Musique-se
Paulo Cunha
Esmolar música
- Partilhar 02/02/2022
Há cerca de
dez anos, num tempo em que achei que o
que escrevia seria útil e faria alguma
diferença, redigi o seguinte desabafo:
“A maioria dos músicos profissionais que
conheço contam-me que todos os dias
‘chovem’ convites para tocar
gratuitamente nos mais variados tipos de
eventos de beneficência e solidariedade.
Será que quem lhes fornece habitação,
alimentação, gás, água, eletricidade,
cuidados de saúde e a educação dos
filhos também está disposto a fazê-lo
gratuitamente em beneficência e
solidariedade para com esta classe
profissional tão depauperada? Fico
sempre com a sensação que os artistas
continuam a ser olhados e tratados como
os bobos da corte. Será impressão
minha?”
Volvida uma década, não
me passou a sensação/impressão que
motivou o então comentário público.
Antes pelo contrário! Com um interregno
de quase dois anos provocado pelas
medidas de combate à Covid-19, quem das
notas musicais tenta criar notas de euro
para adquirir o pão para a mesa vê-se na
pele de muitos que “fazem das tripas,
coração” para que lhes seja reconhecido
o trabalho e o mérito próprio e assim
lhes proporcionem trabalho.
A
criação, produção e interpretação
musical, fazendo parte dum trabalho
invisível realizado a solo ou em
pequenos grupos, não são quantificáveis,
qualificáveis nem mensuráveis. Fica
assim nas mãos dos produtores e
promotores (privados e públicos) dividir
e partilhar o seu apoio por quem bem
entendem, deixando de fora quem, por
qualquer razão, não lhes “caiu no goto”.
Maioritariamente, é nos centros
urbanos, locais onde a concorrência
pelas migalhas musicais disponíveis é
maior, que se registam fenómenos de
autêntico servilismo, bajulação e
reverência por parte de alguns músicos
aos programadores musicais da região. É
um “ver se te avias” para os músicos
tentarem conseguir manter-se à tona de
água, tal é a perspetiva de se afundarem
nas dívidas que a falta de trabalho lhes
traz.
Não deixa, por isso, de
ser angustiante e penoso presenciar
grandes criadores, produtores e
intérpretes musicais a sujeitarem-se e a
submeterem-se a um autêntico esmolar por
trabalho. Triste sina esta, a de
continuar a depender de quem tem o poder
de negar a quem trabalhou toda uma vida
a oportunidade de mostrar e partilhar a
sua arte! Mudam os tempos, mas não muda
a atitude de quem, geração após geração,
continua a encarar a música apenas como
mero entretenimento e veículo
promocional.
- n.33 • fevereiro 2022