
Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
O pior de todos os dias
Dizem que nossas
memórias, principalmente as da infância, são
quase todas meio ficcionais. Como desejaria
que isso fosse verdade! Acho que os
principais defensores desta idéia são
aquelas pessoas que tiveram, nos primeiros
anos de suas vidas, uma forte rede de
proteção, a ponto de terem passado os
primeiros anos de suas vidas a brincar prá
lá e pra cá e a experimentar a maldade e o
desamparo apenas de bruxas e monstros que
povoam os contos de fada e filmes da
televisão e cinema. Gostaria, por exemplo,
que a falta do nome de um pai em minha
certidão de nascimento fosse apenas uma
“ficção”! Desejaria que a ausência absoluta
desse pai fosse apenas um “jogo de faz de
conta”! Gostaria que as marcas de
espancamentos brutais, estupros (ah, foram
tantos!) e outras violências mil que sofri
por parte de dezenas de pessoas, ao longo
dos meus primeiros anos neste mundo, fossem
apenas “imaginárias”! Gostaria que os dias
de fome pelos quais passei – e foram muitos,
tivessem sido apenas “simples pesadelos” de
um menino que gostava de dormir no escuro.
Ah, como eu desejaria não ter passado um ano
como escravo (isso mesmo, escravo!) na casa
de uma família branca de classe média na
cidade de Goiânia, Goiás! Isso nos últimos
anos da década de 1970 (que não me lembro
qual), quase 100 anos do fim da escravidão
no Brasil. Neste caso, será que foi ficção
que, numa bela manhã de sol, um lindo casal
chegou ao orfanato onde morava, havia dois
anos, e insistiu para me adotar e, que,
assim que cheguei na casa deles, fui
transformado em empregado doméstico? Eu não
tinha mais do que oito ou nove anos! Esta
família de escravocratas só me devolveu ao
orfanato porque eu passei a me auto-mutilar
com fortes mordidas no braço, e eles, ao
perceberem que não teriam um “escravinho”
por muito mais tempo, me levaram de volta ao
internato. Ao lembrar dessas situações, elas
não me parecem nada ficcionais, senhores
discípulos de Freud! Algumas fortes marcas,
físicas e na alma, subsistem! Mas eu não me
concentro nelas!
Só recordo das
situações negativas que atravessei quando
faço enorme esforço e, se fosse possível,
não me lembraria de forma nenhuma. Ah, não
lembraria mesmo! Como estratégia de
sobrevivência, aprendi que focar em coisas
negativas faz com que essas coisas se tornem
mais monstruosas do que são. Se minha vida
teve muitas tragédias, ela também teve
grandes milagres e foram eles que
contribuíram para que eu crescesse saudável
e feliz! E a minha felicidade vem da
gratidão por Deus (ah, quantas vezes eu fui
resgatado do vale da sombra a morte!) e todo
esse infinito Universo, que me criaram, me
protegeram e que fizeram com que o que
prevalecesse em mim fosse a luz e não as
trevas! É por isso que sou absolutamente
grato! Grato por tudo! Pelo bem e pelo mal
(que me fez mais forte e orgulhoso da minha
trajetória)! Sou grato especialmente pela
mãe que tive! Se minha trajetória foi
difícil, a dela deve ter sido mais ainda! Eu
sei muito pouco da vida dela! Há pessoas
espiritualistas que dizem que escolhemos os
nossos pais. Gosto de acreditar nisso! E
mesmo que não tenha escolhido a mãe que
tive, tenho plena consciência, já há alguns
anos, que ela foi a melhor mãe que eu
poderia ter tido. Eu a escolheria milhares
de vezes! Mas eu tive outra mãe ao longo da
vida, e é dela que vou falar agora.
Quando morava no bordel com minha verdadeira
mãe, na cidade de Anápolis, Goiás, época em
eu tinha provavelmente uns quatro ou cinco
anos, ela me entregou para a adoção. Naquele
tempo, as adoções não passavam pela
aprovação do Judiciário, e os pais “davam”
os filhos para quem quisessem. Então, eu fui
“dado” para um casal de agricultores e seus
quatro filhos, que viviam numa pequena
propriedade rural no município de Silvânia,
Goiás. Eles tinham três meninas e um menino,
e queriam mais um garoto, para brincar com o
menino, já que na época não era muito
aceitável um menino brincar com garotas! Eu
acho que morei com essa família por mais ou
menos um ano. Eu me adaptei de imediato a
eles. Passei a chamar a mulher (dona
Estelita) de mãe e, o homem (senhor José
Rodrigues), de pai. E as crianças
(Guilherme, Márcia, Marlene e Marcilene),
para mim, tornaram-se meus irmãos. Eu amava
todo mundo e eles eram, para mim, a família
perfeita. Eu amava viver com eles no meio
das árvores, rios, vacas, cavalos, noites
estreladas (desde muito pequeno gosto de
contemplar as estrelas) e todas as belezas
que a vida numa fazenda propicia. Era
maravilhoso pertencer a uma família!
Mas,
de repente, num belo dia, eles simplesmente
me devolveram para a minha verdadeira mãe!
Inacreditável! Essa foi uma das situações
mais tristes e doloridas da minha vida.
Recordo que, quando fui entregue à minha
mãe, eu comecei a chorar e não parei mais.
Acho que chorei um dia inteiro, e, se parei,
foi por exaustão. A minha vontade era de
chorar para sempre, até morrer! Sim, acho
que foi o dia mais triste da minha vida! Não
consigo lembrar de ter atravessado um luto
tão dolorido em toda a minha existência.
Tempos depois soube o motivo da minha
devolução: os meus pais adotivos não
aceitaram o fato de eu gostar de brincar
também com as meninas! Já adulto, soube que
o meu irmão adotivo, o Guilherme, aos 18
anos, foi assassinado em um conflito de
terras, quando a família dele mudou de Goiás
para o Pará. Quando era estudante de
graduação, no curso de jornalismo da
Universidade Federal de Goiás, uma pessoa da
cidade de Silvânia soube da minha história e
disse que os meus ex-pais adotivos tinham um
grande pesar pelo que fizeram e que queriam,
muito, entrar em contato comigo! Mas eu
recusei, e recuso qualquer aproximação! Acho
que tenho esse direito! Não é que não os
perdôo! É que tenho respeito pelas lágrimas
que derramei durante dias após a minha
devolução. A sensação que tenho é que não
foi justo! Não foi justo mesmo!
Apesar da
dor imensa que a rejeição por parte dessa
família me causou, hoje percebo que talvez
tenha sido melhor eu retornar para a minha
mãe! Lá no fundo, eu tenho mais orgulho de
ter vivido num bordel e de ser o “filho de
uma puta” do que ter vivido no seio de uma
família conservadora. Se fosse hoje, eu não
derramaria nenhuma lágrima por causa do meu
retorno para a minha verdadeira mãe! Ah, Se
fosse hoje!
- n.46• março 2023