Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
Capítulo 1 - O melhor dia de minha vida
Somente nos últimos
meses, depois de mais 45 anos do ocorrido, é
que eu percebi que aquele foi o dia mais
importante de minha vida. Foi o dia que
definiu o que eu sou hoje e o dia no qual eu
me livrei de uma espécie de maldição que
sempre rondou a família da qual eu faço
parte. Depois de meses a implorar ao padre
Lancísio que me levasse para viver no
orfanato do qual ele era diretor,
finalmente, Dona Leontina teve êxito em sua
insistente demanda. “Padre, esse menino não
pode continuar a viver no meio destes
bêbados. Logo estará bebendo pinga também!”.
Dona Leontina correu
até a praça da pequena cidade de Leopoldo de
Bulhões, onde minha mãe e seis de seus
irmãos acampavam, pois não tinham casa, nem
mesmo das mais pobres, e bradou: “O padre
vai levar o menino hoje. Cadê as roupas
dele?” Minha mãe, meio alcoolizada, não
apresentou nenhuma resistência. Rapidamente,
esvaziou um saco de pão, e colocou uma
camiseta, um shortinho e uma calça boca de
sino feita em tergal azul.
Não lembro de nenhuma
palavra ou gesto de despedida. Dona
Leontina, muito ofegante, saiu correndo pela
praça e alcançou o padre já dentro de sua
Kombi branca, um pouco impaciente com a
suposta demora. Já era noite, ele tinha que
voltar para a cidade de Silvânia, onde
ficava o internato onde eu iria passar os
próximos sete anos de minha vida. “Ele só
tem isso de roupa?”, perguntou o padre para
Dona Leontina ao apontar para a minha
pequena mala: o saco de pão. “Ele é pobre,
padre!”.
Dona Leontina
afastou-se do veículo e o padre acelerou o
motor, e lá fomos nós rumo ao Aprendizado
Agrícola São José. Eu nunca mais veria Dona
Leontina novamente. Eu nunca mais teria a
chance de agradecê-la pessoalmente. Certa
vez, aos 15 anos, quando saí do internato e
fui morar na capital do Estado de Goiás,
Goiânia, eu fui a Leopoldo de Bulhões para
dizer a ela de minha gratidão. Mas já era
tarde demais. Dona Leontina já havia morrido
fazia alguns anos.
Quando a conheci, ela
já era bastante idosa. Talvez estivesse na
faixa dos 70 anos. Ela era branca, baixinha
e andava com uma bengala. Mesmo assim
caminhava com agilidade, quando era
necessário. Nunca vou esquecer o quanto sua
casa, apesar de pequena, era linda. O que
mais me chamava a atenção era o quintal
enorme e com várias árvores frutíferas.
Havia mangueiras, bananeiras,
jabuticabeiras, pés de laranja e mixirica,
entre outras plantas com belas flores. Outra
coisa que me chamava a atenção em sua casa
era o presépio enorme que montava na época
de Natal. Tudo o que era colorido e brilhava
ela colocava como enfeite, extremamente
católica, ela jamais perdia uma missa. E foi
à caminho da igreja que ele me conheceu ali
na praça onde minha mãe e seus irmãos
bêbados passavam a maior parte do tempo. Sou
eternamente grato a senhora, Dona Leontina!
Em relação à minha
mãe, eu ainda a veria uma única vez. Quatro
anos depois de eu ter sido levado para o
internato, ela lá apareceu para fazer-me uma
visita. Foi uma situação muito
constrangedora, pois eu corri dela. Não
queria vê-la de forma nenhuma. Ela estava
esfarrapada, desdentada e parecia bêbada e
doente.
Ainda sofro pela
atitude que tive! Somente muitos anos mais
tarde, percebi que foi uma visita de
despedida, pois ela morreu meses depois, em
conseqüência do alcoolismo. Aquela senhora
que apareceu de surpresa no internato para
visitar-me não correspondia em nada à mãe
idealizada que vivia em minha cabeça. Se eu
pudesse voltar no tempo, em vez de correr
dela, eu a abraçaria, beijaria e diria da
minha gratidão por ser filho dela. Falaria
do quanto ela era linda e que, entre todas
as mulheres da Terra, eu a escolheria,
infinitas vezes, para ser a minha mãe. Dona
Irani foi uma alcoólatra e uma prostituta,
mas, para mim, foi a mulher mais honrada que
já viveu! Ela apenas sucumbiu à crueldade do
mundo, principalmente com as mulheres.
- n.44• janeiro 2023