Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
O melhor dia de minha vida (2.ª parte)
O despertar, na manhã
seguinte, foi incrível. Um homem, moreno
baixo e de voz forte, gritava e batia
palmas. “Acorda, garotada! Rápido! Vocês só
têm uns 10 minutos! Todo mundo escovando os
dentes... e rápido!” Assim, pelo menos uns
50 meninos com cara de sono, aos poucos e
preguiçosamente, se levantavam! Lentamente,
se dirigiam ao banheiro com suas escovas de
dente. Eram dezenas de pias e chuveiros com
água fria. Imóvel, eu apenas olhava tudo
aquilo com estupefação. De repente, aquele
homem olhou para mim e gritou bem alto:
“você que é Fábio?” Assustado com tantos
olhares voltados para mim, eu apenas
balancei a cabeça num gesto afirmativo. “Vá
escovar os dentes, menino! Rápido! O que
você está esperando?” Timidamente, eu
respondi que não tinha escova de dente.
Então, ele me chamou até ele e abriu um
armário, de onde retirou um sabonete, uma
toalha, um dentefrício (era assim que
chamávamos o creme dental naquela época; às
vezes falávamos apenas pasta) e uma escova
de dentes. “Cuida bem deste material. Se
perder alguma coisa você vai ficar de
castigo! Ouviu! Agora vai escovar os dentes
e limpar essa cara! Rápido!”
Eu não
lembro de ter tido uma escova de dentes
antes (nem mesmo no período quando fui
adotado por uma família de agricultores,
algo que contarei mais à frente). Eu mal
coloquei a escova na boca e o monitor, o
qual chamávamos de assistente, bradou: “todo
mundo em fila indiana, rápido! Você também,
moleque”, disse ele, se referindo a mim. E,
em fila, e em silêncio, fomos para o
refeitório, onde foi designado um lugar para
mim numa das dezenas de mesas. Lá
encontramos outra fila com uns 40 meninos.
Eles dormiam em outro dormitório e, por
serem mais velhos que os garotos do meu
dormitório, eram chamados de “maiores”. Era
assim que funcionava: os menores quando iam
crescendo, mudavam para o dormitório dos
maiores.
O café da manhã era
constituído de um pão com manteiga e um copo
de leite. Eu gostei muito daquela que era
apenas a primeira de quatro refeições que
tínhamos ao longo do dia. Após o café da
manhã, éramos conduzidos, sempre em filas,
para as salas de aula. E eu, como disse que
já tinha estudado antes, quando morei com a
família de agricultores, então, em vez de
entrar no pré-primário, fui designado para a
primeira série. A professora era uma freira
que não usava hábito (aquela roupa típica de
freira) chamada de Maria José. Ela era
considerada uma professora muito brava, pois
dava palmatórias com uma enorme régua de
madeira nos alunos que faziam bagunça
durante a aula. Eu gostava dela. Ela jamais
me agrediu, pois eu era excelente aluno e
sempre tirava as melhores notas. Estar
naquele internato, chamado na época de
Aprendizado Agrícola São José, foi
maravilhoso demais para mim, pois, além de
comer, com regularidade, refeições
deliciosas e balanceadas, algo que não
acontecia quando morava com minha mãe, eu
ainda fazia a coisa que mais amava na vida:
estudar.
Como sou grato por ter ido
morar naquele internato. É tanta gratidão
que não consigo expressar em palavras. E
agora, enquanto escrevo estas lembranças,
lágrimas escorrem dos meus olhos. Essas
lágrimas, mais do que palavras, dão uma
idéia da enorme gratidão que tenho aos Céus,
e aos anjos que sempre me guiaram, por terem
me levado para aquele lugar. Eu não consigo
nem imaginar o que teria acontecido comigo
se não tivesse ido para lá. Obrigado Deus!
Obrigado Universo! Obrigado Padre Lancísio!
Obrigado Dona Leontina!
- n.45• fevereiro 2023