Crónica
Fernando Correia
JOSÉ SARAMAGO: A MEMÓRIA QUE NÃO SE PERDE
- Partilhar 11/05/2022
A imortalidade
conquista-se pela diferença. A memória
perpetua-se pelo conteúdo da vida.
José
de Sousa Saramago foi um Ser Humano que
lutou por si e pelos outros, através da
palavra escrita, dos conteúdos corajosos,
das lutas internas pela conquista da
liberdade de expressão.
Por isso, pelo
seu talento, pela prosa pensada e obtida no
direito de ser diferente, pela coragem com
que deu voz e sentido às palavras mudas,
José Saramago foi distinguido em 1998 com o
Prémio Nobel da Literatura, depois de ter
recebido o Prémio Camões em 1995 e fez com
que o menino nascido em Azinhaga do Ribatejo
fosse crescendo com a profissão de
serralheiro mecânico e se tornasse adulto
como um dos maiores escritores de sempre em
língua portuguesa.
Cem anos passam sobre
o seu nascimento, em 1922, e nesta memória
em que se revisita o jornalista, o poeta, o
dramaturgo, o ficcionista e o romancista,
caem dos sentidos, numa emoção descontrolada
e sublime, títulos como: “Os poemas
possíveis”, “A Noite”, “Manual de pintura e
caligrafia”, “Memorial de Convento”, “ A
jangada de pedra”, “O Evangelho segundo
Jesus Cristo”, “O ano da morte de Ricardo
Reis”, ficando a paixão por Lanzarote como
último recado da sua vida cheia de palavras,
de mensagens, de sonhos, de premonições, de
certezas e de esperança.
Disse José
Saramago: “O espelho e os sonhos são coisas
semelhantes. É como a imagem do homem diante
de si próprio”.
E essa é a imagem de
Saramago que resta para o futuro do tempo.
Por ser um fiel seguidor da prosa de
Saramago e por me entender nos conceitos das
suas obras, relevantes e significativas em
cada época da sua criação, sinto alguma
dificuldade em distinguir um livro. Mas
sendo essa a proposta, não posso deixar de
salientar a obra que “acordou” a crítica
literária, o poder político e a opinião
pública para a verdade do escritor. Refiro–me ao título “O Evangelho segundo Jesus
Cristo” que me mostrou um homem diferente e
sem medo, uma personalidade literária, um
ser humano, na linha de continuidade daquele
que descobri na redacção do jornal “A
Capital”, quando nela trabalhámos juntos,
sendo um incansável lutador pela liberdade.
O romance foi publicado em 1991 e
excomungado pelo político Sousa Lara, quando
se dizia Secretário de Estado Adjunto da
Cultura, que tentou proibir a sua leitura e
não o conseguindo retirou-o de uma lista
de romances candidatos a um prémio europeu.
Foi o alerta para a atribuição do Prémio
Nobel, em 1998, embora já ao lado de outros
títulos relevantes e anunciadores da beleza
da sua prosa despontuada, mas repleta de
ineditismo e de mensagem, que o havia de
encaminhar para a imortalidade.
Trata-se de um romance de grande criatividade,
imaginativo, revelador, modernista, com uma
construção literária invulgar, que deixa ao
leitor a capacidade de compreender o
Profeta, entendendo o escritor, ou perceber
o escritor não entendendo o Profeta.
Os
protagonistas da obra são o leitor e Deus,
ambos no cumprimento de uma capacidade de
julgamento e de premonição que atravessam o
livro, através dos seus vinte e três
capítulos, e se projectam no Tempo,
deixando, por vezes, o Diabo à solta.
Ficará como um Evangelho apócrifo, é
verdade. Mas, também, como uma demonstração
de enorme talento.
Por outro lado, e
embora se tente dizer o contrário, Deus sai
deste livro de Saramago com uma auréola de
esperança a enfeitar o futuro da humanidade.
- n.36 • maio 2022