romance de abril
cheguei nu e
enfezado
ao meu ponto de partida
já gambuzinos planavam
a falésia de peniche
e o big brother ardia
no forno do ali babá
nem o orwell sonhava
com a maldade que viria
setenta anos após
com a TV da maminha
e bicep afiambrado
na basófia tatuada
(e já me foge a
ideia
que me surgiu à bocado)
nas vésperas
rezava o terço
a avó noiva beata
e a cantilena das velhas
cruzes e credos ao alto
zunia pelas orelhas
do cachopo atarantado
aspergido de água benta
e de incenso fumegado
e já pingava o
almesse
dos beiços do requeijão
o xixi era lá
fora
no cerrado ao pé das cabras
e a geada mordia
no fundo do pé descalço
vestida a camisa
breve
tal qual reclama a verdura
já o polícia sinaleiro
num flamengo aprumado
bailava no areeiro
com luvas de casamento
e o salazar
sempre velho
era o alecrim aos molhos
com cheiro a naftalina
e uma sombra de ferros
acesos lá na lonjura
abria sulcos no olhar
das mães frieza e susto
(as miúdas eram
giras
e a gente bem as mirava
com fartura de sorrisos
e acenos de ternura
na liberdade pequena)
faziam tanta
impressão
os tempos de há tanto tempo
qu’inda bem que já lá vão
velhice é só o
que fica
a entupir a memória
do luar amordaçado
e da morte temporã
soprada a ventos do sul
e o pouco comer
que tinha
nesses tempos dum cabrão
(e um medo
redondo vinha
pala incerteza da noite
sem margens e sem veredas)
há já quarenta e
sete anos
que deixámos essa vida
poetas voaram
leves
novos refrões afinaram
novas discórdias floriram
a surpresa alagou tudo
e é assim que
vamos indo
com cuidado
10.4.2021