Insólita Viagem
José Manuel Simões
Sintonize a realidade que deseja e essa é a realidade que terá
- Partilhar 28/04/2023
Ouviu o burburinho da cidade, a roda
de samba em frente ao botequim, o entusiasmo
latente dos cariocas pela proximidade do
final da semana. No cimo do morro, o Cristo
do Corcovado. Desde a chegada ao Brasil,
fazia oito dias – Bíblia na mão aberta ao
acaso na varanda ensolarada da Casa do
Estudante do Rio de Janeiro – pedia que Ele
lhe encontrasse um espaço para morar. Entre
orações, fascínios e literatura, sentiu
saudades da mãe e ficou como que temeroso
do futuro ao ler Francisco Valverde
Arsénio, a alma... A noite ... A alma e a
noite: “pode a minha alma residir de forma
axonométrica na minha cabeça, pode viver
no meu caderno ou fora de mim, pode habitar
na minha caneta e nas metáforas em tons de
azul, que não sei se as anáforas
impregnadas de palavras têm espaço entre
as paredes para a guardar...”. Pousou o
poema antes de o terminar e ficou ali, na
parte de baixo do beliche, entregue ao
destino, cogitando sobre o que o Brasil lhe
reservava, o odor quente e seco da alma que
não envelhece nem morre.
A manhã
despertou e, qual obra divina, o diretor do
albergue perguntou-lhe se queria tomar conta
de uma casa em Copacabana. Ficou
impressionado com a resposta ao que
acreditou ser o poder da sua fé a mover o
destino e lembrou-se de uma frase que nesse
dia à tarde tinha ouvido proferir a um
rapaz com trejeitos de arrogância e
academismo, barba, óculos redondos, a mão
agarrando com demasiado aperto a da
namorada, uma menina de aspeto frágil, no
Amarelinho da Glória: “tudo é energia e
isso é tudo o que há. Sintonize a
realidade que você deseja e inevitavelmente
essa é a realidade que você terá. Não
tem como ser diferente. Isso não é
filosofia. É física”.
No carro do
ano do diretor, foi conhecer o casarão ao
lado do Clube Olímpico, Rua Pompeu
Loureiro, a seguir a um dos túneis que
rasga a floresta carioca, a Toneleiros, um
edifício antigo, três andares ocupados por
teias de aranha, um salão à entrada e duas
portas imensas bordadas a flores de metal
ocre, uma escadaria para o sótão onde a
penumbra tornava o ar ainda mais
fantasmagórico.
O doutor explicou
que tinha sido doado por um ator e que só
poderia ser usado para fins de arte
dramática. Não tremeu com o desconforto
mas quase se assustou ao pensar vislumbrar
um vulto por entre a penumbra. O astral era
tenso e o cair da noite não ajudava. Mas
como recusar?
Chegou antes do repor
da energia elétrica e da água potável e,
depois de ter percorrido a pé o calçadão
do Morro da Urca até ao fim da Avenida
Atlântico, subiu ao bar do 30.º andar do
Rio Othon, a vista sobre a cidade ainda viva
na madrugada.
Duas cervejas, e a
coroa ao lado, com o assumir da demente
melancolia, levou-o para o motel mais
próximo logo após cinco frases e poucos
minutos. Sussurrou-lhe que o fedor suarento
do sovaco a excitava e gemeu
desmesuradamente. Já tinha percebido a
libertinagem carioca; sexo, drogas e rock
n’roll rimando com pós-adolescência, sede
de soltar as amarras da que definia como
sendo “a caretice portuguesa”, dos tabus e
preconceitos que até então lhe tolhiam a
sede de liberdade.
Ligou para os
pais e avisou com uma convicção que o
surpreendeu: “Desculpem mas não vou voltar
para Coimbra. Vou ficar no Brasil. Adorei
este país; o Rio, cidade maravilhosa,
fervilha de vida; gosto deste dinamismo e
alegria; vou ficar”. Telefonava de um
orelhão, entusiasmado consigo mesmo e com a
firmeza evidenciada na agilidade das
palavras, como quase sempre que falava.
“Não se preocupem comigo que tudo vai dar
certo”. Do outro lado, a mãe chorava a sua
ausência, amor supremo e incondicional, e
ele, tentando consolá-la...: “sei que a
mãe reza por mim e que tudo vai dar certo.
Estou a trabalhar como ator na televisão.
Em breve irão ver-me numa telenovela.”
Ficou com o pi pi pi do telefone
desligado por mais alguns segundos encostado
ao ouvido e perspetivou que essa ideia da
televisão até que poderia ser uma boa.
Perguntou a um transeunte onde ficava a TV
Globo e apanhou o autocarro 732 seguinte. “O
jovem não é daqui não!”, reparou a
companheira de assento porque “a forma como
se agarra aí no varão como se tivesse medo
que o ônibus fosse virar é por não estar
habituado”.
No Jardim Botânico
cruzou-se com uma criança sozinha que lhe
pareceu ter Trissomia 21. Parou, olhou-a nos
olhos e pressentiu-a sem rumo. Aproximou-se,
tocou-lhe os braços de mansinho,
perguntou-lhe se a podia ajudar. Uma
lágrima escorreu-lhe pelo rosto delicado.
Confortou-a. Entre leves soluços, a
criança balbuciou que se tinha perdido do
pai. Uns parcos minutos e aproximou-se um
conhecido ator que o cumprimentou com um
gesto de gratidão. Reparando no seu “jeito
estranho de falar”, questionou-o sobre as
suas origens. “Hoje liguei para os meus pais
em Portugal e disse-lhes que, quando as
férias acabassem, ia ficar no Rio pois
quero ser ator de telenovela”, aproveitou. O
elegante senhor, aprumado no seu terno de
linho, pegou o menino pela mão, “por favor
acompanhe-nos que vou levá-lo ao gabinete
de dona Guta de Matos”. Apresentou-o,
“desculpe, qual é mesmo o seu nome?”, e
saiu, que tinha que ir.
As paredes
brancas decoradas com quadros retangulares
com fotos de estrelas familiares, reconheceu
o Dr. Mundinho Falcão – José Wilker – ao
lado da Gabriela – Sónia Braga –, Tonico
Bastos, Coronel Ramiro – o imenso Paulo
Gracindo, dona Guta por baixo, cabelos
brancos, corcunda, inteligentíssima.
Promovendo-se de forma espontânea e
exagerada – características da sua emotiva
personalidade –, mentiu-lhe que tinha
participado em peças do Teatro Académico
de Gil Vicente, que era aluno da
Universidade de Coimbra, que amava a arte
dramática; e mais umas tantas simulações
em falsificada representação. “Sabe, você
é jovem, bonito, elegante, mas tem esse
sotaque carregado e não é sindicalizado.
Vá no Teatro do Tabuado fazer curso
profissional e entretanto fale com o Roberto
Doverbal que ele lhe vai arrumar umas pontas
e figurações”. Despediu-se com uma vénia
e um beijo na mão que lhe entregara um
papelinho azul com dois números de
telefone. Na rua, extasiado e quase
perplexo, indagou-se a si mesmo: “o que
serão pontas e figurações?”
Roberto mandou-o estar às 11 horas na
Globo, deu-lhe uma saia de veludo e uma seta
de ferro bastante comprida. Ia fazer de
egípcio no programa do Chico Anysio, ele e
outro, um de cada lado da talentosa estrela
que mudava de personagem “enquanto o diabo
esfregava um olho” e fungava copiosamente,
diziam nos bastidores que por causa do pó.
No dia seguinte passou a saber, à
custa de tantas repetições, o que era
ser figurante, dessa vez de cinema, no filme
“Um trem para as estrelas”, do realizador
Cacá Diegues, com música do eterno Cazuza.
No seu jeito apressado, rapidamente percebeu
que o cinema não se compadecia com a sua
vontade de fazer rápido e bem.
Representou várias cenas por ali, no
comboio, na discoteca, a ler um livro –
“Atos de amor” – a Betty Faria com os seios
nus na discoteca do degredo sexual, ele que
no filme só apareceria ao minuto 1:00:48
durante 3 segundos. Entrou na telenovela
“Roda de Fogo” e o prenúncio concretizou-se. Fazia de fotógrafo das modelos, a
Bruna Lombardi a tentar interagir, e ele,
inicialmente tão convincente, a retrair- se
perante a eminência da paixão à
primeiríssima vista de carne e osso. Meu
Deus, a Bruna Lombardi com aqueles olhos a
brilhar como azuis águas-marinhas
perguntando-lhe de onde é que ele era, se
de Itália, que “niente”, França, “mais
non”, e a vergonha de ser confundido com um
portuga Manoel ou Juaquim a deixá-lo sem
jeito.
Rapidamente perdeu a timidez e
quando certa noite conheceu Gabriel O
Pensador ficou claro o quanto, sobretudo no
Rio de Janeiro, era importante estar atento,
esperto, aprender a derrubar barreiras e a
superar preconceitos. Gabriel tinha a perna
quebrada por causa de uma “peladinha”,
estava pálido; DuArte vislumbrou toques de
São Conrado onde o rapaz versado na rima e
som cedo aprendeu a transpor o gradeamento
do luxuoso condomínio fechado onde cresceu
para ir curtir com os amigos da favela da
Rocinha, uma das maiores e mais pobres do
Mundo, do outro lado da avenida, depois do
ponto de ônibus onde se topam bandidos de
arma de fogo em punho à espera de decidir o
assalto.
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- n.48 • maio 2023