Insólita Viagem
José Manuel Simões
Mentes abertas, artenativa e um novo Camões
- Partilhar 02/08/2022
Horas depois de ter chegado a Macaé,
ao percorrer sem direção a rua principal,
a Rui Barbosa – que escreveu “De tanto ver
triunfar as nulidades, De tanto ver
prosperar a desonra, De tanto ver crescer a
injustiça, De tanto ver agigantarem-se os
poderes nas mãos dos maus, O homem chega a
desanimar-se da virtude, a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto” - ouviu
alguém a declamar poesia. Parou;
identificou o lugar concreto de onde vinham
as vozes, abriu uma porta, subiu uns
degraus, abriu uma outra porta, entrou e
surpreendeu-se com tanta gente bonita. Findo
aquele poema, dito por uma voz musculada,
passaram-lhe o microfone para a mão. Com o
ritmo cardíaco em aceleração súbita, fez
uma emocionada colagem de palavras suas e de
outros poetas portugueses: “Bate levemente,
Como quem chama por mim, Será chuva ou
será gente, Gente não é certamente e a
chuva não bate assim”. Olhando na direção
de uma menina, aos seus olhos a mais
formosa, prosseguiu, agora mais excitado que
nervoso: “É fogo, Fogo que arde sem se ver,
Uma luz, Um brilho, Olhos raiando por te
ter, E um coração, Um coração a bater”.
Entre aplausos alguém pegou o microfone de
volta: “diretamente de
Portugal...Camões!!”. E assim ficaria
conhecido em Macaé e no Brasil: Camões, o
poeta.
A qualquer bar que fosse
pediam-lhe para recitar um poema. Cada vez
mais ousado, convicto, subia a uma cadeira e
recitava, de improviso, deixando jorrar as
palavras, soltas e com sentido, sempre
emotivo, laivos de performer e alguma arte,
quase sempre dramática, a voz grave,
metálica, conectado com a terra e o espaço
celeste.
Um argentino que estava
hospedado no 3 estrelas onde Camões já
dava cartas ao balcão, sobretudo pela
simpatia e fluência de línguas, convidou-o
para uma festa na Praia dos Cavaleiros. Para
sua surpresa era o mesmo grupo, o da poesia,
que fazia uma festa transmitida ao vivo pela
Rádio Macaé e onde a elite cultural local
revelava palavra lavrada em mel. A dois
passos do mar e do vento que soprava solene,
a carne vazia abandonada.
A casa,
que viria a ser o Tóquio Bar, tinha jardim,
um telhado de pagode chinês, vidro e
madeira. O ambiente estava esplendoroso, com
gente ilustre e muito charme. Um rapaz que
mais parecia uma boneca de porcelana falava
que “com algumas pessoas você perde tempo;
com outras você perde a noção do tempo”;
“os abraços foram feitos para expressar o
que as palavras deixam a desejar”. Alguém
recitou Joaquim Pessoa focado na vida, que
“é exigente porque é generosa. É dura
porque é terna. É amarga porque é doce.
É ela que nos coloca as perguntas,
cabendo-nos a nós encontrar as respostas.
Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais
séria das coisas divertidas”.
Dauro
Franco declamou “Só um Deus pode ter a vida
eterna ou mesmo um curto instante entre as
suas pernas”. Camões escreveu para a mesma
menina, a Norinha Borges, por quem pensou
estar apaixonado desde que lhe tocou o
olhar, primeiro minuto lá na casa da rua
Rui Barbosa onde, numa banheira sem água,
tinham acabado a noite a poetizar.
Subitamente ouviu alguém a recitar o que
tinha acabado de escrever para Norinha.
Aquilo era confidente, pensou, algo
envergonhado, recostado num sofá do
primeiro andar. Desceu as escadas e viu-a
abraçada a um jovem que o olhou com
carinho, um olhar que parecia dizer “seja
bem-vindo porque vem por bem mas ela já tem
namorado”. Fernando Marcelo, o namorado,
poeta, ativista, ecologista, cultura
enraizada em dois pais cultos; a Lucy,
psicóloga, fazendo a diferença com
sensibilidade e bom senso, recebendo o Outro
de mente aberta; e o Guarasil, um homem que
apesar de ouvir mal via muito além.
Fernando Marcelo era sobretudo um
dinamizador cultural. Tinha um jornal, o
“Artenativa”, onde as gentes das letras, das
palavras e das imagens davam asas à
liberdade de criar para uma imensa minoria,
e um varal de poesia que ajudou a mexer com
as consciências e a colocar em causa o
estabelecido. Ihoanna e Marcelo Puertas,
filhos acabados de serem bebés e a darem os
primeiros passos com as palavras - Marcelo
guarda religiosamente o seu primeiro poema,
escrito a duas mãos com Camões - também
estavam por ali a beber da cultura. Martinho
Santafé, copo na mão e palavra solta,
usava o microfone: “Meu amor, eu e você
temos algo em comum. Você bebe coca-cola e
eu bebo rum”.
No final da noite,
Camões rolava na relva daquela casa de
charme - onde viria a morar durante um ano -
com a cunhada de Martinho, bocas
entrelaçadas em prazer, Santafé dizendo um
poema que Camões nunca esqueceria: “o
pássaro elétrico emite passaportes para o
céu. Na orquestra dos fios rima voo com
azul. Deflorando a manhã como um
helicóptero bêbado”. Fernando Marcelo
proferia em tons de amor que “onde quer que
vá levarei sempre comigo a sensação de
que uma parte de mim anda por aí em forma
de mulher, vento ou poesia”. Sandra Oliva
Wyatt construía jogos magníficos com as
palavras, poemas sem fronteiras: “Aponte,
para dentro de si, a ponte que religa a
natureza que aflora fora, sem nunca abdicar
de sê-la”, vampirizando palavras que
escorriam húmidas na noite suada, a brisa
do mar, a madrugada deliciosa, a saliva
discorrendo pela boca. “Visão de poesia
sugando o poema para dentro deflorando no
poeta a sentida inspiração!”. Sandra tinha
um jeito de tratar as palavras que era novo
para Camões, uma desconstrução criativa
que desconecta as sílabas e as deixa voar
até às suas próprias nuances, poemas
in memoriam, metamorfose também de
corpo que forja “a forma da madeira
esculpindo a derradeira hora. As cinzas são
restos mortais das brasas que pai aqueceu do
frio a família descendente de agora.
Lágrimas são transformadas em canto que ri
e chora. O amor é feito de asas...”. Havia
a presença inspiradora de Cláudio Porto
que a doença levou; Bebeto, sublime,
escrevia muitas vezes em retribuições e
suspiros de Rainer Maria Rilke: “Mais do que
a volúpia e dor Maior que a vontade e
resistência Solitária forma silenciosa e
durável De amor e desejo. Vejo nos animais
encontro nas plantas. Não por gozo Nem por
dor Mas por necessidades maiores Que a
volúpia Que a vontade e resistência. Vida
que se renova. Ondas de espumas brancas
Abri-me os olhos. Sorrisos, crianças, seres
alegres Sémen que se faz fruto. Ilhas da
vida Transbordai em mim sua fecundidade
Tornai-me grávido Em constante maternidade
Solitária, de beleza e amor”. Paulinho
Moraes servia com requinte, um sorriso
único finalizado com uma risada
inconfundível, os olhos a fecharem-se na
cabeça ligeiramente tombada em bailado
sincopado de muitas boas ondas. Artur Gomes,
homem de Campos e de gumes, declamava,
pausadamente, “com os dentes cravados na
memória Soletro teu nome C a b o f r i o
barco bêbado naufragado fora do teu cais
Caminho marítimo para as Índias por onde
talvez já passou meu pai”.
Camões
sentia-se em casa, piscou o olho a Martinho
Santafé depois de ter declamado “Um urubu
pousou em minha sorte”; pegou em “A nau dos
corvos” de Ruy Belo que estava em cima da
mesa e que mesmo lhe parecendo
descontextualizado apreciou. “De súbito ao
cair de mais um ano sou por instantes
sinto-me ao cair da tarde do sol que antes
brilhante é luz lustrosa e pegajosa agora
à superfície da calçada na humilhante
morte de quem era alto eterno e dominante
sou ao cair da tarde de um ano que cai eu o
poeta o instalado o mais que muito
aburguesado um coletivo passageiro num
elétrico mas só supostamente anónimo ou
popular...”. Aldo César escreveu-lhe alguns
dias depois: “A paixão que ti demora, É a
fórmula da tua vida, E a vida de tua
paixão, É a forma sem norma, É a fórmula
de ti, Nesse imenso cubículo espacial que
é seu útero in te ira mente universal”.
Por vezes, encontravam-se para
recitar poesia, dando vida e voz a uma arte
tradicionalmente oral, improvisarem,
escreverem a várias mãos. Uma das mais
frequentes parcerias era a que unia Camões,
Dauro Franco e Fernando Marcelo: “E a lua se
põe em mim escandalosa Pouso um beijo na
rosa Pantera negra Enterrada no jardim Em
ocaso, luz e por de mim”. Fernando
improvisava “Quando minha língua Entra em
ti Teu sabor geme”, Camões respondia com
“Cores de luzes Caras de seres Poetas
cantando saberes”. Camões jorrava poesia da
alma enviada aos corações que acolhiam o
seu corpo em abraços de mãe. Sentia-se
confortável por entre sorrisos encantados e
esperanças sem fim. As suas manhãs
acordavam sem muitas vezes ter dormido,
melodias soando com o sol a querer brindar
alguma felicidade que sempre existia por
ali, rendendo graças à Primavera, a da
poesia e a do amor, lembrando Bertolt
Brecht: “Se não houver frutos Valeu a
beleza das flores Se não houver flores
Valeu a sombra das folhas Se não houver
folhas Valeu a intenção das sementes”.
Foi então que apareceu Danjavi – que
lhe chamava Joma Dassissi – para lhe
alimentar o ego, dar-lhe muito e bom sexo,
partilhar poesia. Ela escrevia-lhe “És como
tímido e escandaloso És como o mar
imprevisível Dependes da Lua” e ele
respondia-lhe “Encontro-te nos carinhos que
me fazem crescer, Caminhando no cume de
minha montanha, Meu sonho real de ser
totalmente feliz”.
- n.39 • agosto 2022