Afonso Dias

reflexões in verso

Afonso Dias

romance de abril

romance de abril

cheguei nu e enfezado
ao meu ponto de partida
já gambuzinos planavam
a falésia de peniche
e o big brother ardia
no forno do ali babá
nem o orwell sonhava
com a maldade que viria
setenta anos após
com a TV da maminha
e bicep afiambrado
na basófia tatuada 

(e já me foge a ideia
que me surgiu à bocado) 

nas vésperas rezava o terço
a avó noiva beata
e a cantilena das velhas
cruzes e credos ao alto
zunia pelas orelhas
do cachopo atarantado
aspergido de água benta
e de incenso fumegado 

e já pingava o almesse
dos beiços do requeijão 

o xixi era lá fora
no cerrado ao pé das cabras
e a geada mordia
no fundo do pé descalço 

vestida a camisa breve
tal qual reclama a verdura
já o polícia sinaleiro
num flamengo aprumado
bailava no areeiro
com luvas de casamento 

e o salazar sempre velho
era o alecrim aos molhos
com cheiro a naftalina
e uma sombra de ferros
acesos lá na lonjura
abria sulcos no olhar
das mães frieza e susto 

(as miúdas eram giras
e a gente bem as mirava
com fartura de sorrisos
e acenos de ternura
na liberdade pequena) 

faziam tanta impressão
os tempos de há tanto tempo
qu’inda bem que já lá vão 

velhice é só o que fica
a entupir a memória
do luar amordaçado
e da morte temporã
soprada a ventos do sul 

e o pouco comer que tinha
nesses tempos dum cabrão 

(e um medo redondo vinha
pala incerteza da noite
sem margens e sem veredas) 

há já quarenta e sete anos
que deixámos essa vida 

poetas voaram leves
novos refrões afinaram
novas discórdias floriram
a surpresa alagou tudo 

e é assim que vamos indo 

com cuidado 

10.4.2021