José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

Sintonize a realidade que deseja e essa é a realidade que terá

Ouviu o burburinho da cidade, a roda de samba em frente ao botequim, o entusiasmo latente dos cariocas pela proximidade do final da semana. No cimo do morro, o Cristo do Corcovado. Desde a chegada ao Brasil, fazia oito dias – Bíblia na mão aberta ao acaso na varanda ensolarada da Casa do Estudante do Rio de Janeiro – pedia que Ele lhe encontrasse um espaço para morar. Entre orações, fascínios e literatura, sentiu saudades da mãe e ficou como que temeroso do futuro ao ler Francisco Valverde Arsénio, a alma... A noite ... A alma e a noite: “pode a minha alma residir de forma axonométrica na minha cabeça, pode viver no meu caderno ou fora de mim, pode habitar na minha caneta e nas metáforas em tons de azul, que não sei se as anáforas impregnadas de palavras têm espaço entre as paredes para a guardar...”. Pousou o poema antes de o terminar e ficou ali, na parte de baixo do beliche, entregue ao destino, cogitando sobre o que o Brasil lhe reservava, o odor quente e seco da alma que não envelhece nem morre.

A manhã despertou e, qual obra divina, o diretor do albergue perguntou-lhe se queria tomar conta de uma casa em Copacabana. Ficou impressionado com a resposta ao que acreditou ser o poder da sua fé a mover o destino e lembrou-se de uma frase que nesse dia à tarde tinha ouvido proferir a um rapaz com trejeitos de arrogância e academismo, barba, óculos redondos, a mão agarrando com demasiado aperto a da namorada, uma menina de aspeto frágil, no Amarelinho da Glória: “tudo é energia e isso é tudo o que há. Sintonize a realidade que você deseja e inevitavelmente essa é a realidade que você terá. Não tem como ser diferente. Isso não é filosofia. É física”.

No carro do ano do diretor, foi conhecer o casarão ao lado do Clube Olímpico, Rua Pompeu Loureiro, a seguir a um dos túneis que rasga a floresta carioca, a Toneleiros, um edifício antigo, três andares ocupados por teias de aranha, um salão à entrada e duas portas imensas bordadas a flores de metal ocre, uma escadaria para o sótão onde a penumbra tornava o ar ainda mais fantasmagórico.

O doutor explicou que tinha sido doado por um ator e que só poderia ser usado para fins de arte dramática. Não tremeu com o desconforto mas quase se assustou ao pensar vislumbrar um vulto por entre a penumbra. O astral era tenso e o cair da noite não ajudava. Mas como recusar?

Chegou antes do repor da energia elétrica e da água potável e, depois de ter percorrido a pé o calçadão do Morro da Urca até ao fim da Avenida Atlântico, subiu ao bar do 30.º andar do Rio Othon, a vista sobre a cidade ainda viva na madrugada.

Duas cervejas, e a coroa ao lado, com o assumir da demente melancolia, levou-o para o motel mais próximo logo após cinco frases e poucos minutos. Sussurrou-lhe que o fedor suarento do sovaco a excitava e gemeu desmesuradamente. Já tinha percebido a libertinagem carioca; sexo, drogas e rock n’roll rimando com pós-adolescência, sede de soltar as amarras da que definia como sendo “a caretice portuguesa”, dos tabus e preconceitos que até então lhe tolhiam a sede de liberdade.

Ligou para os pais e avisou com uma convicção que o surpreendeu: “Desculpem mas não vou voltar para Coimbra. Vou ficar no Brasil. Adorei este país; o Rio, cidade maravilhosa, fervilha de vida; gosto deste dinamismo e alegria; vou ficar”. Telefonava de um orelhão, entusiasmado consigo mesmo e com a firmeza evidenciada na agilidade das palavras, como quase sempre que falava. “Não se preocupem comigo que tudo vai dar certo”. Do outro lado, a mãe chorava a sua ausência, amor supremo e incondicional, e ele, tentando consolá-la...: “sei que a mãe reza por mim e que tudo vai dar certo. Estou a trabalhar como ator na televisão. Em breve irão ver-me numa telenovela.”

Ficou com o pi pi pi do telefone desligado por mais alguns segundos encostado ao ouvido e perspetivou que essa ideia da televisão até que poderia ser uma boa. Perguntou a um transeunte onde ficava a TV Globo e apanhou o autocarro 732 seguinte. “O jovem não é daqui não!”, reparou a companheira de assento porque “a forma como se agarra aí no varão como se tivesse medo que o ônibus fosse virar é por não estar habituado”.

No Jardim Botânico cruzou-se com uma criança sozinha que lhe pareceu ter Trissomia 21. Parou, olhou-a nos olhos e pressentiu-a sem rumo. Aproximou-se, tocou-lhe os braços de mansinho, perguntou-lhe se a podia ajudar. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto delicado. Confortou-a. Entre leves soluços, a criança balbuciou que se tinha perdido do pai. Uns parcos minutos e aproximou-se um conhecido ator que o cumprimentou com um gesto de gratidão. Reparando no seu “jeito estranho de falar”, questionou-o sobre as suas origens. “Hoje liguei para os meus pais em Portugal e disse-lhes que, quando as férias acabassem, ia ficar no Rio pois quero ser ator de telenovela”, aproveitou. O elegante senhor, aprumado no seu terno de linho, pegou o menino pela mão, “por favor acompanhe-nos que vou levá-lo ao gabinete de dona Guta de Matos”. Apresentou-o, “desculpe, qual é mesmo o seu nome?”, e saiu, que tinha que ir.

As paredes brancas decoradas com quadros retangulares com fotos de estrelas familiares, reconheceu o Dr. Mundinho Falcão – José Wilker – ao lado da Gabriela – Sónia Braga –, Tonico Bastos, Coronel Ramiro – o imenso Paulo Gracindo, dona Guta por baixo, cabelos brancos, corcunda, inteligentíssima.

Promovendo-se de forma espontânea e exagerada – características da sua emotiva personalidade –, mentiu-lhe que tinha participado em peças do Teatro Académico de Gil Vicente, que era aluno da Universidade de Coimbra, que amava a arte dramática; e mais umas tantas simulações em falsificada representação. “Sabe, você é jovem, bonito, elegante, mas tem esse sotaque carregado e não é sindicalizado. Vá no Teatro do Tabuado fazer curso profissional e entretanto fale com o Roberto Doverbal que ele lhe vai arrumar umas pontas e figurações”. Despediu-se com uma vénia e um beijo na mão que lhe entregara um papelinho azul com dois números de telefone. Na rua, extasiado e quase perplexo, indagou-se a si mesmo: “o que serão pontas e figurações?”

Roberto mandou-o estar às 11 horas na Globo, deu-lhe uma saia de veludo e uma seta de ferro bastante comprida. Ia fazer de egípcio no programa do Chico Anysio, ele e outro, um de cada lado da talentosa estrela que mudava de personagem “enquanto o diabo esfregava um olho” e fungava copiosamente, diziam nos bastidores que por causa do pó.

No dia seguinte passou a saber, à custa de tantas repetições, o que era ser figurante, dessa vez de cinema, no filme “Um trem para as estrelas”, do realizador Cacá Diegues, com música do eterno Cazuza. No seu jeito apressado, rapidamente percebeu que o cinema não se compadecia com a sua vontade de fazer rápido e bem.

Representou várias cenas por ali, no comboio, na discoteca, a ler um livro – “Atos de amor” – a Betty Faria com os seios nus na discoteca do degredo sexual, ele que no filme só apareceria ao minuto 1:00:48 durante 3 segundos. Entrou na telenovela “Roda de Fogo” e o prenúncio concretizou-se. Fazia de fotógrafo das modelos, a Bruna Lombardi a tentar interagir, e ele, inicialmente tão convincente, a retrair- se perante a eminência da paixão à primeiríssima vista de carne e osso. Meu Deus, a Bruna Lombardi com aqueles olhos a brilhar como azuis águas-marinhas perguntando-lhe de onde é que ele era, se de Itália, que “niente”, França, “mais non”, e a vergonha de ser confundido com um portuga Manoel ou Juaquim a deixá-lo sem jeito.

Rapidamente perdeu a timidez e quando certa noite conheceu Gabriel O Pensador ficou claro o quanto, sobretudo no Rio de Janeiro, era importante estar atento, esperto, aprender a derrubar barreiras e a superar preconceitos. Gabriel tinha a perna quebrada por causa de uma “peladinha”, estava pálido; DuArte vislumbrou toques de São Conrado onde o rapaz versado na rima e som cedo aprendeu a transpor o gradeamento do luxuoso condomínio fechado onde cresceu para ir curtir com os amigos da favela da Rocinha, uma das maiores e mais pobres do Mundo, do outro lado da avenida, depois do ponto de ônibus onde se topam bandidos de arma de fogo em punho à espera de decidir o assalto.

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