José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

No reino dos sentidos

Em Marraquexe, a cidade imperial que na antiguidade deu nome a Marrocos, convergem nómadas e montanheses, mulheres vindas do Anti-Atlas, vendedores de porções mais ou menos mágicas, domadores de serpentes, domesticadores de macacos, arrancadores de dentes. Um verdadeiro espectáculo de cor e exotismo.

José Manuel Simões

“Comei e bebei; que vos faça bom proveito. Sentai-vos em fila sobre os almofadões”, recebe-nos Hayat, tímida, olhos pretos como carvão, mãos decoradas com hena em motivos que começam com uma simples figura geométrica, em círculo, bordada de flores que formam um colorido padrão “para dar sorte”. Aponta delicadamente um canto do restaurante e afirma convicta: “É assim que nos ensina o corão. A arte de bem receber é um dever sagrado e um código de honra para os marroquinos.”

Hayat parece ser, como o seu povo, determinada e crente. Inchalah - oxalá, se Deus quiser - é a palavra que invariavelmente usa para concluir as frases que expressa em francês simplificado. Inchalah, a palavra mais ouvida neste país profundamente ligado aos valores sagrados da monarquia e da integridade territorial.

Marrocos é um país em mudança gradual. Um país de jovens virado para o futuro. Dotado de uma invulgar abertura geográfica que favorece a unidade nacional e o reforço das suas especificidades, é um privilegiado testemunho da história da humanidade. Um marco menos simbólico, porém, que o islamismo, religião que é um dos pilares do sistema sócio-político local.

Convivem as raças berbere, tuareg e negróide. O traje tradicional, djellaba e kaftan, mistura-se com as vestes regionais que variam consoante as tribos. A cultura árabe, islâmica na sua variante malgrebe, a arquitectura de adobe, o Mediterrâneo ocidental e o Atlântico, os três mil quilómetros de costa, definem um país heterogéneo e exótico.

O interior, com os seus maciços montanhosos, filadeiros estreitos e vales profundos, comanda a vida da maior parte da população que, sobretudo a mais idosa, é regida pelas normas do corão. Mantêm-se as tradições seculares, reflectidas nas medinas onde se testemunha o antigo modo de vida magrebe. Costumes enraizados coexistem, todavia, com a herança ocidental: calor e frio, secas e inundações, planícies e cordilheiras, penhascos e bosques, tempestades de areia e de neve.

Desde o Estreito de Gibraltar até à Mauritânia, Marrocos é um país surpreendente que toca o reino dos sentidos, com quatro cadeias montanhosas e rios bordados por franjas verdejantes até às portas do deserto cruzando gargantas.

Na cidade imperial

Vindo da costa, para chegar a Marraquexe, passa-se por uma zona desértica onde se encontram cabras a pastar em cima de argânias – árvores que só existem em Marrocos e que dão uma noz da qual se extrai um óleo alimentar –, algumas com mais de mil anos. As cabras são às dezenas, pretas, brancas, amarelas, cada uma no seu ramo. “Elas adoram estas folhas e não hesitam em trepar-lhes até ao cimo para saboreá-las”, conta um jovem que procura vender o óleo e que tenta a todo o custo beijar uma turista ocidental.

Na cidade imperial que na antiguidade deu nome a Marrocos, berberes misturam-se com árabes, convergem nómadas e montanheses, mulheres vindas do Anti-Atlas vendem cestos, narradores de histórias, músicos, bailarinos, escritores públicos, vendedores de porções mais ou menos mágicas, curandeiros, domadores de serpentes, aguadeiros, acrobatas, domesticadores de macacos, comedores de fogo, arrancadores de dentes, misturam-se num espectáculo de cor e exotismo. Estamos na praça Jamaa Al Fna, a maior curiosidade turística local, centro de vida urbana nas suas múltiplas manifestações de gente entusiasmada e participante. Cenário de conto de fadas desperto todas as manhãs pela chamada do altifalante instalada no alto dos 70 metros da koutoubia, farol espiritual da cidade. Nas sinuosas ruas da medina, homens de passo apressado dirigem-se à mesquita de Ben Youssef, erguida junto à Medersa, a gigantesca Escola Coránica fundada pelo sultão Abou-el-Hassan, 1331-1349, e um dos mais importantes monumentos locais.

Surpreendem as parelhas de cavalos puxando charretes com turistas de todo o Mundo. Um dos cavalos que puxa a nossa carroça é um puro sangue árabe, pleno de elegância e um passado rico em nobres conquistas. Em direcção à Avenida Mohamed V, uma das maiores da cidade, passa-se pela koutovia, construção do século XII, e chega-se às portas da cidade, castanha, movimentada, viva, onde o antigo e o moderno se cruzam em harmonia.

Prazeres dos olhos

Caminhar nas medinas é uma curiosa experiência para os sentidos. Sons, cores, mulheres berberes vestidas com takcheta, cobertas com djellaba e foulard da mesma cor, de cócoras vendendo pão árabe, gente apelando para que se visitem as suas lojas: “Entrem só pelo prazer dos olhos”, dizem com veemência. No interior, roupas e artesanato árabe-muçulmano ou mourisco, podendo observar-se o cuidadoso trabalho dos artesãos de couro cosendo segundo métodos ancestrais.

A principal atracção turística da cidade fica no souk Elbahja, situado no coração da medina, sendo o mais extenso do Magrebe, com 600 hectares. Neste espaço, classificado como património da humanidade, misturam-se ruas labirínticas, odores a açafrão, cominho, pimenta negra, gengibre, cravo e flores de laranjeira com tapetes berberes e trabalhos em couro, barro, latoaria, cestos, jóias, bordados, objectos de quinquilharia, babuchas, balghas - sapatos típicos marroquinos -, meias de lã, malas coloridas dos tuaregues, música constante de tambores e flautas.

Antes de utilizar os dirhams, moeda marroquina equivalente a cerca de 10 cêntimos, é indispensável que se regateiem os preços. O guia, invariavelmente chamado Mustafá e invariavelmente vestido com um tarbouch na cabeça e um djellaba de linho, algodão ou cetim, ajuda na orientação por entre o labiríntico souk. Depois de entrar numa loja é difícil sair sem comprar nada. Servem-nos um chá de hortelã e menta, mostram-nos os tapetes um a um, insistem na venda. Ao voltar para as ruas do souk, se se sentir perdido, o melhor é perguntar por uma das inúmeras saídas que vão dar a Jemmaa el Fna, a já mencionada mítica praça da capital berbere e principal ponto de encontro da cidade. No meio da medina passa-se por esplanadas de cafés míticos, como o France e o Argana, ou pátios de restaurantes célebres como o Yocout e o Ryad Tamsna, locais de eleição e monumentos que testemunham a história de um povo.

No centro da medina o primeiro monumento que se vislumbra é a koutoubia, ex-libris local que, graças aos seus 77 metros de altura, serve como ponto de referência. Perto, o palácio da Bahia, construído no fim do século XIX - protótipo do palácio árabe - e o El Badi, provavelmente o mais belo palácio do mundo muçulmano, edificado entre 1577 e 1593 a mando de Ahmed el Mansour após a vitória sobre os portugueses em 1577; hoje em ruínas que servem de enquadramento ao festival folclórico realizado anualmente em Maio e Junho.

Paraísos botânicos

Os jardins de Menara, com um monumento com tecto piramidal reflectido nas águas paradas de um tanque com 200 por 150 metros, e os jardins de Majorelle, onde abundam bambus gigantes e papiros, são dois locais a visitar. Este último, criado em 1924 pelo pintor francês Jacques Majorelle, é um paraíso botânico às portas do deserto, sendo o seu actual proprietário o costureiro Yves Saint Laurent.

Conheça ainda a palmerie de Marraquexe, a cerca de 10 quilómetros da medina, imenso oásis tropical com cerca de 13 mil hectares de palmeiras irrigadas pelos khettara, engenhoso sistema de captação de água de poços e cisternas, alimentadas por um outro igualmente engenhoso sistema de galerias subterrâneas.

As avenidas são bordadas por flores, os espaços verdes bem cuidados, as ruas limpas como em nenhuma outra cidade do país, a muralha cinturada de rosas, a luminosidade invulgarmente bela.

Com estilo, elegância e personalidade, o hotel Mamounia merece, no mínimo, que se respire a sua arte, o conforto e o luxo circundante. À entrada, um porteiro fardado a rigor, vitrais, fontes, pedra talhada. Ao lado, um esplendoroso casino.

Pudicos e conservadores

Apesar de apenas 1,6% da população total aceder à Internet - nos Estados Unidos a percentagem é de 59% - proliferam os cyber cafés, dirigidos essencialmente aos turistas. No recomendado Albergue Ali - onde encontrei, deitado no terraço por debaixo das estrelas, um australiano recém viajado por Portugal - conheci Hadji que, aparentemente sem motivo, exclamou: “vocês, estrangeiros, não nos compreendem. Não compreendem que nós somos pudicos e conservadores”. E porque é que me dizes isso?, indaguei. “Porque está lá fora uma turista sentada numa cadeira a apanhar sol com uma mini-saia e isso, aos nossos olhos, não é correcto”. Perante a minha curiosidade, prossegue: “Há muitos estrangeiros ricos que chegam aqui e se instalam. Compram as nossas casas tradicionais e nem sequer se dão ao trabalho de compreender a nossa cultura e a nossa maneira de ser. Para além disso têm um nível de vida que corresponde a um verdadeiro insulto à miséria das gentes pequenas que habitam na medina. O fenómeno está a chegar aos limites e a prová-lo estão os cada vez maiores incidentes entre os residentes locais e esses novos emigrantes”. Das 40 mil casas tradicionais situadas no centro da cidade, classificada de património da humanidade pela Unesco, 406, ou seja 1%, são propriedade de não marroquinos.

O comércio, o turismo e a cultura, prosperam na cidade, graças à sua privilegiada situação geográfica, ponto de chegada e partida de estradas, confluência de norte e sul, deserto e oceano, riqueza histórica.

De madrugada ouve-se, cinco vezes quase seguidas, a chamada para a reza sagrada em nome de Allah. Infelizmente, o acesso às mesquitas - com excepção para o Mausoléu de Mohammed V, em Rabbat, o Mausoléu de Moulay Ismail, em Meknès, o Mausoléu de Moulay Ali Chérif, em Rissani e a Mesquita de Hassan II, em Casablanca - é proibido aos não muçulmanos. No entanto, e apesar de o islamismo ser a religião oficial, coexiste com outras confissões e credos, até porque isso está garantido na constituição. A vida religiosa segue, todavia, o calendário muçulmano.

De alguns pontos da cidade vêem-se as montanhas do Alto Atlas com as suas altivas silhuetas onde se pratica esqui, de Novembro a Maio. O ponto culminante deste maciço, o Toubkal, tem 4.176 metros de altitude.

Partimos em direcção a Sidi-Mokhtar, região desértica, onde se encontra um oásis junto a um rio completamente seco. Até Âit-Ourier, rumo a Taddert, já no deserto, percorrem-se montanhas cobertas de pedras com coloridos cristais, aldeias minúsculas com casas feitas da mesma pedra amarela, enormes maciços, íngremes, e o Atlas, imponente e dócil, lembrando praças enfeitiçadas com as suas torres hirtas afagadas pelo céu.