Insólita Viagem
José Manuel Simões
No reino dos sentidos
- Partilhar 17/12/2022
Em Marraquexe, a cidade imperial que na
antiguidade deu nome a Marrocos, convergem
nómadas e montanheses, mulheres vindas do
Anti-Atlas, vendedores de porções mais ou
menos mágicas, domadores de serpentes,
domesticadores de macacos, arrancadores de
dentes. Um verdadeiro espectáculo de cor e
exotismo.
José Manuel Simões
“Comei e bebei; que vos faça bom
proveito. Sentai-vos em fila sobre os
almofadões”, recebe-nos Hayat, tímida, olhos
pretos como carvão, mãos decoradas com hena
em motivos que começam com uma simples
figura geométrica, em círculo, bordada de
flores que formam um colorido padrão “para
dar sorte”. Aponta delicadamente um canto do
restaurante e afirma convicta: “É assim que
nos ensina o corão. A arte de bem receber é
um dever sagrado e um código de honra para
os marroquinos.”
Hayat parece ser,
como o seu povo, determinada e crente.
Inchalah - oxalá, se Deus quiser - é a
palavra que invariavelmente usa para
concluir as frases que expressa em francês
simplificado. Inchalah, a palavra mais
ouvida neste país profundamente ligado aos
valores sagrados da monarquia e da
integridade territorial.
Marrocos é
um país em mudança gradual. Um país de
jovens virado para o futuro. Dotado de uma
invulgar abertura geográfica que favorece a
unidade nacional e o reforço das suas
especificidades, é um privilegiado
testemunho da história da humanidade. Um
marco menos simbólico, porém, que o
islamismo, religião que é um dos pilares do
sistema sócio-político local.
Convivem as raças berbere, tuareg e
negróide. O traje tradicional, djellaba e
kaftan, mistura-se com as vestes regionais
que variam consoante as tribos. A cultura
árabe, islâmica na sua variante malgrebe, a
arquitectura de adobe, o Mediterrâneo
ocidental e o Atlântico, os três mil
quilómetros de costa, definem um país
heterogéneo e exótico.
O interior,
com os seus maciços montanhosos, filadeiros
estreitos e vales profundos, comanda a vida
da maior parte da população que, sobretudo a
mais idosa, é regida pelas normas do corão.
Mantêm-se as tradições seculares,
reflectidas nas medinas onde se testemunha o
antigo modo de vida magrebe. Costumes
enraizados coexistem, todavia, com a herança
ocidental: calor e frio, secas e inundações,
planícies e cordilheiras, penhascos e
bosques, tempestades de areia e de neve.
Desde o Estreito de Gibraltar até à
Mauritânia, Marrocos é um país surpreendente
que toca o reino dos sentidos, com quatro
cadeias montanhosas e rios bordados por
franjas verdejantes até às portas do deserto
cruzando gargantas.
Na cidade
imperial
Vindo da costa,
para chegar a Marraquexe, passa-se por uma
zona desértica onde se encontram cabras a
pastar em cima de argânias – árvores que só
existem em Marrocos e que dão uma noz da
qual se extrai um óleo alimentar –, algumas
com mais de mil anos. As cabras são às
dezenas, pretas, brancas, amarelas, cada uma
no seu ramo. “Elas adoram estas folhas e não
hesitam em trepar-lhes até ao cimo para
saboreá-las”, conta um jovem que procura
vender o óleo e que tenta a todo o custo
beijar uma turista ocidental.
Na
cidade imperial que na antiguidade deu nome
a Marrocos, berberes misturam-se com árabes,
convergem nómadas e montanheses, mulheres
vindas do Anti-Atlas vendem cestos,
narradores de histórias, músicos,
bailarinos, escritores públicos, vendedores
de porções mais ou menos mágicas,
curandeiros, domadores de serpentes,
aguadeiros, acrobatas, domesticadores de
macacos, comedores de fogo, arrancadores de
dentes, misturam-se num espectáculo de cor e
exotismo. Estamos na praça Jamaa Al Fna, a
maior curiosidade turística local, centro de
vida urbana nas suas múltiplas manifestações
de gente entusiasmada e participante.
Cenário de conto de fadas desperto todas as
manhãs pela chamada do altifalante instalada
no alto dos 70 metros da koutoubia, farol
espiritual da cidade. Nas sinuosas ruas da
medina, homens de passo apressado dirigem-se
à mesquita de Ben Youssef, erguida junto à
Medersa, a gigantesca Escola Coránica
fundada pelo sultão Abou-el-Hassan,
1331-1349, e um dos mais importantes
monumentos locais.
Surpreendem as
parelhas de cavalos puxando charretes com
turistas de todo o Mundo. Um dos cavalos que
puxa a nossa carroça é um puro sangue árabe,
pleno de elegância e um passado rico em
nobres conquistas. Em direcção à Avenida
Mohamed V, uma das maiores da cidade,
passa-se pela koutovia, construção do século
XII, e chega-se às portas da cidade,
castanha, movimentada, viva, onde o antigo e
o moderno se cruzam em harmonia.
Prazeres dos olhos
Caminhar nas medinas é uma curiosa
experiência para os sentidos. Sons, cores,
mulheres berberes vestidas com takcheta,
cobertas com djellaba e foulard da mesma
cor, de cócoras vendendo pão árabe, gente
apelando para que se visitem as suas lojas:
“Entrem só pelo prazer dos olhos”, dizem com
veemência. No interior, roupas e artesanato
árabe-muçulmano ou mourisco, podendo
observar-se o cuidadoso trabalho dos
artesãos de couro cosendo segundo métodos
ancestrais.
A principal atracção
turística da cidade fica no souk Elbahja,
situado no coração da medina, sendo o mais
extenso do Magrebe, com 600 hectares. Neste
espaço, classificado como património da
humanidade, misturam-se ruas labirínticas,
odores a açafrão, cominho, pimenta negra,
gengibre, cravo e flores de laranjeira com
tapetes berberes e trabalhos em couro,
barro, latoaria, cestos, jóias, bordados,
objectos de quinquilharia, babuchas, balghas
- sapatos típicos marroquinos -, meias de
lã, malas coloridas dos tuaregues, música
constante de tambores e flautas.
Antes de utilizar os dirhams, moeda
marroquina equivalente a cerca de 10
cêntimos, é indispensável que se regateiem
os preços. O guia, invariavelmente chamado
Mustafá e invariavelmente vestido com um
tarbouch na cabeça e um djellaba de linho,
algodão ou cetim, ajuda na orientação por
entre o labiríntico souk. Depois de entrar
numa loja é difícil sair sem comprar nada.
Servem-nos um chá de hortelã e menta,
mostram-nos os tapetes um a um, insistem na
venda. Ao voltar para as ruas do souk, se se
sentir perdido, o melhor é perguntar por uma
das inúmeras saídas que vão dar a Jemmaa el
Fna, a já mencionada mítica praça da capital
berbere e principal ponto de encontro da
cidade. No meio da medina passa-se por
esplanadas de cafés míticos, como o France e
o Argana, ou pátios de restaurantes célebres
como o Yocout e o Ryad Tamsna, locais de
eleição e monumentos que testemunham a
história de um povo.
No centro da
medina o primeiro monumento que se vislumbra
é a koutoubia, ex-libris local que, graças
aos seus 77 metros de altura, serve como
ponto de referência. Perto, o palácio da
Bahia, construído no fim do século XIX -
protótipo do palácio árabe - e o El Badi,
provavelmente o mais belo palácio do mundo
muçulmano, edificado entre 1577 e 1593 a
mando de Ahmed el Mansour após a vitória
sobre os portugueses em 1577; hoje em ruínas
que servem de enquadramento ao festival
folclórico realizado anualmente em Maio e
Junho.
Paraísos botânicos
Os jardins de Menara, com um monumento
com tecto piramidal reflectido nas águas
paradas de um tanque com 200 por 150 metros,
e os jardins de Majorelle, onde abundam
bambus gigantes e papiros, são dois locais a
visitar. Este último, criado em 1924 pelo
pintor francês Jacques Majorelle, é um
paraíso botânico às portas do deserto, sendo
o seu actual proprietário o costureiro Yves
Saint Laurent.
Conheça ainda a
palmerie de Marraquexe, a cerca de 10
quilómetros da medina, imenso oásis tropical
com cerca de 13 mil hectares de palmeiras
irrigadas pelos khettara, engenhoso sistema
de captação de água de poços e cisternas,
alimentadas por um outro igualmente
engenhoso sistema de galerias subterrâneas.
As avenidas são bordadas por flores,
os espaços verdes bem cuidados, as ruas
limpas como em nenhuma outra cidade do país,
a muralha cinturada de rosas, a luminosidade
invulgarmente bela.
Com estilo,
elegância e personalidade, o hotel Mamounia
merece, no mínimo, que se respire a sua
arte, o conforto e o luxo circundante. À
entrada, um porteiro fardado a rigor,
vitrais, fontes, pedra talhada. Ao lado, um
esplendoroso casino.
Pudicos
e conservadores
Apesar de
apenas 1,6% da população total aceder à
Internet - nos Estados Unidos a percentagem
é de 59% - proliferam os cyber cafés,
dirigidos essencialmente aos turistas. No
recomendado Albergue Ali - onde encontrei,
deitado no terraço por debaixo das estrelas,
um australiano recém viajado por Portugal -
conheci Hadji que, aparentemente sem motivo,
exclamou: “vocês, estrangeiros, não nos
compreendem. Não compreendem que nós somos
pudicos e conservadores”. E porque é que me
dizes isso?, indaguei. “Porque está lá fora
uma turista sentada numa cadeira a apanhar
sol com uma mini-saia e isso, aos nossos
olhos, não é correcto”. Perante a minha
curiosidade, prossegue: “Há muitos
estrangeiros ricos que chegam aqui e se
instalam. Compram as nossas casas
tradicionais e nem sequer se dão ao trabalho
de compreender a nossa cultura e a nossa
maneira de ser. Para além disso têm um nível
de vida que corresponde a um verdadeiro
insulto à miséria das gentes pequenas que
habitam na medina. O fenómeno está a chegar
aos limites e a prová-lo estão os cada vez
maiores incidentes entre os residentes
locais e esses novos emigrantes”. Das 40 mil
casas tradicionais situadas no centro da
cidade, classificada de património da
humanidade pela Unesco, 406, ou seja 1%, são
propriedade de não marroquinos.
O
comércio, o turismo e a cultura, prosperam
na cidade, graças à sua privilegiada
situação geográfica, ponto de chegada e
partida de estradas, confluência de norte e
sul, deserto e oceano, riqueza histórica.
De madrugada ouve-se, cinco vezes quase
seguidas, a chamada para a reza sagrada em
nome de Allah. Infelizmente, o acesso às
mesquitas - com excepção para o Mausoléu de
Mohammed V, em Rabbat, o Mausoléu de Moulay
Ismail, em Meknès, o Mausoléu de Moulay Ali
Chérif, em Rissani e a Mesquita de Hassan
II, em Casablanca - é proibido aos não
muçulmanos. No entanto, e apesar de o
islamismo ser a religião oficial, coexiste
com outras confissões e credos, até porque
isso está garantido na constituição. A vida
religiosa segue, todavia, o calendário
muçulmano.
De alguns pontos da
cidade vêem-se as montanhas do Alto Atlas
com as suas altivas silhuetas onde se
pratica esqui, de Novembro a Maio. O ponto
culminante deste maciço, o Toubkal, tem
4.176 metros de altitude.
Partimos em
direcção a Sidi-Mokhtar, região desértica,
onde se encontra um oásis junto a um rio
completamente seco. Até Âit-Ourier, rumo a
Taddert, já no deserto, percorrem-se
montanhas cobertas de pedras com coloridos
cristais, aldeias minúsculas com casas
feitas da mesma pedra amarela, enormes
maciços, íngremes, e o Atlas, imponente e
dócil, lembrando praças enfeitiçadas com as
suas torres hirtas afagadas pelo céu.
- n.43 • dezembro 2022