Vultos da Cultura Portuguesa

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José Afonso

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasce em Aveiro, a 12 de Agosto de 1929, filho de José Nepomuceno Afonso e Maria das Dores. Até aos dez anos anda por Angola (1933-36), Aveiro (1936), Moçambique (1937), Belmonte (1938-39). Em 1940 vai para Coimbra, onde casa pela primeira vez e onde fica até ser chamado ao serviço militar, em 1953. Entretanto, começa a cantar. Primeiro no liceu, depois na Universidade. Rui Pato, seu amigo, acompanha-o à viola. Grava o primeiro disco ("Balada do Outono") no final da década de 50 e, durante uma deslocação ao Algarve (é então professor) conhece aquela que virá a ser a sua futura mulher: Zélia Santos. É com ela que, em 1964, ruma de novo a África, com destino a Moçambique, uma viagem decisiva no cimentar da sua consciência anti-colonial. No regresso, é expulso do liceu e perseguido pelas suas posições políticas.Canta mais para sobreviver do que por opção de carreira, mas no entanto os seus discos começam a ser bandeira de uma geração que vê nele um dos seus mais lúcidos arautos. A escolha de "Grândola Vila Morena" para senha do 25 de Abril de 1974 associa para sempre o seu nome à história da revolução dos cravos. De 1964 até 1985 gravou quinze álbuns, com destaque para "Baladas e Canções" (1964), "Cantigas do Maio" (1971), "Venham Mais Cinco" (1973) e "Como Se Fora Seu Filho" (1983). Num deles, ficou registado o seu primeiro grande concerto como músico profissional, a 29 de Janeiro de 1983 no Coliseu de Lisboa, já a doença que o vitimou (uma esclerose lateral amiotrópica) o minava. José Afonso morreu no Hospital de Setúbal, a 23 de Fevereiro de 1987, com 57 anos. A perpetuar a sua obra e memória, como músico, poeta. cantor e compositor, registe-se a actividade da Associação José Afonso, o prémio musical José Afonso atribuído anualmente pela Câmara da Amadora e os discos (de homenagem ou reencontro) "Filhos da Madrugada" (1994) e "Maio Maduro Maio" (1995), onde se propõem diferentes releituras de muitas das suas canções.

Liberdade e Criação
José Mário Branco*

"Veio, de menino de oiro pela mão, acordar a madrugada. E fez mais, às vezes, uma só canção do que muita panfletada".Nos depoimentos que frequentemente são produzidos acerca do Zeca Afonso acaba sempre por haver uma tendência para destacar as riquezas, sem dúvida apaixonantes e essenciais, da sua imensa personalidade. Tal facto dever-se-á por certo à clara transparência da sua prática de vida e à naturalidade com que punha, no mais quotidiano gesto, todo o sentido dos valores que respirava - numa palavra, o exemplo que foi todo o seu percurso como cidadão, companheiro e artista.
Num país (e numa época) em que, por força da opressão, a criação - frágil e livre - se viu obrigada a alistar-se nos exércitos da utilidade social, é de esperar que se repare mais na luminosidade do exemplo do que na genialidade intrínseca da obra.
Mas José Afonso - a par de Ferré, Brel, Yupanqui, Dylan ou Chico Buarque - é um dos poucos autores-intérpretes que, no nosso século, provaram que a forma musical "canção popular" ultrapassa muito o estatuto de arte menor e atinge os mais altos níveis de qualidade estética.
Diga-se, em abono da verdade, que o próprio Zeca Afonso nunca apreciou muito que se puxasse para este campo o debate sobre a sua obra. Sempre cuidando (e com que mestria!) os aspectos formais as suas canções, ele sobrelevava sistematicamente a sua potencial utilidade para as pequenas e grandes causas da Humanidade.
Sentia-se mais à vontade na pele de testemunha activa do seu tempo do que na de um poeta prospector de eternidades. Certamente por saber, como sempre souberam os grandes, que os "aspectos formais" não são assim tão meramente formais, e que é sempre do solitário combate contra a matéria que acaba por nascer o sentido da obra criada.
O gesto criativo de José Afonso era, à primeira vista, espontâneo, simples, quase primitivo e orgânico A balada coimbrã - matriz de origem, ela própria radicada no cancioneiro tradicional beirão e açoreano - foi o veículo formal de um poderoso assumir das suas raízes poético-musicais. Anos mais tarde, a vivência africana provoca-lhe uma verdadeira explosão de formas melódicas, rítmicas e tímbricas, e - talvez mais que tudo - da função musical da palavra cantada.
O chão desta fonte de música era a sua profunda cultura humanística, assimilada e vivida. Praticar a liberdade dá asas à criação, eis o que a vida e a obra do Zeca nos ensinam.
A obra de José Afonso, no seu todo, é um património fundamental da cultura portuguesa deste século. Fonte inesgotável de propostas, de caminhos possíveis, limiar de contacto directo com as sombras da nossa identidade de povo antigo e perdido. E, tal como a todo o nosso património, essa obra vive no perigo permanente de lhe acontecer o que vi, não há ainda muito tempo, numa praça de Lisboa: uma belíssima vivenda pombalina disfarçada de loja de hamburgers".
Começam a abundar, por aí, deploráveis sinais de um aproveitamento bastardo e oportunista do seu génio.
Que não se cansem de nascer as fontes onde o Zeca foi beber.

*músico, cantor e compositor

José Afonso ao vivo no Coliseu em Lisboa
29 de janeiro de 1983


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