José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

Filosofia de comboio

As últimas réstias de sol tentam romper por entre as frestas da imunda janela do comboio, lá fora as árvores raras, o coração vazio da Índia, as palavras dos meus companheiros de improvável viagem coladas em desalinho aprumado, saltando das caraterísticas geográficas para a economia, da cultura para a política. “A primeira-ministra Rajive Gandhi foi assassinada por movimentos extremistas que não aprovaram a sua decisão de enviar tropas indianas para o Sri Lanka. É preciso não confundir Rajive com Indira Gandhi, aquele morto pelos sikhs, gente que se cobre da cabeça aos pés, que possui a sua religião própria e os seus templos em toda a Índia”, conta, pausadamente, Sitaram. Joginder completa: “A Índia é muito difícil de entender. É quase um sub-continente, com castas e religiões antagónicas. Nem nós mesmos nos conhecemos”. Recordo-me de um poema de Poliana Oliveria: “Hoje acordei com vontade de ser mais eu, de me olhar no espelho e falar que eu quero, eu posso e consigo. Que sou muito além do que imagino; que posso surpreender-me comigo mesma, e que a minha felicidade não depende de ninguém além de mim...” M.Ahmled – leio-lhe o nome do lado esquerdo de uma blusa verde escura - vem à carruagem perguntar o que queremos comer. As opções são escassas: sopa de tomate, chapati, arroz branco cozido com carne e legumes e frango de caril.

Sitaram é bancário. Comunica com Joginder em inglês, “a língua que une o nosso povo”. Sitaram fala tamil, Joginder punjab da zona de Punjabi, línguas que não se cruzam nem se compreendem. Oficialmente falam-se 14 idiomas em toda a Índia. Na prática existem centenas. Inúmeros dialetos numa mesma região. Tão diversos como este país de castas e gente tão estranha, capaz de provocar no forasteiro os sentimentos mais antagónicos. Uma das mordomias de viajar em 2a classe a.c – com ar condicionado – é ter direito a um lugar num compartimento com quatro camas. O revisor confirma o bilhete e distribui um pacote de papel contendo dois lençóis, um cobertor com a inscrição Central Railway e uma pequena toalha de rosto que entrega juntamente com uma almofada. Caiu a noite. O comboio continua a sua marcha sem que se saiba bem em que direção segue. Lá fora escuro breu da cor da minha t-shirt, calções e chinelos. Será que a “Briosa”, equipa onde o meu avô Francisco Meireles, formado em medicina e a pessoa que mais influenciou a minha carreira profissional, jogou e nos ensinou a gostar, ainda está a lutar para subir de divisão?

Fecho os olhos. Bato com os dedos no gémeo esquerdo como se tocasse as teclas de um piano. Sei que existe por aqui um pacto de não-violência e de respeito por todas as formas de vida animal e que muitas divindades são associadas a animais: Vishnu ao leão, Shiva ao touro, e Ganesh a meio homem meio elefante a quem se reza antes de um compromisso importante. É ele que remove os obstáculos do caminho, que nos protege do mal, que nos alivia o karma. Em Bombaim vi uma escultura de Ganesh olhando-me intrigado, observando os meus movimentos com uma expressão de curiosidade. Uma vaca passa indiferente pelo meio da estrada, as motas desviam-se para não lhe tocarem, lembro-me que as vacas são sagradas desde que impediram a sua matança em tempo de seca e fome.

Chega a comida, oleosa, cheia de condimentos, intragável, servida num prato de latão. Não vou conseguir comer. Quem me dera estar agora no Hytt Regency de Bombaim onde fiquei com os meus pais da outra vez que andei por aqui. Certa manhã ofertaram-nos um sublime pequeno-almoço com longas taças de prata repletas de um espumoso lassi, bebida feita de iogurte com água, sal e esperiarias com sabor de baunilha. Que delícia. Tão delicioso como um doce indiano frito, em forma de espiral, embebido em melaço. Nunca me esqueci do nome: jalebis. Ui. Esta sopa tem uma cor estranhíssima, vermelho florescente. É, como toda a comida indiana, condimentada e agressiva. No entanto, convenhamos, está de acordo com o clima e com as condições de higiene locais. O picante mata os vermes.

Joginder discorre agora sobre o corpo humano. Considera o fígado um dos órgãos mais importantes e dá uma receita feita à base de frutas diversas para o limpar. Infelizmente, não conheço a maioria dos frutos mencionados, nem me parece que a maior parte exista na Europa. “A medicina tradicional indiana, feita à base de frutos e plantas, é simples, mas muito eficaz. Por meras 10 rupias qualquer pessoa cura uma doença. Aliás, a eficácia da cura pelas plantas remonta ao tempo de um português, Garcia da Horta, que em 1534 embarcou para a Índia como físico do futuro governador Martim Afonso de Sousa e, em Goa, iniciou a obra Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia ao mesmo tempo que exercia medicina numa clínica privada. Parece que usava a abelmosco para cólicas intestinais, biliares ou renais, sistema nervoso e espasmos uterinos e a beringela para combater a obesidade e as doenças do fígado. Foi também esse seu compatriota que primeiro descobriu o algodoeiro e as propriedades terapêuticas do amendoim, que para além de fornecer vitaminas possui um óleo que serve de veículo medicamentoso. Segundo rezam as crónicas sobre esse livro indo-português que não teve grande circulação e quase desapareceu, deve-se a este médico um dos mais relevantes estudos sobre o nome, a origem, o uso e a utilização pelos médicos e físicos indianos das plantas medicinais oriundas do nosso país.”

A conversa corre mais solta do que o comboio, lento, salta de cidade em cidade, passa por Bombaim, “terra de sete rios, uma quase ilha cheia de detritos”, vai até às mais-valias do Sul, “mais culto e mais civilizado. Lá, as pessoas são unidas, a educação é maior.”

Sitaram abana a cabeça para cima e para baixo e não em ondulações para o lado, como a maioria dos indianos. “Porque sou do Norte e no Norte a linguagem gestual é mais próxima da da Europa. Não tão excessiva, contudo, quanto a dos latinos”.

Faz pelo menos uma hora que o comboio está parado nesta estação. Venho à janela, mas não consigo ver o nome. Sitaram vai abrindo o livro dos seus conhecimentos. Lá fora um pobre bebe arrack, o chamado “licor do interior”, bebida dos mais desfavorecidos, feita à base de um líquido extraído dos coqueiros e depois destilada. A mais consumida tem um sabor a rum e é fabricada localmente de forma artesanal. A maioria, todavia, toma chá com leite e certamente demasiado açúcar. De uma outra cabine, um rádio mal sintonizado soa uma música de Mehdi Hassan, ligeira, poética, de nome ghazal. Os poemas são recitados com alma e acompanhados por uma melodiosa cítara. Gosto desta magia, da atmosfera cinematográfica, do astral pacientemente envolvente.