Paulo Cunha

Musique-se

Paulo Cunha

Esmolar música

Há cerca de dez anos, num tempo em que achei que o que escrevia seria útil e faria alguma diferença, redigi o seguinte desabafo: “A maioria dos músicos profissionais que conheço contam-me que todos os dias ‘chovem’ convites para tocar gratuitamente nos mais variados tipos de eventos de beneficência e solidariedade. Será que quem lhes fornece habitação, alimentação, gás, água, eletricidade, cuidados de saúde e a educação dos filhos também está disposto a fazê-lo gratuitamente em beneficência e solidariedade para com esta classe profissional tão depauperada? Fico sempre com a sensação que os artistas continuam a ser olhados e tratados como os bobos da corte. Será impressão minha?”

Volvida uma década, não me passou a sensação/impressão que motivou o então comentário público. Antes pelo contrário! Com um interregno de quase dois anos provocado pelas medidas de combate à Covid-19, quem das notas musicais tenta criar notas de euro para adquirir o pão para a mesa vê-se na pele de muitos que “fazem das tripas, coração” para que lhes seja reconhecido o trabalho e o mérito próprio e assim lhes proporcionem trabalho.

A criação, produção e interpretação musical, fazendo parte dum trabalho invisível realizado a solo ou em pequenos grupos, não são quantificáveis, qualificáveis nem mensuráveis. Fica assim nas mãos dos produtores e promotores (privados e públicos) dividir e partilhar o seu apoio por quem bem entendem, deixando de fora quem, por qualquer razão, não lhes “caiu no goto”.  

Maioritariamente, é nos centros urbanos, locais onde a concorrência pelas migalhas musicais disponíveis é maior, que se registam fenómenos de autêntico servilismo, bajulação e reverência por parte de alguns músicos aos programadores musicais da região. É um “ver se te avias” para os músicos tentarem conseguir manter-se à tona de água, tal é a perspetiva de se afundarem nas dívidas que a falta de trabalho lhes traz.  

Não deixa, por isso, de ser angustiante e penoso presenciar grandes criadores, produtores e intérpretes musicais a sujeitarem-se e a submeterem-se a um autêntico esmolar por trabalho. Triste sina esta, a de continuar a depender de quem tem o poder de negar a quem trabalhou toda uma vida a oportunidade de mostrar e partilhar a sua arte! Mudam os tempos, mas não muda a atitude de quem, geração após geração, continua a encarar a música apenas como mero entretenimento e veículo promocional.