José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

No templo de Hare Krishna

Um grupo de jovens, vestes laranjas e um tufo de cabelo na cabeça rapada, aproxima-se da linha 7 e por lá fica a cantar: “Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare”. São devotos de Krishna, conheço o cântico, sorrio. Decido ir ter com eles e meter conversa com uma moça morena. Chama-se Nooran e tem um olhar puro e magnético. Convida-me a ir com eles a uma cerimónia num velho templo perto do Regency Hotel. Aceito pelo fascínio que ela me desperta e pela minha busca interior, mas não imaginava que por lá iria ficar durante 22 dias, com Nooran sempre por perto, afável, como se me quisesse proteger. Ou seria converter?

Deixei-me levar, entrando num estado de oração e meditação, o culto da alma que sei nunca morre. A atmosfera é solene, a paz reina no ar, oro, oro muito, peço a Deus que me mostre o caminho, que me encha o coração de alegria. Rezamos em círculo, um terço enorme de bolas de madeira na mão, esporadicamente comemos, apenas o essencial, frutas e vegetais. Nenhum dos elementos do grupo come carne, bebe álcool, fuma ou toma drogas. Constato que vivem juntos, em comunidade, têm os mesmos hábitos, costumes e normas, cultivam a alma em função de um ser superior, Krishna, mensageiros do que acreditam ser uma divina graça. Tal como eles, também eu acredito numa outra vida para além desta e daqui. Fico amigo de Nooran e de Hari-Nam, nome que significa servente das missões de canto de Krishna, jovem de traços orientais de ascendência vietnamita, uma bolsa branca na mão com as peças de madeira correspondentes a cada oração ou hino que canta em tom leve, quase em surdina, hinos de amor, por vezes acompanho-a ajoelhando-me, agradecendo, adorando, orando. A música de cítara inebria-me os sentidos, também eu canto, eles dezenas, talvez centenas de vezes ao dia, “Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare”.

Por vezes, ainda de madrugada, acordamos ao som de uma voz gravada: “a tua alma foi-te dada no momento em que foste gerado, fruto da relação entre os teus pais. Aquando da tua formação tens a consciência da vida que tiveste anteriormente; esqueces no momento em que nasces, quando puxam a tua cabeça, desmaias e entras neste plano. Esqueces então todo o teu passado para começares a viver uma nova vida, aprendendo as coisas erradas que já os pais dos teus bisavós lhes ensinaram, mas agora em ti, cada vez mais errado através dos tempos”, reforça.

Richiquiche, “servo do amor divino”, gosta de me falar. Em longos monólogos revela que acredita que há́ apenas um só́ Deus. “Crito, Buda, Jeová, Krishna, são apenas mensageiros em diferentes tempos e lugares desse mesmo e único Deus, supremo”, exclama, convicto, antes da 15.ª oração do dia.

Quando não reza Richiquiche é um falador; os seus monólogos duram horas, as ideias correm-lhe depressa, a vontade de falar desse Deus é tão grande que não se consegue conter. Sorri sempre. Tal como todos os outros, parece ser realmente feliz.

Tem 27 anos. Pergunto-lhe se pensa ficar aqui durante toda a sua vida: “estou certo disso. Que iria eu fazer numa reles vida material?”, responde-me com uma luminosidade no olhar que me espanta. Mesmo que, aparentemente, privados, sem mulher ou homem, diversão ou arte, conseguem um estado de aparente contínuo bem-estar. “Para que iria eu trabalhar no mundo material? Ganhar dinheiro, comprar uma casa e um carro, correr de um lado para o outro apressado e sem paz? Aqui só́ como o necessário, não tenho problema nenhum, não olho para o relógio nem preciso de cumprir horários, não me canso, vivo em paz e serenidade. Mesmo quando cuido de uma das nossas dez vacas, cultivo os nossos legumes, cozinho para todos ou vou espalhar a nossa palavra à cidade, sinto-me bem. Sinto-me sempre bem. Porque penso e canto o nome de Krishna. Sabes, estou certo de que, se cumprir sempre para com Ele, nunca nesta vida irei voltar a sofrer ou a ter problemas. Porque iria viver a má vida material lá de fora se poderei ser feliz todos os dias da minha vida aqui dentro?”. Acrescenta Hari-Nam: “Observa uma foto de quando eras pequeno e compara com o que és agora. A tua alma é a mesma, apenas o teu corpo se vai transformando. Então, o que achas? Deverei eu, deveremos nós, cultivar o nosso corpo, dando-lhe carne, ou alimentar a alma, meditando, fazendo orações ao nosso Deus, o todo poderoso? A mente está sempre a fugir do nosso corpo, a pensar no passado, a programar o futuro, mas nunca ou raramente a viver o presente, o momento. Sou de e para Krishna, adoro-O”, aponta para uma menina pequena de estatura, pureza no olhar. Tal como todos os outros, crê que foi Deus que me trouxe até aqui.

“Foi a sorte, a mão de Krishna que com a sua bênção e o seu poder me indicou o caminho. Como o indicou igualmente a ti no momento em que te aproximaste de Nooran”, acredita Hari-Nam, inspirando-me confiança.

A campainha soa no silêncio da madrugada, todos se levantam ao amanhecer, com o nascer do sol, o toque indicando que brevemente o pequeno-almoço estará́ preparado. Depois de um banho numa casa de banho bastante rústica dirijo-me ao templo central onde todos se encontram de cabeça no chão a rezar a oração de agradecimento pela refeição que se irá seguir.

“Primeiro, temos que oferecer a comida a Deus, pois tudo o que fazemos e tudo o que temos a Ele o devemos”, refere Nooran, já na mesa, curiosamente uma frase que a minha avó me costumava dizer no mesmo tom. Pergunta-me se acredito na imortalidade do espírito, se acredito em reencarnação, se acredito nos ensinamentos do Livro dos Espíritos, se Deus habita em mim. Aceno-lhe com a cabeça em sinal afirmativo. “Então acredita que o teu espírito foi planeado para viver esta tua reencarnação.”

Naquele momento percebi que não valia a pena. Não valia a pena correr, sofrer, pensar demais, preocupar-me com o que quer que fosse. O que tiver de acontecer, acontecerá, disse para mim mesmo, compreendendo que quando sofro não mudo nada e que o meu êxtase não é garantia de tranquilidade duradoura. Tudo virá a seu tempo, independente dos meus desejos. Aconteça o que acontecer, quando acontecer, como acontecer, ou mesmo que não aconteça, o importante é estar em paz.

Sinto-me bem, consciente que o poder do amor a Deus pode transformar todos os problemas numa gota de água, que esse poder é a chave de tudo, uma parte do nosso amor incondicional, não palpável, não carnal. O que neste momento sinto é uma felicidade serena e silenciosa que me faz bem, talvez reflexo do trabalho interior que tenho vindo a fazer. Há́ quantos dias cheguei aqui? Mais do que nunca estou a aprender a conhecer-me, a valorizar-me, a celebrar o meu amor ao supremo. Uma felicidade que cura as minhas mazelas, as que me assolam desde pequenino, uma felicidade leve, verdadeira, simples e constante. A decisão de receber Deus dentro de mim é só́ minha, depende apenas do meu interior, da minha força, querer, vontade, mas mesmo essa decisão eu não quero tomar agora. Procuro-me e isso é o bastante.