José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

Baixada Fluminense, alucinado surf train, Morro de Canta Galo, maconha e polícia

Curioso, DuArte foi conhecer a zona Norte do Rio de Janeiro, bandas de Nova Iguaçu, para conhecer a Escola de Samba Beija-Flor. Ficou literalmente de boca aberta quando entrou no comboio. Por cima, um grupo de garotos arriscava a vida num alucinado surf train.

O comboio ia apinhado de gentes e odores. A cada balanço da carruagem, a mulata à sua frente iniciava um propositado rebolado de bumbum. Antes da segunda paragem já tinha entrado num alvoraçado rodopio; a tentação a aumentar e ele que não conseguia, ou não a queria, conter.

Ao cair da noite na Baixada Fluminense, ainda se ouviam os miúdos a surfar em cima do comboio – os saltos pareciam granadas a bater no teto. Lá dentro o ambiente serenava. A moça afastou-se ligeiramente e meteu conversa. Duas paragens depois saíram juntos, ele a sentir que tinha chegado até bem perto do fim do mundo. Ali mesmo, na rua, enrolaram as línguas em ritmo frenético, mãos percorrendo os corpos em lânguida cadência, os trauseuntes indiferentes.

Voltou à estação, apanhou outro comboio e chegou a Nova Iguaçu. Os figurantes da Escola de Samba Beija-Flor revelavam orgulho no traje, um certo ultraje, a cor azul e branca, pobre ostentando os corpos exibidos quase como vieram ao mundo. Havia peitos pintados e peitos ao léu, bundas, bundões e penugens como asas de femininos aviões terrestres. Cruzou-se com um metaleiro, vestido todo de preto, cabelo comprido atado, que conhecia de vista da Globo, que perto do ouvido lhe disse que o ambiente, com aquela batida característica, era em tudo semelhante ao som que “sai da bunda”. Repita aí baixinho, disse andando: “samba, aliás como pagode e axé, é som que sai da bunda!...”

Estava numa das zonas mais violentas do mundo quando se encontrou com Toni Garrido, do Cidade Negra, um dos grupos mais representativos do reggae brasileiro, rindo quando lhe falou da peripécia do train com a mulata: “até que a sua história é bem legal. Pior seria se tivesse chegado ao som de tiroteios, visões de massacres, cenas de violência que não são raras por aqui. Deve ser por isso que esta região é igualmente um dos polos musicais mais inovadores de todo o Brasil, dando à luz grupos que só não são descobertos por causa da relutância das editoras em abrir um canal a artistas considerados “non gratos”. Sim, porque embora não pareça, e sendo cerca de 75% da população brasileira de origem negra, o Brasil é um país racista. A grande tragédia, onde os negros e os seus descendentes são os protagonistas, encontra-se de mãos dadas com a beleza e a criação, no sentimento ilimitado de liberdade e numa irresponsabilidade total”. Enquanto fazia a apologia do seu “reggae antenado” passaram três polícias militares com pinta de bandidos. No seu jeito travesso, começou a cantarolar, acompanhando o ritmo com uma caixa de fósforos: “nos barracos da cidade/ ninguém mais tem ilusão/ no poder da autoridade/ de tomar a decisão. O ô ô, ô ô / Gente estúpida/ O ô”.

No regresso ao Rio, entrou numa carruagem onde no meio da multidão anónima se encontrava uma adolescente de rosto deslumbrante. Marcaram encontro para o dia seguinte, encontraram-se no Shopping da Barra, foram ao show da Tina Turner, deram-lhes um chapéu de papel branco à entrada com que acenaram no final das duas primeiras canções e saíram em direção ao motel mais próximo.

Entretanto conheceu um alemão com os dedos cheios de anéis que comprava t-shirts em Bali na Indonésia para vender no Rio e que andava sempre “cheiradão”, a namorada a quem passou a dar aulas de francês pois tinha outro amante suíço, muito champanhe e caviar, e na discoteca Help, a dois passos do palácio casarão, entrou num processo de ver quantas meninas beijava, foram vinte e duas, tantas quantos os anos que tinha. Antes de beijar cada uma delas representava um papel com convicção e um encarnar de gringo americano, italiano ou francês, espanhol, português ou até belga.

Chegou a casa com uma mulata que nunca soube o nome. Quando acordou ela já tinha ido embora. Saiu para almoçar, pressentindo os deuses pairando em cada esquina, uma estranha energia a brotar um enigmático ponto de luz até então desconhecido.

No dia seguinte foi ao Morro do Canta Galo. Subia a escadaria quando se deparou com uma arma a sair do buraco de tijolo da guarita do bandido. Um degrau acima e mais cinco centímetros da pistola para fora, outro degrau e o cano cada vez mais visível. “Amigão, vou pegar maconha”, afirmou alto e resoluto como quem descobre a pólvora, o consentimento dado com um gesto – a arma erguida – só lhe viu o barrete e o rosto barbudo lá no cume, antes de passar por um barraco onde uma criança desnutrida jazia solitária num pedaço de papelão sujo pousado em cima do chão de terra batida. “Quer o quê daqui, rapaz?”, ouviu uma voz sinistra vinda das traseiras. “Maconha”, respondeu.

Subiram juntos, acenderam um baseado enorme em folha de caderno escolar que o negão tinha no bolso desbotado da bermuda, embrulhado em papel do jogo do bicho.

Um menino aproximou-se, cambaleante, na mão esquerda um saco de plástico com cola – que cheirava em movimentos deprimentemente lentos – tronco nu e pés descalços. Pegou- lhe na mão, apertou-a contra si e, sem a largar, acariciou com ela a sua cabeça, tombada lateralmente, em gesto de súplica, morrendo com falta de amor mais do que de fome. Ao lado, um outro pivete, igualmente com uns nove anos de idade, arrastando uma perna, pediu-lhe dinheiro.

Deu-lhe uma nota de 10 e, cinco minutos depois, “dinheiro de macumba, dinheiro de macumba, dinheiro de macumba...”, zumbia um bando de pivetes, repetindo, insistentes, revoltados, “dinheiro de macumba”.

Corajoso, aproximou-se da nota que um deles exibia nas mãos cerradas. O dinheiro tinha duas faces semelhantes coladas uma à outra. “Estou entendendo. Foi um troco que alguém me deu e não vi que tinha duas partes iguais coladas com fita adesiva. Dá essa aí que eu te dou outra”. Afirmativo, estendeu-lhe uma nota de 20, as crianças dando pulos de alegria, o baseado chegando até si.

Ao descer, esperavam-no um grupo de polícias que em segundos o revistaram quase dos pés à cabeça. “O gringo fumou tudo lá em cima”, exclamou um deles, desalentado, o nome Pereira no canto superior esquerdo da farda azul escura, pedindo “ao menos uma graninha p’ra nós tomar uma cervejinha no boteco”. Deu-lhe o “dinheiro da macumba” enrolado e ainda teve a ousadia de lhe apertar a mão.

Entrou em casa e passou-lhe pela mente um poema de José Jorge Letria: “Não há ruído maior que este silêncio Que se serve com tâmaras e com chá Na mesa rasteira, sobre a terra molhada. É no que não se nomeia que está o infinito”.


Insólita Viagem por José Manuel Simões

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