Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
A estrela mais brilhante
Houve momentos na minha vida de criança
que minha mãe me magoou muito. Mas hoje
quando penso na vida que ela teve, eu
fico chocado com o quanto ela também foi
magoada e maltratada em sua rápida e
absurdamente cruel existência. Eu ainda
sofro quando penso na única vez em que
ela me visitou no orfanato – quatro ou
cinco anos após ela permitir que eu
fosse (felizmente) levado para lá. Eu
fugi quando apareceu lá aquela mulher,
completamente açoitada pela decrepitude
física a afirmar ser minha mãe! “Não,
ela não é minha mãe”, gritei e saí
correndo para longe! Somente admiti
vê-la depois que as freiras insistiram
muito comigo! Mas muito mesmo! Minha mãe
estava esquálida (talvez com fome),
suja, maltrapilha, doente, desdentada,
aparentemente alcoolizada e calçava uma
sandália havaiana incrivelmente surrada
e que não protegia mais seus pés
empoeirados e feridos! Aquela mulher
morena e linda que me trouxe ao mundo,
lá no bordel da Dona Tonica, na existia
mais! Eu não lembro nada do que ela me
disse naquele dia e nem se eu disse
alguma coisa a ela. Eu devia ter uns
nove ou dez anos. Eu só queria chorar!
Eu só queria chorar um mar de lágrimas,
talvez para curar um pouco as suas dores
e suas chagas tão expostas e, quem sabe,
também para limpar a minha vergonha e o
meu constrangimento de que todos estavam
vendo que eu era filho de uma pessoa
completamente diferente daquela mulher
da qual eu falava a respeito para todo
mundo. Hoje, o meu constrangimento é por
ter constrangido ela! Eu não lembro
direito como eu a descrevia para as
pessoas do internato, mas eu sempre
falava de uma mulher muito bonita, muito
forte, muito capaz, muito rica! E que um
dia me buscaria daquele orfanato. De
repente, aparece lá a Dona Irani (este
era o lindo nome dela: Irani), tão
diferente da mãe que eu ostentava com
doces, amáveis (e talvez mentirosas
palavras) para todos no internato! Eu só
queria chorar um mar de lágrimas! Eu só
queria morrer! Mas não morri!
Ela,
sim, morreu poucos meses depois da visita,
na cidade de Leopoldo de Bulhões (GO), a uns
50 quilômetros Silvânia, onde ficava o
internato. Quando soube, talvez um ano
depois, eu não sofri muito. O sofrimento foi
chegando somente com o meu amadurecimento,
depois dos 30 anos, quando comecei a parar
de culpá-la pela minha miséria ao longo dos
anos. Quando comecei a assumir, de fato, a
minha própria vida com o que conquistei de
bom e ruim, é que entendi o significado
daquele dia. Hoje sei que foi muito bom
vê-la, mesmo que já semi-morta, a se
esforçar para se despedir de mim. Foi um
gesto de muito amor! Não lembro nada do que
dissemos um ao outro, mas a presença dela
foi uma maneira de falar que era eu especial
para ela. Eu era especial para alguém no
mundo! Hoje, entre outras coisas, imagino
que ela não tenha me visitado antes talvez
pelo simples fato de não ter dinheiro para
pagar uma passagem de ônibus, por exemplo!
Naquele tempo, era comum pessoas, como minha
mãe e seus irmãos, se deslocarem de uma
cidade para outra a pé. Eu mesmo já fui com
eles a algumas dessas viagens! Eram horas e,
às vezes, dias sob o sol escaldante ou chuva
fria! De qualquer forma, ela sabia que eu
estava vivendo muito bem sob os cuidados dos
padres, freiras e irmãos Maristas. Ela sabia
que eu tinha todas as refeições necessárias
à sobrevivência digna de uma pessoa a cada
dia, um luxo que, com certeza, ela não
possuía!
A
vida profissional de uma prostituta dura
tanto quanto a sua beleza e o viço de sua
pele! E a fase de decadência de minha mãe
começou e se acelerou à medida em que ela
foi se viciando em álcool. Ela chegou a ser
expulsa do bordel da Dona Tonica por causa
da bebida. E aí sua vida piorou
drasticamente! Ela nunca mais teve
estabilidade. Vivia mudando de cabaré em
cabaré! Era enxotada de uns, fugia de
outros! O dinheiro que ganhava mal dava para
pagar pessoas para cuidar de mim e de minha
irmã, quatro anos mais nova, e que nasceu
enquanto eu tinha sido adotado por uma
família de pequenos agricultores no interior
de Goiás. Depois que essa família me
rejeitou e me devolveu para minha mãe, um
longo inferno astral se abateu sobre minha
mãe e, consequentemente, sobre as suas
crias. Assim como eu, minha irmã também não
tinha qualquer ajuda por parte de pai.
Sequer soubemos os seus nomes! Hoje a
Justiça brasileira obriga os homens a
pagarem pensão alimentícia a seus filhos,
basta que um exame de DNA comprove a
paternidade. Mas naquela época, início dos
anos 70 do século passado, a omissão e
covardia masculinas eram completamente
impunes. Ainda mais quando a mãe era uma
prostituta!
Então, minha mãe tinha que bancar tudo
sozinha! Às vezes, fico imaginando o
pesadelo que deveria ser para ela ter que
sustentar filhos sem nenhuma ajuda! Então, à
medida que minha mãe ia decaindo na
profissão, eu e minha irmã íamos sendo
cuidados por gente mais pobre e despreparada
ainda. Numa dessas casas eu fui estuprado
por um pedófilo filho da mulher que minha
mãe, tão sofridamente, pagava para ela
supostamente cuidar de mim. Os pedófilos
faziam a festa, já que naquela época, eu
acho, que isso nem era crime! E se era,
ninguém denunciava! Quanto mais miserável e
barato era o lugar em que eu e minha irmã
morávamos, mais ficávamos vulneráveis a maus
tratos. Numa outra casa, minha irmã e eu
passamos a ser violentamente espancados pela
mulher paga para cuidar de nós. Sim, ela
cuidava, mas com pauladas, varadas,
sapatadas, chineladas e cintadas.
Por
fim, fomos morar num bairro muito distante
da região central de Anápolis, que deveria
ser habitado apenas por pessoas com
hanseníase, local apelidado de Vila dos
Leprosos, onde permanecemos por um bom tempo
no meio de pessoas com narizes, dedos, mãos
e outros membros se desprendendo do corpo!
Nessa época, as vítimas de hanseníase eram
obrigadas a viver em isolamento. Por
incrível que pareça, a vida neste lugar foi
maravilhosa, pois tivemos um pouco de
estabilidade e éramos muito bem alimentados
e bem cuidados! Mesmo criancinha, aprendi a
ter um respeito enorme por esses brasileiros
vítimas da hanseníase. Acostumei-me tanto
com a situação, que passei a conviver com
naturalidade com aquelas pessoas em extremo
desamparo! Este foi um episódio de minha
vida que não considero sofrimento! Acho que
foi até um privilégio conviver com tanta
gente maravilhosa e com incrível capacidade
de resiliência e de enfrentamento da vida!
Não me lembro de ver nenhuma das vítimas da
hanseníase triste por causa da doença em si.
Tinham moradia e comida boa, e isso bastava
para maioria deles. Também nunca tive medo
de pegar a doença. Aliás, não sei como não
peguei e não sei até hoje (com o Google e
tudo) se criança pega esta doença. E nem
quero saber! De qualquer forma, não vi
nenhuma criança com hanseníase durante os
meses em que morei com os doentes! Aprendi
com eles que a natureza nos anestesia quando
a dor é insuportável! Fisicamente, eles não
sofriam enquanto seus membros caíam. Sou
grato a todos eles pelo acolhimento e pelas
lições de vida! Fui feliz!
Mais
feliz fiquei ainda quando minha mãe apareceu
no bairro dos doentes de hanseníase e disse
que estava indo embora de Anápolis! Ela não
disse que estava deixando a prostituição,
mas isso me pareceu óbvio! Fomos,
finalmente, embora da cidade onde nasci!
Hoje,
quando reflito sobre os acontecimentos
daquele dia em que minha mãe me visitou no
internato onde morava com os padres, freiras
e irmãos Maristas, me chama a atenção a
lembrança que tenho dos seus olhos
incrivelmente tristes, vermelhos e quase sem
vida. Hoje eu reflito que naqueles tristes
olhos vermelhos e pele excessivamente
queimada pelo sol estava o rosto que mais me
amou neste mundo! Ninguém jamais me amará
como aqueles pés machucados e sujos! Eu
lembro que ela me abraçou! Eu tentei fugir!
Apesar da recusa, aquele foi o abraço mais
frágil e amoroso que eu jamais vou
experimentar ao longo da minha existência!
Aquela era Dona Irani! Aquela foi para mim a
mulher mais especial, mais batalhadora, mais
forte, mais guerreira, mais poderosa, mais
bonita, mais linda, mais cheirosa, mais
rica, mais pura e mais angelical que eu
jamais conheci! Naquele corpo, que diante de
mim se apresentava fraco e já quase sem
vida, eu passei longos e maravilhosos novos
meses a sugar a essência do Universo! Todo
ser humano é uma estrela viva! Mas as
mulheres são estrelas mais brilhantes ainda!
Os homens são como o Sol! Já as mulheres são
Super-Novas que espalham a vida por todo o
Universo! E para mim, a minha mãe, foi a
estrela mais brilhante que pôde existir! Ah,
Betelgeuse, como você é ínfima perto da Dona
Irani! ?
Memórias de um menino que vivia num bordel
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