Vultos da Cultura Portuguesa
Jaime Cortesão | José Régio | Amália Rodrigues | Teixeira de Pascoaes | Aquilino Ribeiro| José Afonso | Beatriz Costa |
José Afonso
- Partilhar 06/11/2023
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasce em Aveiro, a 12 de Agosto de 1929, filho de José Nepomuceno Afonso e Maria das Dores. Até aos dez anos anda por Angola (1933-36), Aveiro (1936), Moçambique (1937), Belmonte (1938-39). Em 1940 vai para Coimbra, onde casa pela primeira vez e onde fica até ser chamado ao serviço militar, em 1953. Entretanto, começa a cantar. Primeiro no liceu, depois na Universidade. Rui Pato, seu amigo, acompanha-o à viola. Grava o primeiro disco ("Balada do Outono") no final da década de 50 e, durante uma deslocação ao Algarve (é então professor) conhece aquela que virá a ser a sua futura mulher: Zélia Santos. É com ela que, em 1964, ruma de novo a África, com destino a Moçambique, uma viagem decisiva no cimentar da sua consciência anti-colonial. No regresso, é expulso do liceu e perseguido pelas suas posições políticas.Canta mais para sobreviver do que por opção de carreira, mas no entanto os seus discos começam a ser bandeira de uma geração que vê nele um dos seus mais lúcidos arautos. A escolha de "Grândola Vila Morena" para senha do 25 de Abril de 1974 associa para sempre o seu nome à história da revolução dos cravos. De 1964 até 1985 gravou quinze álbuns, com destaque para "Baladas e Canções" (1964), "Cantigas do Maio" (1971), "Venham Mais Cinco" (1973) e "Como Se Fora Seu Filho" (1983). Num deles, ficou registado o seu primeiro grande concerto como músico profissional, a 29 de Janeiro de 1983 no Coliseu de Lisboa, já a doença que o vitimou (uma esclerose lateral amiotrópica) o minava. José Afonso morreu no Hospital de Setúbal, a 23 de Fevereiro de 1987, com 57 anos. A perpetuar a sua obra e memória, como músico, poeta. cantor e compositor, registe-se a actividade da Associação José Afonso, o prémio musical José Afonso atribuído anualmente pela Câmara da Amadora e os discos (de homenagem ou reencontro) "Filhos da Madrugada" (1994) e "Maio Maduro Maio" (1995), onde se propõem diferentes releituras de muitas das suas canções.
Liberdade e Criação
José Mário
Branco*
"Veio, de menino de oiro
pela mão, acordar a madrugada. E fez
mais, às vezes, uma só canção do que
muita panfletada".Nos depoimentos
que frequentemente são produzidos acerca
do Zeca Afonso acaba sempre por
haver uma tendência para destacar as
riquezas, sem dúvida apaixonantes e
essenciais, da sua imensa
personalidade. Tal facto dever-se-á por
certo à clara transparência da sua
prática de vida e à naturalidade com
que punha, no mais quotidiano gesto,
todo o sentido dos valores que
respirava - numa palavra, o exemplo
que foi todo o seu percurso como
cidadão, companheiro e artista.
Num país (e numa época) em que, por
força da opressão, a criação -
frágil e livre - se viu obrigada a
alistar-se nos exércitos da
utilidade social, é de esperar que se
repare mais na luminosidade do
exemplo do que na genialidade
intrínseca da obra.
Mas José Afonso -
a par de Ferré, Brel, Yupanqui, Dylan ou
Chico Buarque - é um dos poucos
autores-intérpretes que, no nosso
século, provaram que a forma musical
"canção popular" ultrapassa muito o
estatuto de arte menor e atinge os mais
altos níveis de qualidade estética.
Diga-se, em abono da verdade, que o
próprio Zeca Afonso nunca apreciou
muito que se puxasse para este campo o
debate sobre a sua obra. Sempre
cuidando (e com que mestria!) os
aspectos formais as suas canções, ele
sobrelevava sistematicamente a sua
potencial utilidade para as pequenas
e grandes causas da Humanidade.
Sentia-se mais à vontade na pele de
testemunha activa do seu tempo do
que na de um poeta prospector de
eternidades. Certamente por saber,
como sempre souberam os grandes, que
os "aspectos formais" não são assim tão
meramente formais, e que é sempre do
solitário combate contra a matéria que
acaba por nascer o sentido da obra
criada.
O gesto criativo de José
Afonso era, à primeira vista,
espontâneo, simples, quase primitivo e
orgânico A balada coimbrã - matriz
de origem, ela própria radicada no
cancioneiro tradicional beirão e
açoreano - foi o veículo formal de
um poderoso assumir das suas raízes
poético-musicais. Anos mais tarde, a
vivência africana provoca-lhe uma
verdadeira explosão de formas melódicas,
rítmicas e tímbricas, e - talvez
mais que tudo - da função musical da
palavra cantada.
O chão desta fonte
de música era a sua profunda cultura
humanística, assimilada e vivida.
Praticar a liberdade dá asas à
criação, eis o que a vida e a obra do
Zeca nos ensinam.
A obra de José
Afonso, no seu todo, é um património
fundamental da cultura portuguesa deste
século. Fonte inesgotável de
propostas, de caminhos possíveis, limiar
de contacto directo com as sombras
da nossa identidade de povo antigo e
perdido. E, tal como a todo o nosso
património, essa obra vive no perigo
permanente de lhe acontecer o que
vi, não há ainda muito tempo, numa praça
de Lisboa: uma belíssima vivenda
pombalina disfarçada de loja de
hamburgers".
Começam a abundar, por
aí, deploráveis sinais de um
aproveitamento bastardo e oportunista do
seu génio.
Que não se cansem de
nascer as fontes onde o Zeca foi beber.
*músico, cantor e compositor
José Afonso ao vivo
no Coliseu em Lisboa
29 de janeiro de
1983
Vultos da Cultura Portuguesa
Jaime Cortesão | José Régio | Amália Rodrigues | Teixeira de Pascoaes | Aquilino Ribeiro| José Afonso | Beatriz Costa |
- Ano V• novembro 2023