poemas da
pandemia - III
este nevoeiro
com fantasmas e mistério feio
empurra-me para o campo
não para o meu campo
que já não tenho
nem há
mas para o campo grande e só
que avisto
do terraço das esquivas
é certo que no campo
não mora o veneno
das estirpes
e se pode saborear o brilho do silêncio
sem discursos e estatística
mas não tem meninos
o campo
nem a algazarra fresca
das corridas
com arranhões no joelho
e mães a embalar
o choro que apetece
mas pode ser que o nevoeiro de veneno
que escorraça a ternura
e o petisco
me venha a devolver o campo
o meu campo
do tempo
com tempo
e com amoras
e mistérios
e sustos
e com o pai a morar nos abrigos
pode ser…
18.3.2020
poemas
da pandemia - IV
hoje dei por
mim a pensar desertos
(por causa da sofia costa)
e fiquei feliz
o que é esquisito nesta modorra
cinzenta e insalubre
acontece que
a geografia perfeita dos desertos
é uma exactidão de hora e de lugar
uma disciplina do silêncio
integral e puro
e por isso são respeitáveis
os desertos
por isso e pela grandeza calma
o recolhimento de templo
a veneração saboreada
da lentidão
sensual e sábia
a sabedoria
é uma arquitetura
demorada e segura
e é na leveza da demora
que se aprimoram
a edificação dos sonhos
a cozinha e o amor
na calma vénia dos sabores
esta pausada inquietação
desperta
uma poesia serena
mas aqui o deserto não é real
aqui há pessoas
e aqui faltam as pessoas
nesta paisagem calada
os pombos
e as ervas à
solta no quintal
são a liberdade visível
e desobediente
às leis condicionais
indiferentes as ervas
às gavetas do articulado
entretanto às sete e meia da manhã
há um só homem
no largo do mercado
aqui onde não é deserto
estranha felicidade esta
que me chegou
com o pensamento nos desertos
(por culpa da sofia costa)
aguardo
urgentes enxurradas de riso
à solta
19.3.2020