Insólita Viagem
José Manuel Simões
Baixada Fluminense, alucinado surf train, Morro de Canta Galo, maconha e polícia
- Partilhar 20/06/2023
Curioso, DuArte foi conhecer a zona
Norte do Rio de Janeiro, bandas de Nova
Iguaçu, para conhecer a Escola de Samba
Beija-Flor. Ficou literalmente de boca
aberta quando entrou no comboio. Por cima,
um grupo de garotos arriscava a vida num
alucinado surf train.
O
comboio ia apinhado de gentes e odores. A
cada balanço da carruagem, a mulata à sua
frente iniciava um propositado rebolado de
bumbum. Antes da segunda paragem já tinha
entrado num alvoraçado rodopio; a
tentação a aumentar e ele que não
conseguia, ou não a queria, conter.
Ao cair da noite na Baixada Fluminense,
ainda se ouviam os miúdos a surfar em cima
do comboio – os saltos pareciam granadas a
bater no teto. Lá dentro o ambiente
serenava. A moça afastou-se ligeiramente e
meteu conversa. Duas paragens depois saíram
juntos, ele a sentir que tinha chegado até
bem perto do fim do mundo. Ali mesmo, na
rua, enrolaram as línguas em ritmo
frenético, mãos percorrendo os corpos em
lânguida cadência, os trauseuntes
indiferentes.
Voltou à estação,
apanhou outro comboio e chegou a Nova
Iguaçu. Os figurantes da Escola de Samba
Beija-Flor revelavam orgulho no traje, um
certo ultraje, a cor azul e branca, pobre
ostentando os corpos exibidos quase como
vieram ao mundo. Havia peitos pintados e
peitos ao léu, bundas, bundões e penugens
como asas de femininos aviões terrestres.
Cruzou-se com um metaleiro, vestido todo de
preto, cabelo comprido atado, que conhecia
de vista da Globo, que perto do ouvido lhe
disse que o ambiente, com aquela batida
característica, era em tudo semelhante ao
som que “sai da bunda”. Repita aí baixinho,
disse andando: “samba, aliás como pagode e
axé, é som que sai da bunda!...”
Estava numa das zonas mais violentas do
mundo quando se encontrou com Toni Garrido,
do Cidade Negra, um dos grupos mais
representativos do reggae brasileiro, rindo
quando lhe falou da peripécia do train
com a mulata: “até que a sua história
é bem legal. Pior seria se tivesse chegado
ao som de tiroteios, visões de massacres,
cenas de violência que não são raras por
aqui. Deve ser por isso que esta região é
igualmente um dos polos musicais mais
inovadores de todo o Brasil, dando à luz
grupos que só não são descobertos por
causa da relutância das editoras em abrir um
canal a artistas considerados “non gratos”.
Sim, porque embora não pareça, e sendo
cerca de 75% da população brasileira de
origem negra, o Brasil é um país racista.
A grande tragédia, onde os negros e os seus
descendentes são os protagonistas,
encontra-se de mãos dadas com a beleza e a
criação, no sentimento ilimitado de
liberdade e numa irresponsabilidade total”.
Enquanto fazia a apologia do seu “reggae
antenado” passaram três polícias militares
com pinta de bandidos. No seu jeito
travesso, começou a cantarolar,
acompanhando o ritmo com uma caixa de
fósforos: “nos barracos da cidade/ ninguém
mais tem ilusão/ no poder da autoridade/ de
tomar a decisão. O ô ô, ô ô / Gente
estúpida/ O ô”.
No regresso ao Rio,
entrou numa carruagem onde no meio da
multidão anónima se encontrava uma
adolescente de rosto deslumbrante. Marcaram
encontro para o dia seguinte, encontraram-se
no Shopping da Barra, foram ao show da Tina
Turner, deram-lhes um chapéu de papel
branco à entrada com que acenaram no final
das duas primeiras canções e saíram em
direção ao motel mais próximo.
Entretanto conheceu um alemão com os dedos
cheios de anéis que comprava t-shirts em
Bali na Indonésia para vender no Rio e que
andava sempre “cheiradão”, a namorada a
quem passou a dar aulas de francês pois
tinha outro amante suíço, muito champanhe
e caviar, e na discoteca Help, a dois passos
do palácio casarão, entrou num processo de
ver quantas meninas beijava, foram vinte e
duas, tantas quantos os anos que tinha.
Antes de beijar cada uma delas representava
um papel com convicção e um encarnar de
gringo americano, italiano ou francês,
espanhol, português ou até belga.
Chegou a casa com uma mulata que nunca soube
o nome. Quando acordou ela já tinha ido
embora. Saiu para almoçar, pressentindo os
deuses pairando em cada esquina, uma
estranha energia a brotar um enigmático
ponto de luz até então desconhecido.
No dia seguinte foi ao Morro do Canta
Galo. Subia a escadaria quando se deparou
com uma arma a sair do buraco de tijolo da
guarita do bandido. Um degrau acima e mais
cinco centímetros da pistola para fora,
outro degrau e o cano cada vez mais
visível. “Amigão, vou pegar maconha”,
afirmou alto e resoluto como quem descobre a
pólvora, o consentimento dado com um gesto
– a arma erguida – só lhe viu o barrete e o
rosto barbudo lá no cume, antes de passar
por um barraco onde uma criança desnutrida
jazia solitária num pedaço de papelão sujo
pousado em cima do chão de terra batida.
“Quer o quê daqui, rapaz?”, ouviu uma voz
sinistra vinda das traseiras. “Maconha”,
respondeu.
Subiram juntos, acenderam
um baseado enorme em folha de caderno
escolar que o negão tinha no bolso
desbotado da bermuda, embrulhado em papel do
jogo do bicho.
Um menino
aproximou-se, cambaleante, na mão esquerda
um saco de plástico com cola – que cheirava
em movimentos deprimentemente lentos –
tronco nu e pés descalços. Pegou- lhe na
mão, apertou-a contra si e, sem a largar,
acariciou com ela a sua cabeça, tombada
lateralmente, em gesto de súplica, morrendo
com falta de amor mais do que de fome. Ao
lado, um outro pivete, igualmente com uns
nove anos de idade, arrastando uma perna,
pediu-lhe dinheiro.
Deu-lhe uma nota
de 10 e, cinco minutos depois, “dinheiro de
macumba, dinheiro de macumba, dinheiro de
macumba...”, zumbia um bando de pivetes,
repetindo, insistentes, revoltados,
“dinheiro de macumba”.
Corajoso,
aproximou-se da nota que um deles exibia nas
mãos cerradas. O dinheiro tinha duas faces
semelhantes coladas uma à outra. “Estou
entendendo. Foi um troco que alguém me deu
e não vi que tinha duas partes iguais
coladas com fita adesiva. Dá essa aí que
eu te dou outra”. Afirmativo, estendeu-lhe
uma nota de 20, as crianças dando pulos de
alegria, o baseado chegando até si.
Ao descer, esperavam-no um grupo de
polícias que em segundos o revistaram quase
dos pés à cabeça. “O gringo fumou tudo
lá em cima”, exclamou um deles,
desalentado, o nome Pereira no canto
superior esquerdo da farda azul escura,
pedindo “ao menos uma graninha p’ra nós
tomar uma cervejinha no boteco”. Deu-lhe o
“dinheiro da macumba” enrolado e ainda teve
a ousadia de lhe apertar a mão.
Entrou em casa e passou-lhe pela mente um
poema de José Jorge Letria: “Não há
ruído maior que este silêncio Que se serve
com tâmaras e com chá Na mesa rasteira,
sobre a terra molhada. É no que não se
nomeia que está o infinito”.
Insólita Viagem por José Manuel Simões
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