Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
Uma vida de riquezas
- Partilhar 12/12/2020
Há
incontáveis motivos pelos quais escrevemos
sobre nós mesmos. Às vezes, para
compreendermos o que nos aconteceu e nos
libertarmos do peso do passado, às vezes,
apenas para relatar fatos interessantes e
incríveis que vivemos ao longo dos anos. No
início da empreitada de escrever sobre minha
infância, eu não sabia direito o motivo que
me arrastou para esta tarefa inconveniente
de cavar um passado que parecia tranquilo e
serenamente enterrado na lápide do tempo. À
medida em que a narrativa avançava, eu fui
percebendo que escrevi principalmente para
buscar conhecer melhor aqueles com quem
convivi nos meus primeiros anos de vida. E,
ao conhecê-los, eu ampliei o conhecimento
sobre mim mesmo.
Mas
eu encontrei mais do que autoconhecimento.
Durante muito tempo, por exemplo, eu achava
que minha mãe era a principal vilã da minha
história. Eu a culpava pela vida miserável
que tive que enfrentar assim que nasci lá no
bordel da Dona Tonica, em 1968, na cidade de
Anápolis, no interior de Goiás. Então,
enquanto escrevia, foi ficando muito mais
claro que minha mãe era, na verdade, a
heroína do filme da minha vida. Em relação
aos meus tios, por exemplo, que também
tiveram papel importante no roteiro da minha
existência, eu troquei o desprezo pela a
admiração.
Sim,
chorei muito enquanto construía cada
parágrafo! E ao final, chorei mais ainda!
Chorei porque, ao contrário do que
imaginava, eu nunca estive só! A minha
infância não foi pautada apenas pelos
abandonos que eu insistia em ver. Foi e tem
sido uma vida de pequenos e grandes
milagres! Se fui e ainda sou digno de
receber tantos milagres, então, é porque
tenho uma vida abençoada! E, na minha visão
hoje, isso fez e faz valer a pena todos os
obstáculos pelos quais passei e passo.
Hoje
percebo claramente que a maior solidão que
um ser humano pode enfrentar é a sua própria
incapacidade de enxergar os pequenos e
grandes milagres que o cerca em seu dia a
dia. E, uma vez que passamos a vê-los, a
vida deixa de ser apenas suportável e
insuportável e vira uma prolongada infância.
Quem disse que o deslumbramento diante do
mundo, próprio das crianças, não pode ser
resgatado na vida adulta? Será que tudo tem
que parecer pesado e dramático? Será que a
vida é apenas correr atrás de um salário
medíocre ao final do mês e pagar contas e
mais contas? Será que é só sonhar com uma
aposentadoria que talvez nunca chegue?
Então, construir esta narrativa me ajudou a
ficar mais atento a detalhes sutis da minha
existência, que o meu lado de homem adulto
de 50 anos nem sempre presta a devida
atenção.
O adulto resgatou o menino e o menino resgatou o adulto! Foi este o principal efeito desta escrita sobre mim. Presente, passado e futuro se fundiram nesta busca que é a maior fortuna que eu poderia almejar: ter uma existência em que eu perceba os pequenos e grandes milagres que me acontecem diariamente! Obrigado mãe! Obrigado Deus! Obrigado Universo! Eu, que na infância sonhava ser rico, conquistei uma vida de riquezas!
- n.19 • dezembro 2020