Fernando Correia

Crónica

Fernando Correia

JOSÉ SARAMAGO: A MEMÓRIA QUE NÃO SE PERDE

A imortalidade conquista-se pela diferença. A memória perpetua-se pelo conteúdo da vida.
José de Sousa Saramago foi um Ser Humano que lutou por si e pelos outros, através da palavra escrita, dos conteúdos corajosos, das lutas internas pela conquista da liberdade de expressão.
Por isso, pelo seu talento, pela prosa pensada e obtida no direito de ser diferente, pela coragem com que deu voz e sentido às palavras mudas, José Saramago foi distinguido em 1998 com o Prémio Nobel da Literatura, depois de ter recebido o Prémio Camões em 1995 e fez com que o menino nascido em Azinhaga do Ribatejo fosse crescendo com a profissão de serralheiro mecânico e se tornasse adulto como um dos maiores escritores de sempre em língua portuguesa.
Cem anos passam sobre o seu nascimento, em 1922, e nesta memória em que se revisita o jornalista, o poeta, o dramaturgo, o ficcionista e o romancista, caem dos sentidos, numa emoção descontrolada e sublime, títulos como: “Os poemas possíveis”, “A Noite”, “Manual de pintura e caligrafia”, “Memorial de Convento”, “ A jangada de pedra”, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, “O ano da morte de Ricardo Reis”, ficando a paixão por Lanzarote como último recado da sua vida cheia de palavras, de mensagens, de sonhos, de premonições, de certezas e de esperança.
Disse José Saramago: “O espelho e os sonhos são coisas semelhantes. É como a imagem do homem diante de si próprio”.
E essa é a imagem de Saramago que resta para o futuro do tempo.
Por ser um fiel seguidor da prosa de Saramago e por me entender nos conceitos das suas obras, relevantes e significativas em cada época da sua criação, sinto alguma dificuldade em distinguir um livro. Mas sendo essa a proposta, não posso deixar de salientar a obra que “acordou” a crítica literária, o poder político e a opinião pública para a verdade do escritor. Refiro–me ao título “O Evangelho segundo Jesus Cristo” que me mostrou um homem diferente e sem medo, uma personalidade literária, um ser humano, na linha de continuidade daquele que descobri na redacção do jornal “A Capital”, quando nela trabalhámos juntos, sendo um incansável lutador pela liberdade.
O romance foi publicado em 1991 e excomungado pelo político Sousa Lara, quando se dizia Secretário de Estado Adjunto da Cultura, que tentou proibir a sua leitura e não o conseguindo retirou-o de uma lista de romances candidatos a um prémio europeu.
Foi o alerta para a atribuição do Prémio Nobel, em 1998, embora já ao lado de outros títulos relevantes e anunciadores da beleza da sua prosa despontuada, mas repleta de ineditismo e de mensagem, que o havia de encaminhar para a imortalidade.
Trata-se de um romance de grande criatividade, imaginativo, revelador, modernista, com uma construção literária invulgar, que deixa ao leitor a capacidade de compreender o Profeta, entendendo o escritor, ou perceber o escritor não entendendo o Profeta.
Os protagonistas da obra são o leitor e Deus, ambos no cumprimento de uma capacidade de julgamento e de premonição que atravessam o livro, através dos seus vinte e três capítulos, e se projectam no Tempo, deixando, por vezes, o Diabo à solta.
Ficará como um Evangelho apócrifo, é verdade. Mas, também, como uma demonstração de enorme talento.
Por outro lado, e embora se tente dizer o contrário, Deus sai deste livro de Saramago com uma auréola de esperança a enfeitar o futuro da humanidade.