José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

Mentes abertas, artenativa e um novo Camões

Horas depois de ter chegado a Macaé, ao percorrer sem direção a rua principal, a Rui Barbosa – que escreveu “De tanto ver triunfar as nulidades, De tanto ver prosperar a desonra, De tanto ver crescer a injustiça, De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, O homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” - ouviu alguém a declamar poesia. Parou; identificou o lugar concreto de onde vinham as vozes, abriu uma porta, subiu uns degraus, abriu uma outra porta, entrou e surpreendeu-se com tanta gente bonita. Findo aquele poema, dito por uma voz musculada, passaram-lhe o microfone para a mão. Com o ritmo cardíaco em aceleração súbita, fez uma emocionada colagem de palavras suas e de outros poetas portugueses: “Bate levemente, Como quem chama por mim, Será chuva ou será gente, Gente não é certamente e a chuva não bate assim”. Olhando na direção de uma menina, aos seus olhos a mais formosa, prosseguiu, agora mais excitado que nervoso: “É fogo, Fogo que arde sem se ver, Uma luz, Um brilho, Olhos raiando por te ter, E um coração, Um coração a bater”. Entre aplausos alguém pegou o microfone de volta: “diretamente de Portugal...Camões!!”. E assim ficaria conhecido em Macaé e no Brasil: Camões, o poeta.

A qualquer bar que fosse pediam-lhe para recitar um poema. Cada vez mais ousado, convicto, subia a uma cadeira e recitava, de improviso, deixando jorrar as palavras, soltas e com sentido, sempre emotivo, laivos de performer e alguma arte, quase sempre dramática, a voz grave, metálica, conectado com a terra e o espaço celeste.

Um argentino que estava hospedado no 3 estrelas onde Camões já dava cartas ao balcão, sobretudo pela simpatia e fluência de línguas, convidou-o para uma festa na Praia dos Cavaleiros. Para sua surpresa era o mesmo grupo, o da poesia, que fazia uma festa transmitida ao vivo pela Rádio Macaé e onde a elite cultural local revelava palavra lavrada em mel. A dois passos do mar e do vento que soprava solene, a carne vazia abandonada.

A casa, que viria a ser o Tóquio Bar, tinha jardim, um telhado de pagode chinês, vidro e madeira. O ambiente estava esplendoroso, com gente ilustre e muito charme. Um rapaz que mais parecia uma boneca de porcelana falava que “com algumas pessoas você perde tempo; com outras você perde a noção do tempo”; “os abraços foram feitos para expressar o que as palavras deixam a desejar”. Alguém recitou Joaquim Pessoa focado na vida, que “é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas”.

Dauro Franco declamou “Só um Deus pode ter a vida eterna ou mesmo um curto instante entre as suas pernas”. Camões escreveu para a mesma menina, a Norinha Borges, por quem pensou estar apaixonado desde que lhe tocou o olhar, primeiro minuto lá na casa da rua Rui Barbosa onde, numa banheira sem água, tinham acabado a noite a poetizar. Subitamente ouviu alguém a recitar o que tinha acabado de escrever para Norinha. Aquilo era confidente, pensou, algo envergonhado, recostado num sofá do primeiro andar. Desceu as escadas e viu-a abraçada a um jovem que o olhou com carinho, um olhar que parecia dizer “seja bem-vindo porque vem por bem mas ela já tem namorado”. Fernando Marcelo, o namorado, poeta, ativista, ecologista, cultura enraizada em dois pais cultos; a Lucy, psicóloga, fazendo a diferença com sensibilidade e bom senso, recebendo o Outro de mente aberta; e o Guarasil, um homem que apesar de ouvir mal via muito além.

Fernando Marcelo era sobretudo um dinamizador cultural. Tinha um jornal, o “Artenativa”, onde as gentes das letras, das palavras e das imagens davam asas à liberdade de criar para uma imensa minoria, e um varal de poesia que ajudou a mexer com as consciências e a colocar em causa o estabelecido. Ihoanna e Marcelo Puertas, filhos acabados de serem bebés e a darem os primeiros passos com as palavras - Marcelo guarda religiosamente o seu primeiro poema, escrito a duas mãos com Camões - também estavam por ali a beber da cultura. Martinho Santafé, copo na mão e palavra solta, usava o microfone: “Meu amor, eu e você temos algo em comum. Você bebe coca-cola e eu bebo rum”.

No final da noite, Camões rolava na relva daquela casa de charme - onde viria a morar durante um ano - com a cunhada de Martinho, bocas entrelaçadas em prazer, Santafé dizendo um poema que Camões nunca esqueceria: “o pássaro elétrico emite passaportes para o céu. Na orquestra dos fios rima voo com azul. Deflorando a manhã como um helicóptero bêbado”. Fernando Marcelo proferia em tons de amor que “onde quer que vá levarei sempre comigo a sensação de que uma parte de mim anda por aí em forma de mulher, vento ou poesia”. Sandra Oliva Wyatt construía jogos magníficos com as palavras, poemas sem fronteiras: “Aponte, para dentro de si, a ponte que religa a natureza que aflora fora, sem nunca abdicar de sê-la”, vampirizando palavras que escorriam húmidas na noite suada, a brisa do mar, a madrugada deliciosa, a saliva discorrendo pela boca. “Visão de poesia sugando o poema para dentro deflorando no poeta a sentida inspiração!”. Sandra tinha um jeito de tratar as palavras que era novo para Camões, uma desconstrução criativa que desconecta as sílabas e as deixa voar até às suas próprias nuances, poemas in memoriam, metamorfose também de corpo que forja “a forma da madeira esculpindo a derradeira hora. As cinzas são restos mortais das brasas que pai aqueceu do frio a família descendente de agora. Lágrimas são transformadas em canto que ri e chora. O amor é feito de asas...”. Havia a presença inspiradora de Cláudio Porto que a doença levou; Bebeto, sublime, escrevia muitas vezes em retribuições e suspiros de Rainer Maria Rilke: “Mais do que a volúpia e dor Maior que a vontade e resistência Solitária forma silenciosa e durável De amor e desejo. Vejo nos animais encontro nas plantas. Não por gozo Nem por dor Mas por necessidades maiores Que a volúpia Que a vontade e resistência. Vida que se renova. Ondas de espumas brancas Abri-me os olhos. Sorrisos, crianças, seres alegres Sémen que se faz fruto. Ilhas da vida Transbordai em mim sua fecundidade Tornai-me grávido Em constante maternidade Solitária, de beleza e amor”. Paulinho Moraes servia com requinte, um sorriso único finalizado com uma risada inconfundível, os olhos a fecharem-se na cabeça ligeiramente tombada em bailado sincopado de muitas boas ondas. Artur Gomes, homem de Campos e de gumes, declamava, pausadamente, “com os dentes cravados na memória Soletro teu nome C a b o f r i o barco bêbado naufragado fora do teu cais Caminho marítimo para as Índias por onde talvez já passou meu pai”.

Camões sentia-se em casa, piscou o olho a Martinho Santafé depois de ter declamado “Um urubu pousou em minha sorte”; pegou em “A nau dos corvos” de Ruy Belo que estava em cima da mesa e que mesmo lhe parecendo descontextualizado apreciou. “De súbito ao cair de mais um ano sou por instantes sinto-me ao cair da tarde do sol que antes brilhante é luz lustrosa e pegajosa agora à superfície da calçada na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante sou ao cair da tarde de um ano que cai eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado um coletivo passageiro num elétrico mas só supostamente anónimo ou popular...”. Aldo César escreveu-lhe alguns dias depois: “A paixão que ti demora, É a fórmula da tua vida, E a vida de tua paixão, É a forma sem norma, É a fórmula de ti, Nesse imenso cubículo espacial que é seu útero in te ira mente universal”.

Por vezes, encontravam-se para recitar poesia, dando vida e voz a uma arte tradicionalmente oral, improvisarem, escreverem a várias mãos. Uma das mais frequentes parcerias era a que unia Camões, Dauro Franco e Fernando Marcelo: “E a lua se põe em mim escandalosa Pouso um beijo na rosa Pantera negra Enterrada no jardim Em ocaso, luz e por de mim”. Fernando improvisava “Quando minha língua Entra em ti Teu sabor geme”, Camões respondia com “Cores de luzes Caras de seres Poetas cantando saberes”. Camões jorrava poesia da alma enviada aos corações que acolhiam o seu corpo em abraços de mãe. Sentia-se confortável por entre sorrisos encantados e esperanças sem fim. As suas manhãs acordavam sem muitas vezes ter dormido, melodias soando com o sol a querer brindar alguma felicidade que sempre existia por ali, rendendo graças à Primavera, a da poesia e a do amor, lembrando Bertolt Brecht: “Se não houver frutos Valeu a beleza das flores Se não houver flores Valeu a sombra das folhas Se não houver folhas Valeu a intenção das sementes”.

Foi então que apareceu Danjavi – que lhe chamava Joma Dassissi – para lhe alimentar o ego, dar-lhe muito e bom sexo, partilhar poesia. Ela escrevia-lhe “És como tímido e escandaloso És como o mar imprevisível Dependes da Lua” e ele respondia-lhe “Encontro-te nos carinhos que me fazem crescer, Caminhando no cume de minha montanha, Meu sonho real de ser totalmente feliz”.