
Insólita Viagem
José Manuel Simões
No templo de Hare Krishna
- Partilhar 30/12/2021
Um grupo de jovens, vestes laranjas e
um tufo de cabelo na cabeça rapada,
aproxima-se da linha 7 e por lá fica a
cantar: “Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna
Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama,
Rama Rama, Hare Hare”. São devotos de
Krishna, conheço o cântico, sorrio. Decido
ir ter com eles e meter conversa com uma
moça morena. Chama-se Nooran e tem um olhar
puro e magnético. Convida-me a ir com eles a
uma cerimónia num velho templo perto do
Regency Hotel. Aceito pelo fascínio que ela
me desperta e pela minha busca interior, mas
não imaginava que por lá iria ficar durante
22 dias, com Nooran sempre por perto,
afável, como se me quisesse proteger. Ou
seria converter?
Deixei-me levar,
entrando num estado de oração e meditação, o
culto da alma que sei nunca morre. A
atmosfera é solene, a paz reina no ar, oro,
oro muito, peço a Deus que me mostre o
caminho, que me encha o coração de alegria.
Rezamos em círculo, um terço enorme de bolas
de madeira na mão, esporadicamente comemos,
apenas o essencial, frutas e vegetais.
Nenhum dos elementos do grupo come carne,
bebe álcool, fuma ou toma drogas. Constato
que vivem juntos, em comunidade, têm os
mesmos hábitos, costumes e normas, cultivam
a alma em função de um ser superior,
Krishna, mensageiros do que acreditam ser
uma divina graça. Tal como eles, também eu
acredito numa outra vida para além desta e
daqui. Fico amigo de Nooran e de Hari-Nam,
nome que significa servente das missões de
canto de Krishna, jovem de traços orientais
de ascendência vietnamita, uma bolsa branca
na mão com as peças de madeira
correspondentes a cada oração ou hino que
canta em tom leve, quase em surdina, hinos
de amor, por vezes acompanho-a
ajoelhando-me, agradecendo, adorando,
orando. A música de cítara inebria-me os
sentidos, também eu canto, eles dezenas,
talvez centenas de vezes ao dia, “Hare
Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare
Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare
Hare”.
Por vezes, ainda de
madrugada, acordamos ao som de uma voz
gravada: “a tua alma foi-te dada no momento
em que foste gerado, fruto da relação entre
os teus pais. Aquando da tua formação tens a
consciência da vida que tiveste
anteriormente; esqueces no momento em que
nasces, quando puxam a tua cabeça, desmaias
e entras neste plano. Esqueces então todo o
teu passado para começares a viver uma nova
vida, aprendendo as coisas erradas que já
os pais dos teus bisavós lhes ensinaram, mas
agora em ti, cada vez mais errado através
dos tempos”, reforça.
Richiquiche,
“servo do amor divino”, gosta de me falar.
Em longos monólogos revela que acredita que
há́ apenas um só́ Deus. “Crito, Buda,
Jeová, Krishna, são apenas mensageiros em
diferentes tempos e lugares desse mesmo e
único Deus, supremo”, exclama, convicto,
antes da 15.ª oração do dia.
Quando
não reza Richiquiche é um falador; os seus
monólogos duram horas, as ideias correm-lhe
depressa, a vontade de falar desse Deus é
tão grande que não se consegue conter. Sorri
sempre. Tal como todos os outros, parece ser
realmente feliz.
Tem 27 anos.
Pergunto-lhe se pensa ficar aqui durante
toda a sua vida: “estou certo disso. Que
iria eu fazer numa reles vida material?”,
responde-me com uma luminosidade no olhar
que me espanta. Mesmo que, aparentemente,
privados, sem mulher ou homem, diversão ou
arte, conseguem um estado de aparente
contínuo bem-estar. “Para que iria eu
trabalhar no mundo material? Ganhar
dinheiro, comprar uma casa e um carro,
correr de um lado para o outro apressado e
sem paz? Aqui só́ como o necessário, não
tenho problema nenhum, não olho para o
relógio nem preciso de cumprir horários, não
me canso, vivo em paz e serenidade. Mesmo
quando cuido de uma das nossas dez vacas,
cultivo os nossos legumes, cozinho para
todos ou vou espalhar a nossa palavra à
cidade, sinto-me bem. Sinto-me sempre bem.
Porque penso e canto o nome de Krishna.
Sabes, estou certo de que, se cumprir sempre
para com Ele, nunca nesta vida irei voltar a
sofrer ou a ter problemas. Porque iria viver
a má vida material lá de fora se poderei
ser feliz todos os dias da minha vida aqui
dentro?”. Acrescenta Hari-Nam: “Observa uma
foto de quando eras pequeno e compara com o
que és agora. A tua alma é a mesma, apenas
o teu corpo se vai transformando. Então, o
que achas? Deverei eu, deveremos nós,
cultivar o nosso corpo, dando-lhe carne, ou
alimentar a alma, meditando, fazendo orações
ao nosso Deus, o todo poderoso? A mente
está sempre a fugir do nosso corpo, a
pensar no passado, a programar o futuro, mas
nunca ou raramente a viver o presente, o
momento. Sou de e para Krishna, adoro-O”,
aponta para uma menina pequena de estatura,
pureza no olhar. Tal como todos os outros,
crê que foi Deus que me trouxe até aqui.
“Foi a sorte, a mão de Krishna que
com a sua bênção e o seu poder me indicou o
caminho. Como o indicou igualmente a ti no
momento em que te aproximaste de Nooran”,
acredita Hari-Nam, inspirando-me confiança.
A campainha soa no silêncio da
madrugada, todos se levantam ao amanhecer,
com o nascer do sol, o toque indicando que
brevemente o pequeno-almoço estará́
preparado. Depois de um banho numa casa de
banho bastante rústica dirijo-me ao templo
central onde todos se encontram de cabeça no
chão a rezar a oração de agradecimento pela
refeição que se irá seguir.
“Primeiro, temos que oferecer a comida a
Deus, pois tudo o que fazemos e tudo o que
temos a Ele o devemos”, refere Nooran, já
na mesa, curiosamente uma frase que a minha
avó me costumava dizer no mesmo tom.
Pergunta-me se acredito na imortalidade do
espírito, se acredito em reencarnação, se
acredito nos ensinamentos do Livro dos
Espíritos, se Deus habita em mim. Aceno-lhe
com a cabeça em sinal afirmativo. “Então
acredita que o teu espírito foi planeado
para viver esta tua reencarnação.”
Naquele momento percebi que não valia a
pena. Não valia a pena correr, sofrer,
pensar demais, preocupar-me com o que quer
que fosse. O que tiver de acontecer,
acontecerá, disse para mim mesmo,
compreendendo que quando sofro não mudo nada
e que o meu êxtase não é garantia de
tranquilidade duradoura. Tudo virá a seu
tempo, independente dos meus desejos.
Aconteça o que acontecer, quando acontecer,
como acontecer, ou mesmo que não aconteça, o
importante é estar em paz.
Sinto-me
bem, consciente que o poder do amor a Deus
pode transformar todos os problemas numa
gota de água, que esse poder é a chave de
tudo, uma parte do nosso amor incondicional,
não palpável, não carnal. O que neste
momento sinto é uma felicidade serena e
silenciosa que me faz bem, talvez reflexo do
trabalho interior que tenho vindo a fazer.
Há́ quantos dias cheguei aqui? Mais do que
nunca estou a aprender a conhecer-me, a
valorizar-me, a celebrar o meu amor ao
supremo. Uma felicidade que cura as minhas
mazelas, as que me assolam desde pequenino,
uma felicidade leve, verdadeira, simples e
constante. A decisão de receber Deus dentro
de mim é só́ minha, depende apenas do meu
interior, da minha força, querer, vontade,
mas mesmo essa decisão eu não quero tomar
agora. Procuro-me e isso é o bastante.

- n.32 • janeiro 2022