes
proibido o uso do ouro, prata e
adornos no vestuário, nos véus e
nas camisas. Trabalhavam também
nas estalagens, nas tabernas e
nos caminhos ou arraiais
militares. Por vezes
acompanhavam grupos de jograis e
saltimbancos. Podiam ser
açoitadas publicamente, nos
pelourinhos, juntamente com o
cliente, desde que não fosse
nobre.
A boémia
O mundo da boémia era
pertença de todos. O jogo era a
causa do empobrecimento
individual e das perturbações de
ordem pública. O vício era tão
forte e estava tão enraizado que
vários monarcas se pronunciaram
sobre esta calamidade, soltando
leis e medidas que podiam ir até
à hipoteca de bens e animais. Os
taberneiros, os rufiões e os
jograis eram vistos com maus
olhos porque incitavam a hábitos
pouco saudáveis.
Os
escravos
Tinham
proveniência islâmica devido ao
resultado das guerras entre
cristãos e muçulmanos. O
prisioneiro nobre e culto era
tratado com alguma consideração
pelo novo senhor, vivendo com
ele no paço. Os mais humildes
desempenhavam tarefas domésticas
ou ligadas à agricultura e ao
artesanato. O estatuto jurídico
era de um objecto que o senhor
podia vender, trocar, castigar
ou até matar.
A alforria
era o desejo destes homens que
pretendiam voltar às suas
origens e famílias. Podia ser
comprada ou concedida pelo dono.
Outras vezes bastava abjurar a
sua religião e o caminho para a
liberdade estava aberto. Os
escravos oriundos da África
Negra remontam à época do
Infante D. Henrique, no Rio de
Ouro. O papa deu o seu aval para
a captura e escravidão, tendo
como objectivo o lucro imediato,
pois trabalhavam em tudo o que
fosse necessário. D Afonso V
sugeriu que fossem utilizados no
povoamento das regiões
desertificadas do reino.
Apesar de terem passado séculos,
o mundo se ter alterado, as
descobertas terem sido muitas, a
ciência ter vencido e as pessoas
serem educadas, a mentalidade
pouco ou nada mudou. Continuamos
a colocar barreiras entre as
pessoas, catalogamos tudo e
todos, as mulheres ainda não têm
o papel de igualdade que merecem
e a cor da pele ainda é um
estigma. O mundo do jogo não se
alterou, os vícios são mais
modernos mas continuam e a
prostituição adquiriu outras
formas mas visa sempre a
satisfação do cliente.
A
ciência passou a ser uma espécie
de magia que ainda assusta mas
que, ao mesmo tempo, acalma. Os
espíritos voltaram a estar à
solta e os amuletos são as novas
formas de prevenção. Máscaras ou
líquidos com cheiros fortes são
agora as águas bentas e as
réstias de alhos que afastam os
novos vampiros. Escolhidos e
miseráveis persistem e
pratica-se uma nova modalidade
que tem a chancela do século
XXI: a coitadice. Os mais fracos
e menos dotados são enaltecidos
e promovidos. Exibem-se as
chagas, toca-se ao coração dos
que, por penitência e salvação
dos seus pecados, dão a esmola,
com um certo nojo mas depois vão
exibi-la, com uma modéstia reles
e cínica, nas redes sociais.
- n.20 • janeiro 2021