Vultos da Cultura Portuguesa

Teixeira de Pascoaes

Teixeira de Pascoais, de seu verdadeiro nome Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, nasce em Amarante, na velha casa senhorial de Pascoais, no dia 2 de Novembro de 1877. Filho de um lavrador culto e abastado, frequenta o liceu na sua terra natal e forma-se em Direito em Coimbra (1896-1901) na companhia de, entre outros, Afonso Lopes Vieira, João Lúcio, Fausto Guedes Teixeira e Augusto Gil. Advogado durante dez anos, em Amarante e no Porto, dirige a revista "A Águia" entre 1912 e 1917, onde se afirma como mentor da Renascença Portuguesa e do Saudosismo. Celibatário, passa a maior parte da sua vida no solar de Pascoaes, em Gatão, nos arredores de Amarante, cuidando das suas terras e entregue à sua arte. A sua estreia literária, aos 17 anos, com "Embriões", é ainda incipiente.
Mas com "Sempre" (1897) e, sobretudo, com "As Sombras" (1907), alarga os horizontes da escrita e afirma em definitivo a sua forte personalidade poética. Entre as suas inúmeras obras, contam-se, além das já descritas, "Terra Proibida" (1899), "Marânus" (1911), Regresso ao Paraíso" (1912), "O Doido e a Morte" (1913), "Verbo Escuro" (1914), "Cânticos" (1925), "O Homem Universal" (1937) e "O Empecido" (1950). Teixeira de Pascoaes morre aos 75 anos em S. João de Gatão, Amarante, a 14 de Dezembro de 1952.

Elegia do Amor
Teixeira de Pascoaes

Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para longe do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti...
E além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,

Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos...
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia na memória...
Assim o que partiu,
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos,
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.

Olhavas para mim...
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste... Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa !
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos...
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia...
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela

E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve, sim!
Te chamaria o céu,
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava !
Teu corpo era tão fino
E leve (ó meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava !
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
-Que incêndio! E eu, a rir,
Disse-te:-É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, Sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu,
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E e levou-nos assim,
Com ela, até ao céu...
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.

II

Um raio de luar,
Entrando, de improviso,
No meu quarto sombrio,
Onde medito, a sós,
Deixa, a tremer no ar,
Um pálido sorriso,
Um murmúrio de luz
Que lembra a tua voz...
O Outono, que derrama
Ideal melancolia
Nas almas sem amor,
Nos troncos sem folhagem,
Deixa a vibrar, em mim,
Saudosa melodia,
Dolorida canção,
Que lembra a tua imagem.
A noite que escurece
Os vales e os outeiros,
E que acende, num bosque,
A voz do rouxinol
E a estrela que protege
E guia os pegureiros;
A lágrima do céu
Ao ver morrer o sol,
Acorda, no meu peito,
Infinda e etérea dor,
Que à memória me traz
A luz do teu olhar...
Tudo de ti me fala,
Ó meu longínquo amor:
As árvores, a névoa,
Os rouxinóis e o mar.
Se passo por um lírio,

As vezes distraído,
Chama por mim dizendo:
«Oh! não te esqueças dela!»
Diz-mo também, chorando,
O vento dolorido,
Diz-mo a fonte, a cantar,
Diz-mo, a brilhar, a estrela.
E vejo, em toda a luz,
Teus olhos a fulgir.
Como adivinho, em tudo,
A alma que perdi!
Não encontro uma flor,
Sem o teu nome ouvir.
Não posso olhar o céu,
Sem me lembrar de ti!
Por isso eu amo o pobre,
O triste e a Natureza,
A mãe da humana dor,
Da dor de Deus a filha.
Meu coração, ao pé
Dum pobrezinho, reza;
Canta, ao lado dum ninho,
Ao pé da estrela, brilha.
O meu amor por ti,
Meu bem, minha saudade,
Ampliou-se até Deus,
Os astros alcançou.
Beijo o rochedo e a flor,
A noite e a claridade.
São estes, sobre o mundo,
Os beijos que te dou.
Hás-de senti-los, sim,
Doce mulher de outrora.
Ó roxo lírio de hoje,
Ó nuvem actual!
Como dantes, teu rosto,
A rosa ainda hoje cora;
Beijo-te, sim, beijando
A rosa virginal.
Teu aspecto divaga,
Ao longo dos espaços.
Teu amor, feito luz,

Desce do Firmamento.
Se abraço um verde tronco,
Eu sinto, entre os meus braços,
Teu corpo estremecer,
Como uma flor, ao vento.
Soluça a tua dor
Nas infinitas mágoas,
Que, no fundo da tarde,
Eu vejo, além, subir...
E paira a tua voz
No marulhar das águas,
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir.
Se os lábios vou molhar
Nas ondas duma fonte,
Queimam meu coração
Tuas lágrimas salgadas.
E, quando acaricia
O vento a minha fronte,
Eu bem sinto, sobre ela,
As tuas mãos sagradas.
Quando a lua, no Outono,
Envolta em luz funérea,
Morta, vai a boiar
Nas águas do Infinito,
Doira meu frio rosto
A palidez etérea,
Que dantes emanava
O teu perfil bendito.
Quando, em manhãs d'Abril,
Acordo, de repente,
E vejo, no meu quarto,
O sol entrar, sorrindo,
Julgo ver, ante mim,
Teu corpo resplendente,
Tua trança de luz,
Teu gesto suave e lindo.
Descubro-te, mulher,
Na Natureza inteira,
Porque entendo a floresta,
A névoa, o céu doirado,

A estrela a arder, no Azul,
A lenha na lareira,
E o lírio que, na cruz
Do outono, está pregado.
Falas comigo, sim,
Da dor, do bem, de Deus..
Repartes o meu pão,
Amor, pelos ceguinhos...
E pelas solidões
Os pobres versos meus,
Como os pobres que vão,
A orar, pelos caminhos.
És a minha ternura,
A minha piedade,
Pois tudo me comove!
O zéfiro mais leve
Acende, no meu peito,
Infinda claridade;
E a brancura do lírio
Enche meu ser de neve.
Todo eu fico a cismar
Na louca voz do vento,
Na atitude serena
E estranha duma serra;
No delírio do mar,
Na paz do Firmamento
E na nuvem que estende
As asas, sobre a terra.
Todo eu fico a cismar
Assim como que esquecido,
Ante a flor virginal
E o sol enamorado...
Ante o luar que nasce,
Ao longe dolorido,
Dando às cousas um ar
Tão triste e macerado.
Todo eu medito e cismo...
Um vago e etéreo laço
Prende-me ao teu imenso
E livre coração,
Que abrange o mundo inteiro

E ocupa todo o espaço,
E que vai povoar
A minha solidão.
Por isso, eu vivo sempre,
Em doce companhia,
Com o pobre que pede
E a estrela que fulgura;
E assim, a minha alma,
Igual à luz do dia
Derrama-se no céu,
Em ondas de ternura.
Sou como a chuva e o vento
E a sombra duma cruz!
Lira, que a mais suave
Aragem faz vibrar...
Água que, ao luar brando,

Em nuvens se traduz;
Fruto que amadurece,
À luz dum claro olhar...
Pedra que um beijo funde
E místico vapor,
Que um hálito condensa
Em pura gota de agua...
Sou aroma que um ai.
em triste flor;
Riso que muda em choro
A mais pequena magoa.
Vivo a vida infinita,
Eterna, esplendorosa.
Sou neblina, sou ave,
Estrela, Azul sem fim,
Só porque, um dia, tu,

Mulher misteriosa,
Por acaso, talvez,
Olhaste para mim.


Vultos da Cultura Portuguesa

Jaime Cortesão | José Régio | Amália Rodrigues | Teixeira de Pascoaes | Aquilino Ribeiro|