Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias do Futuro

Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias de um menino que vivia num bordel


O melhor dia de minha vida | O melhor dia de minha vida (2.ª parte) |O pior de todos os dias | Um bordel é um lugar incrível | As muitas surras e a minha grande vingança | A estrela mais brilhante | Um príncipe tira minha mãe “daquele lugar” | Meus três tios heróis | O último Natal sem presentes |  Uma vida de riquezas | O desmaio | Escravizado aos 10 anos de idade | As fotos que não quero devolver | O beco dos aflitos


O último Natal sem presentes

Era época de Natal. Eu tinha uns seis ou sete anos, não lembro a idade exata. Mas lembro que eu sempre ficava meio ansioso. Era época de sonhar com presentes. E eu sonhava muito. Eu tinha sempre a esperança de que o novo Natal seria diferente dos que eu vivi em anos anteriores. Sim, desta vez, o Papai Noel se lembraria de mim, e eu ganharia muitos brinquedos! Eu mentalizava infinitos tipos de presentes que eu gostaria de ganhar: bolas de futebol, carrinhos, roupas e sapatos novos, um par de patins (meu Deus, como eu queria patinar pelas ruas!) ou, quem sabe, uma bicicleta novinha! Mas o Natal passou e eu, novamente, fui esquecido pelo Papai Noel! Eu via as outras crianças se divertindo com os brinquedos ganhados no dia 25 de dezembro. Eu ficava triste, é claro! Mas não derramava nenhuma lágrima! Lá no fundo eu já sabia que os presentes nunca chegariam para mim! Com a cabeça baixa, eu aceitava o descaso do papai Noel comigo com certa resignação. “Deixa pra lá!”

Mas aquele Natal não foi totalmente triste. Eu conheci a Dona Leontina, a senhora baixinha que frequentava todas as missas na igreja em frente à praça onde minha mãe e meus tios se embriagavam. Eu não sabia, mas estava diante de um anjo! Eu não tinha sido totalmente ignorado pelo Papai Noel! Àquela altura, Dona Leontina já tinha falado com o Padre Lancísio para que me levasse para o orfanato dele, em Silvânia, cidade nas proximidades de Leopoldo de Bulhões, onde minha família morava. Estava tudo já devidamente arranjado. Eu poucos dias eu deixaria para trás aquela vida de total miséria!

Os sinos da igreja tocaram com mais insistência naquele dia! A missa de Natal se encerrava! Eu gostava de ouvir os sinos! Cada badalada parecia falar comigo. E, de repente, alguém realmente veio conversar comigo! Era Dona Leontina! Ela disse que minha mãe tinha me autorizado a almoçar em sua casa. Ela era uma senhora baixinha e que andava meio curvada e apoiada em uma bengala, como se tivesse algum problema grave na coluna. Então, lá fui para a casa de Dona Leontina. Ao chegar lá, eu fui surpreendido com um almoço farto e com comidas variadas e gostosas. Tinha muitas carnes, arroz colorido com uvas passas, doces variados e muito refrigerante! Uma delícia! Era realmente uma fartura inédita para mim! Mas o que mais me fascinou naquela casa com quintal enorme e cheio de árvores frutíferas foi o presépio. Meu Deus, como era lindo! O menino Jesus e seus pais eram cercados por dezenas de outras pequenas esculturas de santos e animais! Eu passei muito tempo admirando aquilo tudo! O presépio me fascinou mais do que a comida abundante!

Então, Dona Leontina perguntou: “Fábio, você gostaria de morar no internato do Padre Lancísio? Lá você vai estudar, vai ter comida boa todo dia, vai ter amiguinhos, roupa limpa, tudo”. É claro que eu disse sim, sem nem mesmo pensar! Naquela época eu sonhava muito com brinquedos, mas eu sonhava mais ainda em ir para a escola. Como eu invejava as crianças que passavam por mim a caminho do colégio, com seus uniformes limpos, pastas escolares nas costas e lancheiras coloridas. Meu Deus, era tudo que eu queria! “Então, arruma suas roupas que, no próximo domingo, você vai com o Padre. Eu já falei com sua mãe, ela autorizou. Está tudo arranjado! Vem comer mais doce”, disse ela.

Hoje, quando lembro desse dia, eu sinto a certeza de que eu nunca fui esquecido pelo Papai Noel! Naquele Natal eu fui agraciado com um presente que compensou todos os outros natais em que não ganhei nenhum brinquedo. O meu presente foi algo mais fantástico do que qualquer brinquedo! Eu ganhei um futuro, algo que definitivamente eu não tinha ao lado da minha família.

Hoje, quando lembro daquele dia, eu sou invadido por um imenso sentimento de gratidão e pela sensação de que nunca estive realmente sozinho, abandonado e desprezado, como já cheguei a achar, muitas vezes, que estava! Não maldigo a família que tive. Como já disse, se eu eu tivesse que renascer e tivesse a opção de escolher a minha mãe, eu escolheria a mesma Dona Irani e meus tios heróis. Na minha jornada pela vida eu conheci muita dor, mas conheci muitos anjos também. Dona Leontina e o Padre Lancísio foram alguns desses anjos, mas minha mãe e meus tios também foram os melhores anjos que eu poderia ter! Eu nunca estive abandonado! Eu nunca estarei! Sempre que caio. E eu caio muitas vezes! Lá vem os meus anjos a me ajudar a levantar e a retomar a minha jornada novamente! Eu nunca conseguirei expressar toda a gratidão dentro de mim! Eu não tenho o direito de não acreditar em milagres!

No domingo seguinte, eu arrumei a minha mala: um saco de papel feito para embrulhar pão, onde coloquei toda a roupa que tinha: uma calça boca-de-sino azul, um shortinho e uma camiseta. E lá fui eu esperar o padre Lancísio. Minha mãe não compareceu. Foi a última vez que vi a Dona Leontina e os meus tios. O padre olhou para mim e perguntou: “Cadê a sua mala? Eu mostrei o saquinho de pão. “Entra, meu filho!” Minha vida nunca mais seria a mesma.


Memórias de um menino que vivia num bordel

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