Uma Pequena História da Música [3]

A música religiosa europeia

No início do século X, numerosos manuscritos com uma notação musical primitiva, os neumas, testemunham o desenvolvimento e o estabelecimento de um repertório de cantos litúrgicos comum a todos os territórios da Europa Ocidental: é o nascimento do canto gregoriano.

Os primórdios da música medieval na Europa Ocidental não são muito bem conhecidos, uma vez que só no século X foi criada uma notação musical que permitiria a sua sobrevivência ao longo do tempo. Isto deixa um hiato de quase mil anos que foi descoberto com a ajuda da iconografia e de outras fontes documentais. A partir delas, sabemos que a música medieval era uma herdeira direta da música cristã primitiva.
Desde que o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, no século IV, a Igreja cresceu em influência e ganhou a propriedade de terras e riquezas. Quando o Império Romano caiu sob a invasão dos bárbaros (estrangeiros), estes mosteiros tornaram-se depositários, guardiões e transmissores do património cultural, artístico e musical da Grécia Antiga.

BOÉCIO
Uma das figuras mais interessantes do período acima referido é Severino Boécio (em latim: Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius, (480-524). Boécio compôs um tratado sobre música: De institutione musica, que contém uma descrição pormenorizada da harmonia grega. Este tratado influenciou grande parte do pensamento medieval. O autor divide a música em três géneros: música mundana, música humana e música instrumental.
A música mundana é aquela que não podemos perceber porque somos imperfeitos, é a verdadeira música e as outras são apenas reflexos dela (é o que Pitágoras chamou de "harmonia das esferas").
A música humana é a união harmoniosa da alma com o corpo. É compreendida através do ato de introspeção; qualquer pessoa que nela mergulhe compreende-a, pois é uma harmonia psicofísica.
Finalmente, a música instrumental é aquela que é produzida manualmente, por meio de instrumentos. Para Boécio, ela não tinha valor, pois se tratava apenas de soprar num tubo ou de dedilhar uma corda.

A MONODIA LITÚRGICA
Na tradição dos primeiros cristãos, a música no início da Idade Média estava ao serviço da liturgia. Era uma música monódica vocal, um cantochão destinado a cantar as orações várias vezes ao dia. No entanto, é preciso ter em conta que não existia uma liturgia única, mas que cada região do antigo Império Romano desenvolveu a sua própria liturgia. Entre os repertórios litúrgicos mais interessantes encontram-se o milanês, o hispânico, o galicano e o beneventano.
O repertório milanês ou canto ambrosiano é um dos mais antigos, caracterizado pela assimilação de muitos elementos externos e, formalmente, por longas vocalizações construídas em segmentos escalonados relativamente curtos.
Também de grande antiguidade é o repertório hispânico – por vezes chamado canto moçárabe – que praticava uma liturgia rica com claras influências orientais, especialmente bizantinas, com uma tradição de belos hinos e um estilo musical exuberante.
O repertório ou rito galicano baseava-se numa liturgia com uma retórica abundante e cânticos e hinos que impressionam pela sua amplitude e ornamentação. Na região de Benevento e Nápoles, o repertório beneventano desenvolveu um repertório próprio de grande valor musicológico, ligado a uma liturgia com abundantes características arcaicas.

O CANTO GREGORIANO
Para unificar esta diversidade, o Papa Gregório Magno, no século VII, compilou uma série de cânticos que deram forma a uma liturgia cristã unificada, uma liturgia romana que foi imposta como obrigatória em todos os territórios do Império Carolíngio e, mais tarde, em toda a Europa Ocidental, graças ao apoio das autoridades políticas.
A adoção de um novo antifonário deve ter sido muito complexa, pois implicava a incorporação não só de novos textos litúrgicos, mas também de um vasto repertório de cânticos.
Um dos lugares onde o canto gregoriano demorou mais tempo a impor-se foi na Península Ibérica, onde a tradição do repertório moçárabe, com as suas claras raízes paleocristãs e judaicas, estava profundamente enraizada na tradição hispânica.
Foi durante o Concílio de Burgos, em 1080, que o rei Afonso VI de Castela e Leão proibiu o uso do repertório moçárabe e obrigou-o a ser substituído pelo canto gregoriano.
O canto gregoriano procurava aproximar-nos de Deus através da concentração e da sobriedade, sempre com base nos textos litúrgicos, razão pela qual era cantado em latim. Era um canto vocal, sem instrumentos musicais, e monódico, ou seja, todos cantavam a mesma melodia. Formalmente, baseava-se na utilização de oito escalas musicais diferentes herdadas dos gregos (os modos) e tinha um ritmo livre, reduzido a uma espécie de linha ondulante, leve e muito flexível. Na abadia de Silos, em Burgos, este canto foi levado à sua máxima expressão e pode ser ouvido todos os dias nas celebrações religiosas que se realizam no mosteiro.

Adaptado por Francisco Gil,
A partir de um texto de J. L. Iriarte

Puer natus est nobis - Coro de Monjes del Monasterio de Silos.


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