Musique-se
Paulo Cunha
Concertos ou espetáculos musicais?
- Partilhar 03/11/2022
Um destes
dias, tive a oportunidade de “ouver” num
cinema de Faro, transmitido com um
pequeno lapso de tempo de desfasamento,
um concerto da banda Coldplay num
estádio de Buenos Aires.
Confortavelmente sentado, numa sala
climatizada, sem gente aos gritos nem
aos saltos, tive a oportunidade de
apreciar um dos melhores espetáculos
visuais e sonoros que me foram dados,
até hoje, a assistir. Talvez porque
tivesse todas as condições para o fazer,
consegui observar ao pormenor como se
fideliza o público para este tipo de
espetáculos, onde a música poderia até
ser completamente gravada e os músicos,
assim, fazer playback total. Os
condimentos estavam lá todos, bastava
apenas desfrutá-los. Foi o caso!
Somando toda a parafernália tecnológica
de última geração à maestria e
profissionalismo como a banda geria uma
encenação cuidada ao mais ínfimo
pormenor, o tempo parecia não passar
pela quantidade de hits que
colocaram o estádio, profusa e
criativamente iluminado, a cantar e a
dançar. Não poderia haver melhor
adjetivação: espetacular! Aliás, de
outra coisa não se poderia esperar,
sendo aquele evento um grande espetáculo
musical e não apenas um concerto.
Logo que começaram a tocar,
vieram-me à mente os concertos do
Beatles em estádios com as bancadas
cheias, com fãs histéricos ao -
simplesmente - vê-los ao longe, num
pequeno palco montado num qualquer canto
das quatro linhas do campo relvado, com
amplificadores diminutos e iluminação
quase monocromática. Não havendo écrans,
os binóculos saciavam o reduzido som que
ecoava entre as bancadas. Imaginei o que
seriam, agora, os concertos que deram
nos anos sessenta. Será que, hoje,
seriam apenas concertos? Muito
provavelmente, não. A sua sublime música
seria, como com quase todas as
megabandas internacionais, embrulhada em
efeitos especiais que nos encantariam os
sentidos, mas, provavelmente, nos
afastariam da originalidade,
criatividade e interpretação que só
eles, enquanto coletivo musical,
conseguiam transmitir.
Parecendo
ter ouvido os meus pensamentos, já quase
a chegar ao fim do espetáculo musical,
querendo homenagear um tempo em que
ensaiavam num pequeno quarto e se
apresentavam em espaços reduzidos, o
grupo saiu do conceito “espetacular
espetáculo” e deslocou-se para um
pequeno e singelo palco, entre o
público, onde os quatro, virados uns
para os outros, relembraram um outro
tempo. Foi delicioso para os ouvidos,
pois a pureza e a essência da música
estavam lá. Quiseram mostrar ao mundo
que ainda não a perderam... e
conseguiram!
Integrando dois
agrupamentos musicais em que a
amplificação e a luminotecnia são
diminutas, o desempenho, a execução e o
rigor instrumental e vocal continuam a
ser os motivos que me levam ainda a
tocar em grupo. Por isso, aconselho os
meus alunos que façam silêncio enquanto
escutam música ao vivo, a não ser que os
músicos solicitem a participação do
público. Obviamente, compreendo que não
entendam a minha sugestão, pois, segundo
eles, a (sua) música é para ser “curtida
alta e em bom som”, acompanhada por
berros cantados, palmas e saltos. Não
tenho nada contra, pois sei que é este o
conceito de espetáculo musical, um
cocktail de estímulos onde a música
acaba para ser o principal chamariz para
provocar no consumidor as reações
desejadas.
Ambas as
manifestações musicais são válidas e
desejáveis. O importante é saber
distingui-las, enquadrá-las e não exigir
de quem vive da e para a música que cada
concerto seu se transforme num
espetáculo. Até porque a boa música é já
por si um espetáculo!
- n.42 • novembro 2022