Paulo Cunha

Musique-se

Paulo Cunha

Não consegui bilhete!

Face às contingências e consequências da guerra que ora decorre na Ucrânia e tendo em conta a crise financeira que se promete instalar nos lares de muitas famílias portuguesas, muitos questionam-se como é que duzentos mil portugueses, cinquenta mil por dia (números veiculados pela promotora Everything is New), marcarão presença nos espetáculos em Portugal da digressão Music of the Spheres da banda britânica Coldplay em maio do ano que vem.

Num ápice esgotaram-se os quatro concertos (17, 18, 20 e 21 de maio de 2023) que foram, sábia e estrategicamente, anunciados hora após hora para o Estádio “Cidade de Coimbra”. Segundo declarações da presidente executiva da plataforma de venda de bilhetes Ticketline, nunca houve tanta gente a querer marcar presença num espetáculo em solo português. Apesar da venda de bilhetes ter estado limitada a seis unidades por pessoa com o propósito de evitar “açambarcamentos”, o mercado paralelo continua a ter ingressos à venda por preços astronómicos (seis vezes mais caros).

Convém recordar que os preços dos bilhetes não eram propriamente acessíveis (entre os 85€ e os 500€). O que terá então levado tanta gente a pernoitar à porta das bilheteiras físicas, a permanecer horas a fio em filas intermináveis e fazer com que os sites virtuais de venda autorizada (portugueses, espanhóis e ingleses) deixassem de funcionar, devido ao anómalo registo para aquisição de bilhetes? Obviamente, são múltiplos fatores. Somados, resultaram nesta histeria coletiva que se tornou um marco para a indústria musical portuguesa.

Se já antes os promotores/produtores tinham como dado adquirido o ganho no investimento em espetáculos integrados em megadigressões mundiais das estrelas da indústria discográfica e videográfica, imaginem o que será o futuro. Bilhetes vendidos a quase um ano de distância dos concertos renderão muito em juros, e eles sabem-no. Os músicos, esses receberão apenas o acordado entre as partes. Afinal de contas, tudo se resume à compra e venda de um produto. Neste caso, um espetáculo onde a música também faz parte do “pacote” (três palcos, êxitos estrondosos, versões inesperadas, écrans com efeitos especiais, pirotecnia e, obviamente, o público transformado num coro eufórico).

Sendo conhecedor e apreciador da banda, coloco, naturalmente, a sua qualidade musical como o principal fator para a procura desenfreada de bilhetes em todos os continentes onde a sua digressão passará. São também fatores a ter em conta o facto de ser uma banda com um grande e consistente percurso temporal, assente numa quantidade assinalável de êxitos; usufruírem duma excelente, funcional e bem orquestrada campanha de marketing da sua editora discográfica; em virtude da pandemia, pelo facto de termos estado impedidos de vivenciar a música tocada e interpretada ao vivo, terem meio mundo a querer “ouvê-los”; o desejo de usarmos os seus concertos como forma de descompressão, catarse e revivalismo; podermos apreciar, ao vivo e em família, a encenação e espetacularidade dos seus concertos; podermos ter os seus concertos no currículo enquanto consumidores e fãs da sua música.

Gostaria que, a reboque e como consequência desta situação inusitada no nosso país, os portugueses tenham, doravante, o mesmo ensejo de encher todos os tipos de salas, auditórios, pavilhões e estádios para desfrutar do que tantos e bons músicos lhes têm para oferecer. Experimentem partilhar e comungar o vosso gosto pela boa música com aqueles que através da música tornam os nossos dias melhores e, por certo, sentirão o bem-estar que a música proporciona. Eu tento fazer a minha parte!