Vultos da Cultura Portuguesa
Jaime Cortesão
- Partilhar 10/06/2023
Jaime Zuzarte Cortesão nasce em Ançã, distrito de Coimbra, a 29 de Abril de 1884, filho do filólogo António Augusto Cortesão. Estuda em Coimbra, Porto e Lisboa. Em 1909 forma-se em Medicina e em 1912 é nomeado professor de Literatura num liceu do Porto, onde se mantém até à sua eleição para deputado, em 1915. Juntamente com Teixeira de Pascoaes, participa, a partir de 1910, no movimento saído da revista "A Águia", ampliado depois pelo grupo "Renascença Portuguesa". Na I Guerra Mundial faz a campanha da Flandres como voluntário e vem a ser condecorado com a Cruz de Guerra. Em 1919 é nomeado director da Biblioteca Nacional, cargo que mantém até 1927. A sua obra histórica tem início em 1922, ano em que começa a colaborar com Carlos Malheiro Dias na "História da Colonização Portuguesa do Brasil". É nesse ano que se desloca ao Brasil, integrando a missão literária que acompanha o presidente da República António José de Almeida. É um dos fundadores da "Seara Nova" e a sua oposição ao regime saído do golpe militar de 1926 (o Estado Novo) obriga-o a um longo exílio por terras de Espanha, França, Bélgica e Inglaterra, onde realiza um notável trabalho de investigação histórica. Em 1940 fixa-se no Brasil, onde desenvolve intensa e distinta actividade no campo das letras e das ciências, como poeta, dramaturgo, ensaísta e historiador. Regressa a Portugal em 1957 mas a sua actividade política, que nunca abandonou no exílio, leva-o à prisão em 1958, ano em que é eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Quando morre, em Lisboa, a 14 de Agosto de 1960, é já considerado um dos vultos maiores da cultura portuguesa.
A Plasticidade amorável do
Português
Jaime Cortesão
Os Portugueses, e em maior ou menor
grau os demais povos ribeirinhos da
Península, diferem, sim, dos Hispanos
do planalto central naquilo a que
chamamos plasticidade amorável. Aí
devemos buscar a raiz de todas as
atenuantes que Oliveira Martins
encontrava no português à afirmativa do
génio castelhano.
Plasticidade
amorável dizemos nós, porque dá ao
espírito, exaltado pelo amor, uma
capacidade eminentemente compreensiva,
tanto para comunicar como para
aprender.
Oliveira Martins viu
esta virtude apenas pelo seu reverso,
isto é, na facilidade com que recebemos
e assimilamos as qualidades alheias.
Mas a plasticidade portuguesa, se é
capaz de descobrir e assimilar nas
culturas alheias a parte nova de
humanidade, para enriquecer-se com ela,
estabelece assim a condição primeira
para transmitir, por sua vez, a
humanidade própria. Povo algum de entre
todos os que levaram a sua cultura a
outros continentes imprimiu influências
tão vivas nos outros povos. Na África,
uma cultura artística tão evoluída, com
a de Benim; na Ásia, sociedades, tão
diferenciadas como a japonesa; por toda
a parte os povos mais cultos, como o
chinês, ou os menos cultos, como os
ameríndios, aí estão para atestar na
arte, nos costumes, nas técnicas, na
língua, em todas as formas da cultura,
a marca viva das influências
portuguesas.
O segredo dessa
plasticidade, juntamente irradiante e
receptiva, plasmável, esconde-se na
riqueza amorosa do português, no seu
dom de simpatia e comunicação cordial
que Ihe permite dar e receber, sem
alterar o fundo próprio. A
plasticidade, que mergulha as raízes no
amor, não diminui, mas acrescenta.
Nesse caso, o carácter pode
conservar-se na sua pureza íntegra; e,
se guarda em si, como num paládio,
alguma virtude ou verdade fundamental,
adquire a possibilidade de a comunicar
ao próximo ou de a enriquecer com novas
aquisições. A hombridade seca e
inexorável leva ao inquisidor; a
hombridade plástica e amorável ao
apóstolo. Sem esta última, fora
impossível compreender-se a expansão
portuguesa, e mais que em nenhures na
América.
Primeiro e mais que
nenhum outro povo, o português se
habituou à variedade das zonas
climáticas e das raças e costumes
novos. Mas recebeu e transmitiu
valores. Se algum dos povos
colonizadores se extremou na atitude
cristã com os outros povos, esse foi o
português. Por uma equação de amor,
universalizou, na medida em que foi
universalizado. Mas manteve por toda a
parte e contra tudo e todos o código da
sua lei nacional ou os princípios da
sua fé religiosa.
Entre a
hombridade rígida do Hispano e a
hombridade plástica do Português, a
explicar a segunda, medeia a
inquietação. Comum a todos os povos
ibéricos de raiz semita, ela ganha uma
tonalidade específica no Português. A
inquietação portuguesa,
predominantemente extrovertida, é
juntamente mais pragmática e mais
sequiosa de espaço. O primeiro homem
que deu a volta ao mundo tinha que ser,
e foi português. [...]
Eis o
tipo do português, considerado como um
padrão ideal, moldado pela terra, o
género de vida e as andanças
históricas, e visto nos seus traços
mais fundos-hombridade, plasticidade e
inquietação-módulo resistente do seu
carácter, que por várias formas
encarnou em símbolos literários, para
de novo reverter à vida, e, por meio
deles, influí-la.
Se
analisarmos ainda hoje qualquer
português, nele encontramos, em
combinações diversas aquelas virtudes,
aliadas por vezes aos defeitos das
virtudes, quando não estes
exclusivamente. Como as moedas gastas
pelo tempo e o manuseio, cuja efígie,
outrora de nítido perfil, hoje mal se
reconhece, e, quando o metal é vil, se
afoga no verdete, assim, nos decaídos
lusos, mais ou menos a custo se enxerga
o lusíada da idade heróica. Às vezes é
um traço apenas ou um resto de traço.
Mas esse basta ao observador
experimentado para reconhecê-lo e
reconstituir-Ihe as ascendências.
Ficou-lhes a quase todos do
convívio secular com povos peregrinos a
cordialidade compreensiva, a
fraternidade pronta e a facilidade de
assimilar o exótico. Em muitos, sob
esta casca dúctil, chega-se facilmente
ao rijo cerne da hombridade, que se
traduz em inteireza de carácter,
tenacidade e fidelidade a todas as
tradições da terra e de uma cultura
multissecular.
Outros, e são os
que mais se aproximam do padrão ideal,
aliam em proporções iguais aquele
casticismo de raiz ao cosmopolitismo de
floração, nas tendências e nos ideais.
Nesta união dos contrários--síntese das
duas consequências da hombridade e da
plasticidade, reside o q?id diferencial
que distingue o português do homem da
meseta, mas o aproxima do catalão, do
galego, do andaluz ou do basco.
A lógica desse protótipo reveste a
forma de um aparente paradoxo: o
português é tanto mais nacionalizado,
quanto mais cosmopolita. Descende
daqueles tipos das comédias de Jorge
Ferreira de Vasconcelos, cujo
casticismo se traduzia numa sabedoria e
numa linguagem universalizada pelo mar.
A nosso ver, todo e qualquer
programa político dum Portugal futuro
deveria obedecer conjuntamente a este
complexo, nas suas diferenciações e nas
suas semelhanças. Deveria igualmente
ter em vista os defeitos das
qualidades.
A hombridade ibérica
degenera, com frequência, na
exacerbação anárquica do eu, no
individualismo feroz, na
indisciplina, na soberba e no ponto de
honra, na inveja e na maledicência,
vícios mais comuns aos habitantes da
meseta, menos plásticos, mas que estão
longe de ser alheios aos Portugueses.
Inveja e maledicência já eram
denunciadas, ao longo de todo o século
XVI, por Duarte Pacheco, D. João de
Castro, ou Mendes Pinto, como vícios
essencialmente Portugueses. Unamuno, em
nossos dias, alargava, com amargo
acento, este juízo aos Espanhóis.
A hombridade pode conduzir
igualmente à intolerância fanática e
afirmar-se com violência e crueldade. O
carácter terrivelmente afirmativo do
ibérico tinha que levá-lo às
exacerbações inumanas da Inquisição.
Esse espírito permanece e permanecerá
latente, como vírus endémico em todas
as nações ibéricas. E o reverso fatal
de uma das suas maiores virtudes.
Se a hombridade é a fonte dos
maiores defeitos do ibérico, e, em
especial, do castelhano, seu
representante mais directo, a
plasticidade degenera no português, em
proporção maior, nos vícios
correspondentes: a maleabilidade levada
até à abjecção, à hipocrisia e ao
conformismo sem limites Foi por isso
também que a Inquisição fez mais
estragos nas almas em Portugal do que
na Espanha; e o fanatismo aliado à
baixeza pesam ainda hoje como a pior
das heranças e das ameaças sobre os
Portugueses.
- n.49• junho 2023