Paulo Cunha

Musique-se

Paulo Cunha

Os desafinados também têm coração

Tendo em conta a reduzida carga horária semanal da disciplina que ministro, ao longo da minha carreira docente aprendi que para me sentir recompensado já me chega que, no final do 2º ciclo, os alunos cantem afinado os “Parabéns a Você” e o “Hino Nacional”. Sendo duas canções que irão cantar várias vezes pela sua vida fora em contexto de celebração, serão obviamente escrutinados e avaliados pelo seu desempenho interpretativo, tendo especial enfoque na afinação.

Sendo a afinação musical um conceito concreto, definível e avaliável, pode também ser relativizado em função do contexto em que é escutada e sentida. Basta enquadrá-la em culturas musicais diferentes, em ocasiões festivas, em interpretações mais pessoais e até em afinações desadequadas ao registo vocal do intérprete.

Há uns anos, lembro-me que, em tom de brincadeira, um colega meu de lides musicais espalhava aos quatro ventos que a “Afinação é um conceito pequeno-burguês!” Percebo a intenção do mesmo ao fazê-lo, mas não posso deixar de registar que, em contexto social, a desafinação acaba por ter um efeito diferenciador e, de certa forma, negativo, levando assim os pretensos desafinados a sentir a vergonha e receio de cantar em público.

Tal como outros aspetos característicos e identitários de cada um, que não consideramos serem os melhores, a afinação não deve ser avaliada publicamente, sob pena de, perante o estigma e trauma que tal avaliação poderá causar, impedir-nos de trabalhá-la e corrigi-la convenientemente. Aliás, basta pensar na quantidade de amigos nossos que se retraem e se inibem de cantar em público para imaginar qual será a possível causa.

Tomando o “Hino Nacional” e os “Parabéns a Você” como referência, como ambas têm uma extensão melódica que exige alguns saltos melódicos (intervalos) entre as notas mais graves e as mais agudas, é importante salvaguardar a tonalidade em que devemos cantar, adaptando assim a afinação da música ao cantor e não o contrário. Só isso fará uma grande diferença.

Tal como os instrumentos que se afinam antes de serem tocados, também a nossa voz, poderoso instrumento, deverá ser afinada ao longo do seu crescimento e amadurecimento. Para tal, aconselho a audição ativa da música, acompanhando-a com uma interpretação vocal desprendida, descomplexada e prazenteira.
Quem sente a música como uma dádiva da vida não se deve autopenalizar por alguém lhe ter dito que é desafinado. Porque cantar é natural, é bom e faz bem, cantemos a uma só voz: “Se você disser que eu desafino, amor / Saiba que isto em mim provoca imensa dor / Só privilegiados têm ouvido igual ao seu / Eu possuo apenas o que Deus me deu (…)”.