Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
Um bordel é um lugar incrível
Cabaré, puteiro, bordel, inferninho,
casa da luz vermelha, zona do baixo
meretrício, ou simplesmente, “zona”.
Esses são alguns dos adjetivos que se
usava (e acho ainda se usa) para se
referir a casas de prostituição, como a
que nasci, no centro da cidade de
Anápolis, Goiás, no Centro-Oeste
brasileiro.
Confesso
que não sei mais se esse local, que era
uma espécie de pequeno bairro, com
alguns quarteirões, onde a prostituição
feminina era liberada e tolerada, ainda
existe, pois fui levado de Anápolis aos
seis anos de idade e nunca mais voltei.
O Brasil melhorou muito economicamente
desde 1968, o ano que nasci, mas ainda é
um país com milhões e milhões de
miseráveis, as principais vítimas da
prostituição.
Mas o
que importa é que, na minha mente, os vários
bordéis por onde minha mãe e eu moramos
ainda existem, e são locais incríveis. São
construções enormes, com longos corredores e
vários quartos onde dezenas de trabalhadoras
do sexo vivem e trabalham. A casa onde acho
que realmente nasci, o bordel da Dona
Tonica, que ficava numa rua próxima a uma
caixa d’água enorme, era a maior delas. Na
entrada, tinha um salão imenso, com vários
sofás, mesas e cadeiras, onde se recebiam os
clientes.
Quando
escurecia, eu era colocado para dormir, e
geralmente dormia. Mas houve situações em
que vi, pelo menos por um pouco, o salão em
pleno funcionamento.
Além
disso, mesmo que as pessoas tentassem
disfarçar, eu sempre ouvia, no dia seguinte,
trechos de histórias do que tinha ocorrido
em cada noite. As crianças são muito mais
espertas do que os adultos imaginam.
O
salão do cabaré da Dona Tonica era um lugar
onde a radiola (o aparelho de som da época)
tocava canções sertanejas dançantes no
volume máximo.
Havia
luzes coloridas e piscantes, principalmente
vermelhas.
E
havia, é claro, a luz negra. Esta me
fascinava absolutamente, porque ela deixava
florescentes e brilhantes as roupas brancas
das pessoas. Era mágico!
Os
cheiros das mais variadas bebidas se uniam
ao dos cigarros e ao dos inebriantes e
fortes perfumes das damas.
E
também, é claro, havia o odor dos perfumes
baratos dos homens. Os rapazes também faziam
questão de colocar as suas melhores roupas e
águas de cheiro. O chapéu era um acessório
bastante comum entre eles, a maioria jovens
trabalhadores rurais da região rural de
Anápolis, geralmente solteiros. Mas muitos
casados também eram frequentadores assíduos
do bordel da Dona Tonica. As mãos cheias de
calos, provocados pelas enxadas e foices, e
a pele embrutecida pelo excesso de sol, eram
o comprovante de que se tratava de seres
respeitáveis e que queriam apenas um pouco
de felicidade em suas vidas sofridas de
lavradores explorados por um trabalho quase
medieval e com aspectos de escravidão. Se há
vilões na prostituição, acho que não são
eles. Teve um tempo em que eu os odiava. Mas
com o desenrolar dos anos (muitos anos!),
deixei o meu desprezo de lado e passei a
respeitar esses homens, talvez pelo simples
motivo que, entre eles, há um que é o meu
pai. Eu nunca saberei qual, e nunca soube se
minha mãe
também saberia apontá-lo. Mas gosto de
imaginar que ele era um homem esforçado e
que trago muitas das suas características,
pois eu também já enfrentei muitos trabalhos
estafantes e próximos da escravidão.
Logo
que esses lavradores e vaqueiros entravam no
salão do cabaré de Dona Tonica, com suas
botas e botinas pesadas e com os bolsos
cheios de dinheiro, já eram abordados com
palavras e gestos de acolhimento e sedução.
Eles escolhiam as mulheres que mais lhes
agradavam, dançavam, bebiam, gritavam,
pagavam tudo adiantado e iam para os quartos
se divertirem, tudo com o tempo
cronometrado! Quem quisesse passar a noite
toda com uma dama tinha que pagar uma
pequena fortuna para a Dona Tonica. A dona
do bordel sempre estimulava as mulheres a
induzirem os homens a beber o máximo
possível, de preferências as bebidas mais
caras, como o
whisky,
vendido em pequenas e caríssimas doses. Mas
Dona Tonica não admitia excessos e
escândalos. Nem por parte das mulheres e nem
por parte dos homens. Quem se excedesse era
expulso da casa, sem possibilidade de
retorno. Um bordel é tudo menos um lugar
bagunçado e sem regras! As damas não podiam
roubar os cavalheiros, e eles não podiam ser
violentos com elas.
Com
pulsos firmes, Dona Tonica mantinha a paz no
local. Até mesmo policiais militares e
soldados do exército e aeronáutica, também
grandes frequentadores do local, não ousavam
contrariar Dona Tonica. Quem a visse durante
o dia não acreditaria que aquela mulher, de
mais ou menos 50 anos e aparência frágil,
era detentora de tanto poder. “Ela falou,
água parou”, dizia-se na época. Ela tinha um
enorme carinho por mim. “Fábio, vai comprar
carne para o biscoito”, bradava ela.
O
biscoito era o gatinho de estimação dela, “o
único amor de sua vida”.
Se a
carne não fosse fresca e moída na hora, ela
me fazia devolvê-la para o homem do açougue.
Eu ficava feliz quando era convocado por
Dona Tonica, pois sempre ganhava uma moeda
com a qual comprava alguma guloseima no
mercadinho, principalmente o doce de abóbora
em formato de coração. Ah, quanta saudade
desse doce! Um dia, minha mãe e ela ficaram
desesperadas porque eu engoli uma das moedas
que Dona Tonica me deu. Felizmente não
morri, pois tinha muito a aprender sobre o
bordel e sobre a vida. Onde andará Dona
Tonica? No céu, é claro! Se houver justiça
no pós-vida, toda prostituta vai direto para
lá, sem a menor possibilidade de passar pelo
purgatório!
As
prostitutas são pessoas completamente
comuns. O trabalho com o sexo não as torna
melhores nem piores do que os outros seres
humanos. Sofrem e choram, tem grandes e
pequenas alegrias, amam e odeiam como
qualquer pessoa “respeitável” da sociedade,
e acreditam que o futuro vai ser sempre
melhor, mas sem príncipes encantados, afinal
muitas caíram na prostituição por causa
dessa ilusão. Acho que prostitutas são um
pouco melhores do que os outros mortais
talvez por terem menos preconceitos. Não
julgam muito as pessoas, já que são julgadas
ao extremo. Ninguém escolhe ser puta! Uso a
palavra “puta” não para diminuí-las, mas
para engrandecê-las! Acho que elas têm um
poder sobre os homens (e sobre a vida) que
as mulheres comuns jamais experimentarão.
Elas, sim, são donas de suas vaginas! São
Marias Madalenas, mas geralmente sem
arrependimentos!
Cada
uma tem uma história dolorida que as
empurraram para os cabarés onde chegaram. No
caso da minha mãe, por exemplo, o próprio
pai dela a expulsou de casa ainda muito
jovem, quando ele soube que ela “se perdeu”.
Amo esse expressão, que significa “perdeu a
virgindade fora do casamento”, porque, para
mim, ela denota exatamente o contrário. Acho
que quem se perdeu, na verdade, se
encontrou! Descobriu a força mais poderosa
da vida, que é a própria vida a manifestar
sua ânsia de perpetuação. Descobriu também o
poder sobre os homens, algo inadmissível
desde que sociedade tornou-se patriarcal.
Talvez por isso, tanta humilhação às
mulheres que quebram as monótonas regras do
“casamento puro”.
Acho
que nós, homens, empurramos as mulheres para
a prostituição não só por vingança pelo
poder que possuem, mas principalmente porque
a vida sem o gozo oferecido pelas
prostitutas é muito entediante e sem
tempero! Acho que, sem elas, a maioria das
relações “abençoadas pelas igrejas”, seriam
insuportáveis. Aquele papo de “profissão
mais antiga do mundo” talvez devesse ser
mudado para “profissão mais essencial do
mundo”.
A
minha vida no bordel foi muito dolorida! A
vida da minha mãe foi mais sofrida ainda!
Ser colocada na prostituição pela própria
família é algo nefasto demais!
Não
desejaria esse tipo de vida para outras
pessoas! Mas se nascesse mil vezes, mil
vezes escolheria nascer no mesmo bordel da
Dona Tonica! Mil vezes escolheria ser filho
de uma puta, e com muito orgulho! A vida que
tive na infância e que se resvala,
absolutamente, no ser que hoje sou, é, para
mim a melhor vida de todas! Eu tenho orgulho
da minha jornada pela existência,
principalmente do início!
Assim
como no comovente filme do diretor italiano
Roberto Benigni,
A vida é bela
(1997), em que um prisioneiro judeu de um
campo de concentração nazista cria, durante
a Segunda Guerra Mundial, um mundo ilusório
para tentar proteger o seu pequeno filho
(também prisioneiro) da enorme tragédia que
viviam, minha mãe também se esforçava para
criar uma vida de faz de conta, para que eu
não percebesse que vivia num bordel. Ela
jamais pronunciou a palavra cabaré ou
sinônimos para mim! Ela jamais se disse
prostituta!
Oh,
mãe! Eu sempre soube de tudo! Acho que desde
o momento em que minha consciência se
despertou para a vida!
E
tudo bem! Eu nasci num lugar incrível! Onde
mais eu teria tantas luzes coloridas? E
tantos espaços inusitados para brincar com
meus balões? Onde eu teria a Dona Tonica
para me dar moedas? Onde eu teria tantos
amiguinhos para brincar? Onde mais eu teria
uma mãe tão poderosa como você?
Memórias de um menino que vivia num bordel
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