Musique-se
Paulo Cunha
Os desafinados também têm coração
- Partilhar 01/07/2022
Tendo em
conta a reduzida carga horária semanal
da disciplina que ministro, ao longo da
minha carreira docente aprendi que para
me sentir recompensado já me chega que,
no final do 2º ciclo, os alunos cantem
afinado os “Parabéns a Você” e o “Hino
Nacional”. Sendo duas canções que irão
cantar várias vezes pela sua vida fora
em contexto de celebração, serão
obviamente escrutinados e avaliados pelo
seu desempenho interpretativo, tendo
especial enfoque na afinação.
Sendo a afinação musical um conceito
concreto, definível e avaliável, pode
também ser relativizado em função do
contexto em que é escutada e sentida.
Basta enquadrá-la em culturas musicais
diferentes, em ocasiões festivas, em
interpretações mais pessoais e até em
afinações desadequadas ao registo vocal
do intérprete.
Há uns anos,
lembro-me que, em tom de brincadeira, um
colega meu de lides musicais espalhava
aos quatro ventos que a “Afinação é um
conceito pequeno-burguês!” Percebo a
intenção do mesmo ao fazê-lo, mas não
posso deixar de registar que, em
contexto social, a desafinação acaba por
ter um efeito diferenciador e, de certa
forma, negativo, levando assim os
pretensos desafinados a sentir a
vergonha e receio de cantar em público.
Tal como outros aspetos
característicos e identitários de cada
um, que não consideramos serem os
melhores, a afinação não deve ser
avaliada publicamente, sob pena de,
perante o estigma e trauma que tal
avaliação poderá causar, impedir-nos de
trabalhá-la e corrigi-la
convenientemente. Aliás, basta pensar na
quantidade de amigos nossos que se
retraem e se inibem de cantar em público
para imaginar qual será a possível
causa.
Tomando o “Hino Nacional”
e os “Parabéns a Você” como referência,
como ambas têm uma extensão melódica que
exige alguns saltos melódicos
(intervalos) entre as notas mais graves
e as mais agudas, é importante
salvaguardar a tonalidade em que devemos
cantar, adaptando assim a afinação da
música ao cantor e não o contrário. Só
isso fará uma grande diferença.
Tal como os instrumentos que se afinam
antes de serem tocados, também a nossa
voz, poderoso instrumento, deverá ser
afinada ao longo do seu crescimento e
amadurecimento. Para tal, aconselho a
audição ativa da música, acompanhando-a
com uma interpretação vocal desprendida,
descomplexada e prazenteira.
Quem
sente a música como uma dádiva da vida
não se deve autopenalizar por alguém lhe
ter dito que é desafinado. Porque cantar
é natural, é bom e faz bem, cantemos a
uma só voz: “Se você disser que eu
desafino, amor / Saiba que isto em mim
provoca imensa dor / Só privilegiados
têm ouvido igual ao seu / Eu possuo
apenas o que Deus me deu (…)”.
- n.38 • julho 2022