O bom e o bonito
José Júlio Sardinheiro
e-Blue indo
Conheço-me desde
sempre a gostar das palavras. Desde pequeno
que brinco com elas, mesmo quando ainda não
sabia que os sons com que se diziam as
coisas e que me saíam da boca se chamavam
palavras. Lembro-me da palavra abóbora
(talvez dissesse “abóbra”, mas é exactamente
o mesmo) e como brincava com ela até a
transformar noutro som só meu. E lembro-me
de abóbora porque havia no quintal onde
brincava sozinho um monte de abóboras com
quem dialogava e que era uma verdadeira
plateia quando cantava para uma batata
espetada numa cana a fazer de microfone.
Sempre brinquei com as palavras.
Havia na família, do
lado do meu pai, uma certa tradição de fazer
trocadilhos, rimas e insinuações
pantomineiras e, quando se juntavam em
festas ou casamentos aquilo era um jorrar de
ditos e apólogos ou “vivas” aos donos da
casa, à cozinheira, aos noivos… Fascinava-me
a agilidade verbal (e verval) e a maior
parte das vezes nem percebia porque todos se
riam. Aquilo ficava-me na cabeça e depois
reinventava esses diálogos mesmo sem lhes
apanhar qualquer sentido. Era o som das
palavras, os ritmos, as inflexões, as
cacafonias… Era como se fosse uma outra
língua.
Gosto muito da nossa
língua. Penso que não deve ser diferente
para outros falantes naturais de outras
línguas, porque é na nossa língua-mãe que
melhor encontramos como nos exprimir. Um dia
encontrei um colega espanhol, da Andaluzia,
que me contou que a mulher, nascida no País
Basco de lá saiu muito pequena e nunca terá
aprendido a falar a língua basca (euskara)
no seu curto convívio com ela. Acontece que
quando nasceu o seu primeiro filho, naquele
primeiro momento mágico em que se olham, as
palavras de ternura e felicidade que lhe
saíram foram em basco. Deve ser por isso que
se chama “língua-mãe”.
Nas últimas duas
décadas e a propósito de uma salganhada a
que chamam Acordo Ortográfico vi surgir
paixões inflamadas e doridas de muita gente
a reclamar-se – muitas vezes num português
sofrível ou mesmo mau – defensores da língua
e da sua pureza contra os ataques vândalos e
sei lá que mais. Declaro aqui que não uso o
dito “acordo”, mas que isso não é por razões
linguísticas – a escrita é apenas uma
convenção gráfica com que representamos a
fala – mas por razões políticas – o dito
acordo não resolve problema nenhum, veio
complicar o que estava mais ou menos estável
e foi uma ilusão de um negócio internacional
que saiu furado. Posto isso, sou contra e
escrevo como me apetece e violo a regra
actual e, quando calha e me dá jeito, violo
também a antiga.
É claro que as
línguas evoluem, incorporam todos os dias
elementos de outras línguas e isso vai
acontecendo cada vez mais e só pode ser bom
para a comunicação entre os povos. O ideal
seria cada um poder exprimir-se na sua
língua natural e ser entendido por outros
que fariam o mesmo. Há cerca de vinte anos
participei num acontecimento no Parlamento
Europeu e assisti a algo parecido. Alguém
faz uma comunicação em francês e na
discussão há perguntas em inglês com
respostas que começam em inglês e acabam em
francês… Lembro-me de ter pensado como seria
bom que todo o mundo se entendesse assim.
Não faço ideia de
quantas línguas se fala no mundo inteiro.
Serão centenas, milhares… Há países em que
se falam várias línguas diferentes, a ponto
de ser necessária uma outra língua para
comunicar. O inglês impôs-se mais ou menos
como língua-franca e cumpre muitas vezes
essa função. Mas não é o inglês oficial, é o
broken english
ou mesmo bad
english que se
ouve e se lê por todo o lado, incluindo
contextos académicos.
Estou convicto de que
dentro de pouco tempo o mundo falará uma
espécie de crioulo, com base neste inglês
deturpado onde se vão incorporando termos e
expressões das mais diferentes línguas do
mundo.
Há cerca de vinte
cinco anos, no Livro Branco sobre a Educação
e a Formação: ensinar e aprender rumo à
sociedade cognitiva, já se preconizava como
elementar o domínio de três línguas
europeias, ou seja, a natural e mais duas
outras. Não sei bem como estamos, mas pelo
que me é dado a ver nos mais jovens o inglês
é língua comum e é muito interessante ver
como o programa ERASMUS fez mais pela
construção europeia do que tudo o resto. Até
o conceito de língua-materna vai mudar. Já
em muitos sítios, a língua que se fala em
casa é uma terceira língua que não é a do
pai nem a da mãe e também não é a que se
fala na escola.
Uma visão moderna da
Babel, uma Nova Babel para um novo
entendimento do mundo. Não para chegar aos
céus, mas para chegar à paz. Desejo.
- n.7• dezembro 2019