Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias do Futuro

Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias de um menino que vivia num bordel
As muitas surras e a minha grande vingança

Quando digo, hoje, que o bordel de Dona Tunica era um lugar incrível é porque tenho principalmente recordações boas daquele local e daquele tempo! Mas, é claro, a vida não era perfeita lá. É do Cabaré de Dona Tunica que trago uma lembrança de um dos espancamentos mais violentas que já sofri na vida. E autora desta surra inesquecível foi minha própria mãe. Não lembro com exatidão a idade que tinha, mas suspeito que eram três ou, no máximo, quatro anos.

Foram muitos tapas, chutes, murros, cintadas, varadas e gritos. O que fiz para merecer tal surra? Eu quase fui atropelado por um fusca que surgiu em altíssima velocidade enquanto eu atravessava a rua para comprar doces no mercadinho em frente ao bordel. Hoje, no Brasil, existem leis que protegem as crianças de espancamentos e qualquer ato de violência que os pais venham a praticar contra os filhos, mas, naquela época, educar era sinônimo de espancar. E eu era educado assim. Tanto que, no dia do quase atropelamento, que minha mãe presenciou da calçada de frente ao bordel de Dona Tunica, eu fugi e me recusava a voltar para casa. Eu vi a expressão no rosto dela. Eu sabia que levaria uma surra terrível!

Mas, sorrateiramente, minha mãe foi atrás de mim, com palavras gentis e muito carinhosas e afirmações de que eu não apanharia, de “forma nenhuma”. E eu acreditei! Assim que ela colocou as mãos mim, as agressões começaram, tudo ainda no meio da rua. Fui apanhando até chegar no quarto em que morávamos, onde a minha situação só piorou! Depois, ainda fiquei de castigo sentado numa cadeira por horas a fio! Acho que o carro em cima de mim não faria tanto estrago! Como eu rezei para ter sido atropelado neste dia. Mas, infelizmente, não fui! Assim que aprendi a falar “mãe”, eu lembro que sempre chorava pronunciando esta palavra. Eu não deixei de amar a minha mãe! Mas depois desse dia, eu nunca mais chorei balbuciando a palavra “mãe”.

Aparentemente, acho que as surras levadas de minha mãe não me deixaram tão traumatizado assim! Até porque agressões piores vieram depois, quando fui morar com outras pessoas ao longo de minha infância nômade. Geralmente tinha agressões, por exemplo, nas dezenas de casas de cuidadoras de crianças pelas quais passei, à medida em que crescia, já que os bordéis nos quais minha mãe morou, depois do da dona Tunica, não aceitavam a presença de crianças. A mulher da família de agricultores que me adotou, e que depois de um ano (mais ou menos) me devolveu para minha mãe, também me espancava severamente de vez em quando, geralmente com pedaços de pau. Nunca esqueci também uma surra dada por meu avô num período em que morei com ele numa fazenda de café em que ele era lavrador. Um menino do local, filho de outro lavrador, causou confusão comigo, e o pai dele reclamou com meu avô. A surra de varas de pé de café me deixou com marcas pelo corpo todo por vários dias. Mas acho que eu ainda não tinha aprendido o que era uma surra de verdade até chegar ao internato do Padre Lancísio, em Silvânia, Goiás, para onde fui enviado talvez aos sete ou oito anos. Lá também apanhei muito, especialmente em duas ocasiões – as duas aos 10 anos de idade - quando, enfurecido, um dos homens que era um dos cuidadores das crianças, me derrubou no chão e, descontroladamente, passou a me desferir murros e chutes, inclusive na cabeça.

Sei que, infelizmente, ainda guardo na alma algumas feridas por todas essas agressões, inclusive do ano em que passei como escravo numa casa de uma família branca de Goiânia. Mas não são as dores e o rancor o que prevalece em mim, mas a gratidão a Deus e ao Universo por ter sobrevivido a tanta fúria. Todas essas pessoas também foram respeitosas comigo na maioria do tempo em que convivi com elas! É a gratidão o que prevalece em mim. Se fosse o ódio, eu me destruiria.

Hoje, aos 52 anos de idade, vivo plenamente um período da minha existência que chamo de fase do perdão e da gratidão. Depois de anos em busca de culpados por todas as situações que acho que foram incrivelmente injustas, doloridas e trágicas em minha vida, cheguei à conclusão, lá pelos 30 anos, de que não há nenhum responsável por meus infortúnios. Eu me recuso a culpar qualquer pessoa. Se eu culpo alguém, eu me coloco no pior dos papéis: o de vítima. E eu não sou vítima! De ninguém! Nem do meu próprio ódio! Durante muito tempo eu só me concentrei nos aspectos negativos das coisas da vida. Mas, aos poucos, eu fui sendo amansando, domado, por mim mesmo, o que resultou numa mudança total de estratégia, pois o que prevalece na minha vida são vitórias e não derrotas.

E se eu não tivesse mudado, há muito eu já teria sucumbido, como tentei, por exemplo, fazer aos 19 anos de idade, quando joguei tudo que possuía no lixo e fui para o meio do mato, com uma corda, para me enforcar! Nesta época (depois de ter passado anos a limpar banheiros na casa de uma família rica na cidade de Goiânia) eu já tinha um emprego com um salário razoavelmente decente numa firma de consórcios de automóveis, e morava e comia com um certo conforto nunca antes experimentado por mim. Mesmo assim, eu sentia dores terríveis na alma! Às vezes, à noite, quando chegava em casa, eu apenas chorava! Às vezes, por horas a fio! Até adormecer! Eu não queria viver, eu não suportava viver, eu odiava viver! Eu odiava tudo o que me fez viver, inclusive minha mãe e o próprio Deus! Mas neste dia eu fui muito covarde! Depois de horas em cima de uma árvore, com um corda no pescoço, eu fui inepto para consumar o suicídio! “Então”, com toda a ênfase do mundo, eu disse para mim mesmo: “assuma a sua vida, mas assuma mesmo!”. Foi nesta hora que eu percebi que minha vida e minhas dores eram somente minhas e que ninguém se importaria se eu a jogasse fora ou não. Também percebi que não era vítima de ninguém! Então, a mudança começou! Aos poucos! Mas começou!

No outro dia, eu fui para o trabalho na firma de consórcios! Fui com a mesma roupa – um pouco suja – a única que sobrou, pois o caminhão de lixo já tinha levado tudo o que era meu, inclusive documentos pessoais. Eu não tive coragem de contar aos colegas o que realmente aconteceu. E menti para eles dizendo que todas as minhas coisas tinham sido furtadas por alguém que invadiu a minha casa! No dia seguinte, ao chegar ao trabalho novamente, meus colegas me surpreenderam com uma grande quantidade de roupas: todas novas! Eles recolheram dinheiro entre si e compraram lindas camisas, calças e até um par de sapatos! No escritório, parecia uma festa de aniversário! A vida nova começou! Foi o meu renascimento!

Voltei a estudar. No ano seguinte, eu fui aprovado no vestibular para o curso de Jornalismo da melhor e mais concorrida universidade pública de Goiás! Entre todas as profissões, só me interessava ser jornalista. Eu queria contar histórias das vidas das pessoas! Na minha visão, todo ser vivo, principalmente o humano – o que, para mim, é o que mais sofre – é um grande livro escrito sob o olhar atento das estrelas!

E foi olhando para as estrelas que grande parte da minha dor foi se dissipando! Ao aprender, com Carl Sagan, na série Cosmos, exibida na televisão nos anos 80, que todo o material que nos constitui foi jogado pelo espaço na explosão das gigantescas Supernovas. Então, eu conclui: “eu tenho biliões de anos! Eu tenho a idade do Big Bang!” Houve muito esforço para que eu estivesse aqui hoje! E, devagarinho, ao longo dos anos, muita da minha dor foi desaparecendo! Eu passei a honrar a minha vida! Tão preciosa! Feita pelas estrelas! Os choros ainda existem, mas não são mais predominantemente de ódio e sofrimento: são principalmente de agradecimento e deslumbramento! E esta é a fase do perdão e do agradecimento! Esta é a minha grande vingança! Eu me vingo ao agradecer por tudo de bom que acontece a mim ao mundo! Eu me vingo ao agradecer pela mãe que tive e pelas dificuldades que enfrentei. Eu me vingo ao agradecer por viver na mesma época que Chico Buarque e Madonna, e outros seres admiráveis por aí nas mais diversas áreas da vida humana! Eu me vingo ao não temer a morte, pois sei que apenas voltarei para a eternidade da qual sempre fiz parte! Eu me vingo ao agradecer porque vou morrer como uma criatura que buscou melhorar e que irei embora melhor do que quando era aquele bebê que veio ao mundo lá no bordel da Dona Tunica! Eu me vingo ao agradecer porque o ódio não me destruiu! Eu me vingo ao agradecer, que mesmo tendo feito doutorado e pós-doutorado, eu não deixei a pretensão e a soberba me fazer acreditar que sei alguma coisa dos mistérios da vida e da mente humanas ou do esplendoroso Universo! Eu me vingo ao fazer fotos incríveis de mim mesmo! Eu me vingo ao dizer que sou muito feliz, mesmo que por poucos momentos, como quase todo mundo, mas que sei que nesses momentos há sempre um toque do eterno! Eu me vingo ao agradecer por ter a melhor profissão do mundo: a de professor! Eu amo absolutamente os meus alunos!

Eu ainda choro, choro muito diante da dor de pessoas arrebatadas pelas mais diversas formas de miséria que nos atingem diariamente! Mas choro também ao ler livros e ver filmes românticos e novelas “açucaradas” brasileiras, mexicanas e portuguesas! Choro ao sentir o amor e o amor próprio, e eles existem mesmo! Choro pelos animais e pelas árvores e plantas, feitos do mesmo material estelar que os humanos, mas tratados por nós como se estivessem em situação de inferioridade! Choro pelo uso profano do nome de Deus! Choro ao lembrar que a água salgada que sai do meu olho pode ter estado já algum dia ao redor de um quasar ou de em buraco negro! Eu choro em agradecimento pelo Sol que, em muitas manhãs e em muitos finais de dia, suavemente acarecia a minha pela e a pinta de ouro! Eu choro por quase tudo! E quanto mais eu choro, mais eu me vingo! Eu nunca fui e nem sou vítima de nada! Eu sou apenas um filho de uma puta e das estrelas!


Memórias de um menino que vivia num bordel

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