José Maria de Oliveira

Letras e Traços

José Maria de Oliveira

Alvorada I

A cigarra acordou na noite, estonteada e trémula, desdobrou nervosamente as asas, arrebitou as antenas relaxadas e começou a cantar, como se tivesse “pilhas novas” (ainda o galo estava no primeiro sono) uma inédita melodia que nunca cantara. À volta toda a natureza diurna, dormia à exceção dum grilo embriagado pelo calor e pelo odor que transpirava no tufo de ervas húmidas onde se acoitara, depois da última serenata...
Nos formigueiros silenciosos, apenas os guardas faziam, à paisana, a ronda discretamente ensonados. Da espessa folhagem das árvores circundantes podia ouvir-se o estrilho do ressonar suave da passarada stressada de mais uma jornada de mais umas voltinhas…
A noite ia alta, (estava mesmo lá em cima) a brisa espraiava-se suavemente sob as cricas nebuladas dos montes trazendo de vez em quando um sopro de frescura ao vale adormecido.
Voando para uma idosa pedra, jacente entre duas margaridas, a cigarra olhou desassombrada para a noite e desatou a cantar com uma tonalidade. Um timbre e uma altura de som como se tivesse a suportar-lhe a voz todos os microfones de feiras e concertos rock do mundo!!!
No céu as estrelas piscavam tremulamente a sua luz difusa espalhadas `há milénios no lençol da noite pareciam dormir um sono eterno.
Pouco a pouco, o canto frenético e contínuo da cigarra, aquela cigarra (sabe-se lá porquê?!) começou a ouvir-se em toda a terra. O primeiro a dar-se conta do acontecimento foi o grilo que esfregando os olhos, sacudiu a grila, que dormia ao lado e começou a cantar com ele, depois outras vozes – milhões de vozes – foram-se elevando no espaço, em espiral de olímpica! As cigarras acordaram os grilos, as abelhas mais distantes, entravam também naquele coral, banhado pela lua cheia, que despertara sorridente por detrás dum outeiro, as abelhas acordavam, os pássaros, os pássaros, os pequenos mamíferos, os pequenos repteis, os médios herbívoros, os grandes batráquios, os grandes batráquios os homens, as mulheres as crianças …cães e gatos! Todo o mundo acordou cantando, estrondosamente, sabe-se lá porque…
Até os ursos, que tinham um sono pesado e sepultado na neve, despertaram! Sob as pétalas adormecidas das pequeninas plantas caíam agora as últimas gotas de orvalho da noite quente e brilhante, que ia alimentar a terra ressequida. O orvalho não participou na epidemia orfeónica!
No diáfano véu celeste a aurora começava a despontar, terna e fresca, mas mais irisada e pendurada na atmosfera envolvente foi banhando tudo num trémulo pincelar de miríades de cores; o canto agora era mais firme, cheio dos estranhos requebros – quase que se via! O horizonte de lés a lés era um banho infinito de luz e som. Tudo era êxtase. Era a nova canção da madrugada, o grato reconhecimento da natureza ao pai solar que acabava de aparecer; maciço, que também ele estremunhou cintilante espalhou o olhar em redor e deu início ao dia, numa outra encarnação!
Um novo paradigma abraçou de novo a terra, o grande rei, senhor da natureza compensava a frescura do sono da noite, com o calor dos seus dardos alegres, brilhantes e rebrilhantes de amor e harmonia.
Só formigas, essas trabalhadoras compulsivas, e obsessivamente stressadas, amigas de dias de 48 horas e odiosas de férias, misteriosamente, naquele dia continuavam a dormir…
Há quem diga que o trabalho mata e foi a maior praga que Deus rogou à natureza!
Era tempo de “cigarras” … a Natureza entrava definitivamente de férias.
Naquele dia o Sol sabe-se lá porquê, acordou quadrado e vestido com várias cores…