Afonso Dias

reflexões in verso

Afonso Dias

poemas da pandemia

poemas da pandemia - III

este nevoeiro
com fantasmas e mistério feio
empurra-me para o campo
não para o meu campo
que já não tenho
nem há
mas para o campo grande e só
que avisto
do terraço das esquivas

é certo que no campo
não mora o veneno
das estirpes
e se pode saborear o brilho do silêncio
sem discursos e estatística

mas não tem meninos
o campo
nem a algazarra fresca
das corridas
com arranhões no joelho
e mães a embalar
o choro que apetece

mas pode ser que o nevoeiro de veneno
que escorraça a ternura
e o petisco
me venha a devolver o campo
o meu campo
do tempo
com tempo
e com amoras
e mistérios
e sustos
e com o pai a morar nos abrigos

pode ser…

18.3.2020


poemas da pandemia - IV

hoje dei por mim a pensar desertos
(por causa da sofia costa)
e fiquei feliz
o que é esquisito nesta modorra
cinzenta e insalubre

acontece que
a geografia perfeita dos desertos
é uma exactidão de hora e de lugar
uma disciplina do silêncio
integral e puro

e por isso são respeitáveis
os desertos
por isso e pela grandeza calma
o recolhimento de templo
a veneração saboreada
da lentidão
sensual e sábia

a sabedoria
é uma arquitetura
demorada e segura
e é na  leveza da demora
que se aprimoram
a edificação dos sonhos
a cozinha e o amor

na calma vénia dos sabores

esta pausada inquietação
desperta
uma poesia serena

mas aqui o deserto não é real
aqui há pessoas
e aqui faltam as pessoas

nesta paisagem calada
os pombos 

e as ervas à solta no quintal
são a liberdade visível
e desobediente
às leis condicionais

indiferentes as ervas
às gavetas do articulado

entretanto  às sete e meia da manhã
há um só homem
no largo do mercado
aqui onde não é deserto

estranha felicidade esta
que me chegou
com o pensamento nos desertos
(por culpa da sofia costa)

aguardo
urgentes enxurradas de riso
à solta

19.3.2020