Uma Pequena História da Música [3]
A música religiosa europeia
- Partilhar 29/07/2023
No início do século X,
numerosos manuscritos com uma notação
musical primitiva, os neumas,
testemunham o desenvolvimento e o
estabelecimento de um repertório de
cantos litúrgicos comum a todos os
territórios da Europa Ocidental: é o
nascimento do canto gregoriano.
Os primórdios
da música medieval na Europa Ocidental
não são muito bem conhecidos, uma vez
que só no século X foi criada uma
notação musical que permitiria a sua
sobrevivência ao longo do tempo. Isto
deixa um hiato de quase mil anos que foi
descoberto com a ajuda da iconografia e
de outras fontes documentais. A partir
delas, sabemos que a música medieval era
uma herdeira direta da música cristã
primitiva.
Desde que o cristianismo
se tornou a religião oficial do Império
Romano, no século IV, a Igreja cresceu
em influência e ganhou a propriedade de
terras e riquezas. Quando o Império
Romano caiu sob a invasão dos bárbaros
(estrangeiros), estes mosteiros
tornaram-se depositários, guardiões e
transmissores do património cultural,
artístico e musical da Grécia Antiga.
BOÉCIO
Uma das figuras mais
interessantes do período acima referido
é Severino Boécio (em latim: Anicius
Manlius Torquatus Severinus Boethius,
(480-524). Boécio compôs um tratado
sobre música: De institutione musica,
que contém uma descrição pormenorizada
da harmonia grega. Este tratado
influenciou grande parte do pensamento
medieval. O autor divide a música em
três géneros: música mundana, música
humana e música instrumental.
A
música mundana é aquela que não podemos
perceber porque somos imperfeitos, é a
verdadeira música e as outras são apenas
reflexos dela (é o que Pitágoras chamou
de "harmonia das esferas").
A música
humana é a união harmoniosa da alma com
o corpo. É compreendida através do ato
de introspeção; qualquer pessoa que nela
mergulhe compreende-a, pois é uma
harmonia psicofísica.
Finalmente, a
música instrumental é aquela que é
produzida manualmente, por meio de
instrumentos. Para Boécio, ela não tinha
valor, pois se tratava apenas de soprar
num tubo ou de dedilhar uma corda.
A MONODIA LITÚRGICA
Na tradição
dos primeiros cristãos, a música no
início da Idade Média estava ao serviço
da liturgia. Era uma música monódica
vocal, um cantochão destinado a cantar
as orações várias vezes ao dia. No
entanto, é preciso ter em conta que não
existia uma liturgia única, mas que cada
região do antigo Império Romano
desenvolveu a sua própria liturgia.
Entre os repertórios litúrgicos mais
interessantes encontram-se o milanês, o
hispânico, o galicano e o beneventano.
O repertório milanês ou canto ambrosiano
é um dos mais antigos, caracterizado
pela assimilação de muitos elementos
externos e, formalmente, por longas
vocalizações construídas em segmentos
escalonados relativamente curtos.
Também de grande antiguidade é o
repertório hispânico – por vezes chamado
canto moçárabe – que praticava uma
liturgia rica com claras influências
orientais, especialmente bizantinas, com
uma tradição de belos hinos e um estilo
musical exuberante.
O repertório ou
rito galicano baseava-se numa liturgia
com uma retórica abundante e cânticos e
hinos que impressionam pela sua
amplitude e ornamentação. Na região de
Benevento e Nápoles, o repertório
beneventano desenvolveu um repertório
próprio de grande valor musicológico,
ligado a uma liturgia com abundantes
características arcaicas.
O CANTO
GREGORIANO
Para unificar esta
diversidade, o Papa Gregório Magno, no
século VII, compilou uma série de
cânticos que deram forma a uma liturgia
cristã unificada, uma liturgia romana
que foi imposta como obrigatória em
todos os territórios do Império
Carolíngio e, mais tarde, em toda a
Europa Ocidental, graças ao apoio das
autoridades políticas.
A adoção de um
novo antifonário deve ter sido muito
complexa, pois implicava a incorporação
não só de novos textos litúrgicos, mas
também de um vasto repertório de
cânticos.
Um dos lugares onde o
canto gregoriano demorou mais tempo a
impor-se foi na Península Ibérica, onde
a tradição do repertório moçárabe, com
as suas claras raízes paleocristãs e
judaicas, estava profundamente enraizada
na tradição hispânica.
Foi durante o
Concílio de Burgos, em 1080, que o rei
Afonso VI de Castela e Leão proibiu o
uso do repertório moçárabe e obrigou-o a
ser substituído pelo canto gregoriano.
O canto gregoriano procurava
aproximar-nos de Deus através da
concentração e da sobriedade, sempre
com base nos textos litúrgicos, razão
pela qual era cantado em latim. Era um
canto vocal, sem instrumentos musicais,
e monódico, ou seja, todos cantavam a
mesma melodia. Formalmente, baseava-se
na utilização de oito escalas musicais
diferentes herdadas dos gregos (os
modos) e tinha um ritmo livre, reduzido
a uma espécie de linha ondulante, leve e
muito flexível. Na abadia de Silos, em
Burgos, este canto foi levado à sua
máxima expressão e pode ser ouvido todos
os dias nas celebrações religiosas que
se realizam no mosteiro.
Adaptado por Francisco Gil,
A partir de um texto de J. L.
Iriarte
Puer natus est nobis - Coro de Monjes del Monasterio de Silos.
Uma Pequena História da Música
- n.50• julho 2023