
Espelho Cinemático
Daniela Graça
Pieces of a Woman (2020)
- Partilhar 01/02/2021

Pieces of a Woman,
realizado por Kornél Mundruczó (Deus
Branco,
Johanna,
A Lua de
Júpiter),
estreou no 77º Festival de Veneza. Em
dezembro, o filme foi adicionado ao catálogo
da Netflix, sendo uma das estreias mais
antecipadas desse mês.
O filme conta com
Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Sarah Snook,
Ellen Burstyn e Benny Safdie no elenco.
Pieces
of a Woman
é um filme incontornavelmente pesado que
retrata as consequências da perda de um bebé
recém-nascido durante o parto e como esta
tragédia afeta uma família. Esta é uma
temática que raramente é o foco de um filme,
abortos espontâneos, nados-mortos e mortes
durante o parto são, por norma, uma
reviravolta e não o centro da narrativa.
Isto é compreensível uma vez que é
intimidante abordar e retratar a dor
indiscritível, e raramente discutida
publicamente, de perder um filho desta
forma, mas
Pieces of a Woman
enfrenta esta dor sem nunca fechar os olhos
à crueldade das sequelas.
O filme tem uma
duração de duas horas, mas o título só surge
30 minutos depois do início após um longo
plano-sequência, íntimo e vulnerável, do
parto extenuante que culminou na morte da
primeira filha de Martha (Kirby) e Sean
(Labeouf). Esta sequência é o ato mais forte
e exemplar do filme, sempre intensa,
oscilando entre ansiedade e esperança,
espelhando a intimidade e amor do casal e
terminando no desfecho mais temido. O resto
do filme consiste na junção de retalhos
focados na Martha demarcados por um vazio,
silêncio e distância palpáveis. Dias
tornam-se meses e acompanhamos Martha,
contida, letárgica e distante, no fundo,
emocionalmente fechada enquanto lida com as
pressões do companheiro, da mãe controladora
(Burstyn) e as atitudes intrusivas de
conhecidos. Martha quer prosseguir com a sua
vida, afastar-se da tragédia, e nesta
tentativa acaba por se afastar de toda a sua
família, tensões borbulham, desentendimentos
nascem e relações desmoronam-se
irreparavelmente. O companheiro e a mãe
pressionam Martha para tomar medidas legais,
e posteriormente, depor no julgamento da
parteira, mas ela demonstra-se reticente, e
por vezes, agressiva, perante a ideia.
A narrativa
construída através de retalhos, de várias
cenas durante vários meses, encapsula o
sentimento de isolamento e estagnação de
Martha causado pelo sofrimento e demonstra
os estilhaços da sua saúde mental. No
entanto, o ponto mais fraco do filme é
quando a manta de retalhos perde a força ao
focar-se em enredos secundários, insípidos e
por vezes desnecessários, de outras
personagens (como a traição de Sean)
comparativamente ao foco na Martha. Se esses
enredos secundários tivessem sido abordados
na mesma perspetiva de “show, don’t tell”
como foi o circo mediático do julgamento da
parteira através de pequenos, mas
inequívocos vislumbres, a narrativa teria
sido mais sólida. Por outro lado, o facto do
enredo decorrer durante o frio agreste do
outono e inverno num ambiente citadino ao
som da banda sonora, solene e melancólica,
da autoria de Howard Shore (Senhor
dos Anéis,
O Caso
Spotlight,
Seven – Sete
Pecados Mortais)
enaltece o tom da narrativa. Outro aspeto
louvável no filme são os desempenhos dos
atores, em especial de Vanessa Kirby com uma
atuação visceral, um verdadeiro
tour de force
da arte da representação. Este papel
valeu-lhe o prémio Volpi Upi de Melhor Atriz
no Festival de Veneza.
Pieces of a Woman
é a história de uma mulher fragmentada após
ter vivido o pior pesadelo de qualquer mãe e
sofrido uma perda inconsolável, é uma
história sobre dor e a catarse necessária
para conseguir voltar a viver. O processo
para superar a perda é longo, errático e
doloroso, mas é possível através da
aceitação. O cantor e poeta Leonard Cohen
disse “there is a crack in everything,
that’s how the light gets in”, o que
sintetiza sucintamente o processo de
cicatrizar. Martha nunca irá esquecer a dor,
mas não obstante, é possível seguir em
frente rumo a novos caminhos, novas
possibilidades. Afinal, o inverno é sempre
sucedido pela primavera e é nessa estação
frutuosa que encontramos a Martha, anos mais
tarde, num epílogo sereno.
Pieces of a Woman sobressaí pela sua qualidade destacando-se como uma das melhores adições ao catálogo da Netflix.
Classificação: ★★★★
Soul – Uma Aventura com Alma (2020)
- Partilhar 02/01/2021

Depois de um
adiamento inicial devido à pandemia
Covid-19,
Soul – Uma Aventura
com Alma
trocou a estreia nas salas de cinema
portuguesas pela estreia exclusiva e direta
na plataforma de streaming Disney Plus no
dia 25 de dezembro.
A mais recente
adição ao catálogo cinematográfico dos
gigantes da animação, Pixar e Disney,
trata-se de uma história focada no género
musical
jazz
e na procura
do propósito para viver. Este é o primeiro
filme da Pixar protagonizado por um
afro-americano. O realizador de
Soul,
Pete Docter, é responsável pelas adoradas
obras de animação
Monstros e Companhia
(2001),
Divertida-mente
(2015) e Up –
Altamente
(2009), que foi galardoado com o Óscar de
Melhor Filme de Animação.
O filme segue Joe
Gardner, um professor de música apaixonado
por jazz, que após uma audição, finalmente
conseguiu atingir o seu sonho de tocar num
bar de Nova Iorque com uma banda talentosa.
Joe fica eufórico, é domado por uma
felicidade incontrolável. No entanto, não vê
o seu sonho realizado uma vez que acaba por
sofrer um acidente grave que o deixa à beira
da morte. A sua alma separa-se do seu corpo,
mas o músico recusa-se a morrer sem realizar
o seu propósito de vida. Começa aqui a
viagem de Joe e sua tentativa de escapar do
Grande Além. Joe acaba por tornar-se o
mentor de uma jovem alma reticente em
iniciar a sua vida, a número 22, no Grande
Antevida, o lugar onde as almas existem
antes de começarem a viver na Terra. O
músico aproveita esta oportunidade para
regressar ao seu corpo e tocar o concerto
mais importante da sua vida.
Soul
lembra o filme
Coco
(2017), também da autoria da Pixar e Disney,
uma vez que em ambos existe a temática
musical e a missão do protagonista consiste
em tentar regressar à vida. Mas as
semelhanças ficam por aí,
Soul
é inserido numa
cultura e vivência completamente diferente e
a sua mensagem não é focada na importância
da família e legado, mas sim no significado
e propósito de viver.
Através de viagens
espirituais por diferentes dimensões de
existência e aventuras pela cidade de Nova
Iorque marcadas por desentendimentos,
obstáculos e confusões caricatas as duas
personagens descobrem facetas da vida que
previamente tinham ignorado.
Soul
levanta aquela
derradeira e incontornável pergunta que
apoquenta tantas, mas tantas pessoas: “Qual
é o meu propósito de vida?”.
Soul
demonstra como a falta ou a obsessão por um
propósito destroem o espírito humano, como
as pessoas se perdem na procura por um
propósito, como paixões se tornam prisões.
Com o outono nova
iorquino como cenário e jazz a pautar a
história,
Soul
desmistifica como ter um propósito não é o
significado da vida. No fundo,
Soul
demonstra e ensina
que o significado da vida está no simples
ato de aproveitar a beleza de viver, a
companhia dos outros, as experiências e
sensações mais simples (tidas, tantas vezes,
como banais) e a natureza em si.
Soul
trata do tema que mais cativa e aterroriza a
humanidade, a grande incógnita que é o
propósito e significado da vida, de uma
forma divertida, leviana e ternurenta com
sequências ora mágicas, ora serenas. O
humor, tal como é habitual nos projetos da
Pixar, é um dos pontos fortes do filme.
Soul
é reconfortante, é o filme perfeito para um
serão em família no conforto do seu lar.
Soul está agora
disponível para streaming no Disney Plus.
Classificação: ★★★★
Mank (2020)
- Partilhar 07/12/2020

O realizador David Fincher, um dos cineastas americanos mais aclamados da atualidade, reconhecido e celebrado por Seven (1995), Fight Club (1999), Zodiac (2007) e The Social Network (2010), regressa finalmente ao grande ecrã, seis anos após Gone Girl (2014), com o filme biográfico Mank. A adição mais recente à filmografia de Fincher estreou a 13 de novembro em algumas salas de cinema e a 4 de dezembro estreou globalmente na plataforma de streaming Netflix.
Mank não se trata somente da biografia de Herman J. Mankiewicz, argumentista e guionista de Citizen Kane, considerado por muitos cinéfilos como o melhor filme alguma vez realizado, como também é um retrato e crítica de Hollywood na década de 30 através dos olhos de Mank.
O actor Gary Oldman encarna Mankiewicz, conhecido e tratado por Mank, um dramaturgo e crítico do The New York Times tornado argumentista de cinema. O filme segue o processo de escrita do guião de Citizen Kane, escrito em 60 dias a pedido de Orson Wells (Tom Burke), enquanto em simultâneo, através de flashbacks, explora o início e final aparatoso da carreira profissional de Mank na indústria hollywoodiana nos anos trinta. Mank é um alcoólico, detentor de um sentido de humor astuto e de uma natureza extremamente opinativa. Estas qualidades, que outrora divertiam os outros, rapidamente se tornam defeitos quando Mank nada contra a corrente e cria tensões com indivíduos poderosos como William Hearst (Charles Dance), um magnata dos meios de comunicação, dono de um império de jornais e revistas, que serve de inspiração para a personagem de Kane. Hearst tem um relacionamento amoroso com a estrela Marion Davies (Amanda Seyfriend) que se torna amiga de Mank e é tida por muitos como a inspiração para a amante de Kane.
Mank no estilo e na essência, homenageia Citizen Kane criando paralelos com esse filme clássico. A obra de Fincher foi filmada inteiramente a preto e branco e a narrativa consiste numa mistura de vários flashbacks com o enredo principal. A cinematografia é marcada por algumas transições e planos wellsianos (pessoas aparentam ser bastante maiores em comparação a outras; a utilização da escuridão para esconder faces ao enaltecer sombras; etc.) e o filme é editado como as produções “hollywoodianas” da altura, desde os créditos introdutórios às cue marks (pequenas marcas no canto direito que serviam para sinalizar que o rolo de filme estava a terminar). Mank é pautado por uma soundtrack de jazz adequada à época e energia do filme e o elenco, na sua totalidade, têm desempenhos que fazem justiça ao argumento e estilo exemplar de Fincher. No entanto, em algumas ocasiões, o guião perde toda a sua força e agudez ao ponto de ser tornar insípido.
Ambos os filmes são sintetizados pela seguinte frase, proferida por Mank relativamente ao guião de Citizen Kane: “É impossível capturar a vida inteira de um homem em duas horas. Só se pode dar uma ideia dessa vida”. É neste aspecto que Fincher triunfa. Ele não se limita só a demonstrar o processo tumultuoso de escrita de Citizen Kane (dificultado pela recuperação de um acidente de carro e pelo alcoolismo de Mank) ou a luta entre em Wells e Mank para que o último seja creditado no filme. Fincher demonstra o carácter de Mank ao expor os seus valores, atitudes, qualidades e vícios enquanto contextualiza com o que o rodeia: o clima político da Califórnia (caracterizado pelo medo do socialismo); a influência, ganância e exuberância dos titãs dos meios de comunicação (dos grandes estúdios de filmes aos magnatas dos jornais); o processo de escrita e produção da indústria e o grupo social em que insere. É nesta exposição narrativa abrangente que apreendemos quem Mank era e como encarava o seu ambiente, e é aqui que residem as inspirações e razões por trás do guião de Citizen Kane.
Mank emerge assim
de 2020, um ano em que
streaming online
foi uma solução face aos problemas vividos
na indústria fílmica, como um dos filmes
mais memoráveis e imperdíveis
Classificação: ★★★★
On the Rocks (2020)

On the Rocks
assinala o regresso de Sofia Coppola ao
grande ecrã e a antecipada reunião da
realizadora com o ator Bill Murray, com quem
colabora pela terceira vez.
On the Rocks
é uma comédia e drama leve que segue a
história de Laura (Rashida Jones), uma jovem
mãe e escritora nova-iorquina, que começa a
suspeitar que o marido (Marlon Wayans) lhe é
infiel. Esta suspeita descontrola-se e ganha
forma quando o pai de Laura, Felix (Bill
Murray), um carismático e charmoso “old
school playboy”, a convence a seguir o
marido para descobrir a verdade.
Ao contrário de
filmes anteriores da realizadora, como em
Lost in
Translation,
Marie
Antoniette ou
Bling Ring,
em On the
Rocks a
personagem principal não é “atirada” para um
ambiente estrangeiro e diferente, sendo a
própria personagem, Laura, a tornar-se o
elemento externo no seu ambiente natural. O
filme inicia-se com o dia do casamento,
idílico e perfeito, distinguível pela
cinematografia comparável à usada nos
anúncios publicitários de perfume, e depois
avança alguns anos, para o quotidiano
familiar do casamento do qual nasceram duas
filhas. É neste contexto de
domesticidade segura, confortável e algo
estagnada, que surge espaço para dúvidas,
sobre o estado do casamento e sobre a sua
capacidade de escrever o livro que está a
desenvolver.
Lost In Translation
e On the Rocks
são as obras entre as quais se traçam várias
relações, e com razão. Separados por 17 anos
de diferença, em ambos os filmes existe uma
cidade, que é mais uma personagem do que
localização, que realça os dilemas dos
protagonistas, sendo no primeiro Tóquio e no
segundo Nova Iorque. Em ambos os filmes,
Bill Murray é um pai que falha aos filhos
por demasiadas vezes, é uma figura masculina
mais velha, bastante opinativo e engraçado,
e é um mentor para a jovem mulher com quem
interage. No entanto, Bob Haris em
Lost in Translation,
oferece bons conselhos e muda no final do
filme, tornando-se uma melhor pessoa, marido
e pai, já Felix em
On the Rocks
é o oposto, apesar das suas boas intenções.
O tom jovial marcado pela música new wave ou
post-punk em
Lost in Translation,
e nos restantes filmes, deu lugar a um tom
maduro e à música jazz em
On the Rocks.
A expressão “on
the rocks”, referente a bebidas alcoólicas,
traduz-se para “com gelo”, o que reflete, em
parte, a energia do filme: suave e maduro,
como gelo a derreter num copo de whisky.
Passado na cidade que nunca dorme, com
bares, restaurantes, apartamentos,
escritórios e ruas elegantes, não falta
estilo ao tom de
On the Rocks.
No entanto são as personagens principais, o
duo de pai e filha, que carecem dessa
qualidade. Laura, por ser afetada pelo tédio
da domesticidade e pelo bloqueio artístico,
e Felix, que apesar de ser um excêntrico
magnata do circuito artístico, é um fóssil
de um tempo passado com noções antiquadas,
especialmente no que toca ao sexo oposto. Na
falta de “coolness” do par reside a comédia
do filme, como a perseguição a alta
velocidade num carro clássico vermelho
descapotável (que quase vai abaixo devido à
idade) pelas ruas noturnas cheias de vida de
Nova Iorque como se fossem detetives, ou na
fuga de uma festa, em que se vê o par a
andar atrás muito devagar para não ser visto
pelos outros convidados.
A missão de
detetives dá pretexto para pai e filha
passarem mais tempo juntos, para dialogarem
por entre bebidas sobre a natureza do
matrimónio, monogamia e amor. Felix afirma
que Laura tem de pensar como um homem e
intensifica as dúvidas da filha sobre a
possível traição do marido, porque ele mesmo
cometeu infidelidades no passado.
Ambos falam e questionam com franqueza os
seus casamentos e famílias.
On the Rocks é
um filme curto. Os diálogos não são densos
nem melodramáticos, mas falta-lhe a
irreverência cortante característica dos
filmes da realizadora. É o filme com a
temática e personagens mais maduras de Sofia
Coppola. No fundo é um filme sobre
“assentar” e sobre o confronto e desconforto
do quotidiano familiar. No final, nenhuma
das personagens mudou, ou cresceu, não há
necessidade para tal, o que é necessário é a
reafirmação da normalidade. Coppola conclui
o filme como se terminasse de embrulhar um
presente e lhe colocasse o laço no topo com
um final previsível, agradável e
tranquilizante, e, por isso, pouco
memorável.
On The Rocks está agora disponível para
visualização na plataforma de streaming
AppleTV.
Classificação: ★★★
Tudo Acaba Agora (2020)

Tudo Acaba Agora
é uma das mais recentes, e uma das melhores,
produções cinematográficas da Netflix. O
filme, cujo título original é
I’m thinking of
Ending Things,
estreou a 4 de setembro na plataforma de
streaming e marcou o regresso do aclamado
argumentista e realizador Charlie Kaufman.
Kaufman é um dos artistas mais irreverentes
do cinema americano, tornou-se uma
figura-chave do cinema de culto ao escrever
os argumentos de
Queres Ser John
Malkovich?
(1999),
Inadaptado
(2002) e O
Despertar da Mente
(2004).
Tudo Acaba
Agora é o
terceiro filme realizado por Kaufman depois
de Sinédoque,
Nova Iorque
(2008) e
Anomalisa
(2015).
Tudo Acaba Agora
foi produzido, escrito e realizado por
Charlie Kaufman e é baseado na obra
literária homónima de Iain Reid. A narrativa
aparenta ser simples: uma jovem mulher
(Jessie Buckley) pondera acabar a relação
com o novo namorado, Jake (Jesse Plemons),
durante uma viagem até à quinta remota dos
pais dele – mas rapidamente torna-se claro
que nada é o que aparenta ser à superfície e
que há algo profundamente estranho e maligno
nesta viagem. A jovem, cujo nome nunca é
definido, tratada por Lucy, Lucia, Louisa e
até mesmo Ames, começa não só a questionar o
que julga conhecer sobre o namorado, mas
também sobre si mesma e o mundo.
A jovem mulher
pondera várias vezes ao longo do filme
durante o monólogo interior terminar a
relação com Jake, pois considera que o
relacionamento não tem futuro. A sua linha
de pensamento é constantemente interrompida
pelo namorado, que parece conseguir ouvir os
seus pensamentos, para discutirem poesia,
musicais, cinema, teorias sociais e
científicas. O diálogo é viciante e robusto,
levanta questões existenciais e
simultaneamente transborda com informação e
referências, e sempre dotado de uma
qualidade constrangedora e desconfortante
devido à falta de química propositada entre
o casal, que mesmo sentados lado a lado no
carro, têm entre eles um fosso abismal de
distância. Este constrangimento é enaltecido
pela escolha de proporção de tela 4:3 que
confere uma sensação de aprisionamento.
À medida que o
enredo principal avança, ao atravessar o
nevão que gradualmente se intensifica,
explorar a quinta sombria e conhecer os pais
bizarros de Jake, Kaufman intercala um
enredo secundário sobre a vida mundana de um
velho auxiliar de uma escola. Pessoas e
linhas temporais convergem neste filme
errático, estranho e surreal. O tecido do
tempo e da realidade é elástico e mutável
(durante o jantar os pais de Jake avançam e
regridem no tempo, ora jovens, ora idosos);
pessoas, vivências e infâncias tornam-se uma
amálgama compartilhada por um todo, por
Jake, pelo auxiliar, pela jovem mulher,
porque “Tudo é igual visto de perto (…) Tu,
eu, ideias. Somos todos uma coisa.”
Tudo Acaba
Agora é
sobre uma questão de perspetiva, não é um
filme literal, mas sim abstrato, em que o
tudo é tingido pelo que foi, o que é, o que
será, o que poderia ter sido e o que nunca
irá acontecer. É uma fantasia idealizada
criada pela necessidade, alimentada e
alicerçada por todos os tipos de media, de
conhecimento, de arte e de memórias porque,
no fundo, como a jovem mulher afirma: “Os
outros animais vivem no presente. Os humanos
não conseguem, por isso, inventaram a
esperança.”
Tudo Acaba Agora
é um filme pouco convencional, marcado
durante as 2 horas e 15 minutos de duração
por uma estranheza palpável que culmina num
ato final imprevisível. O filme explora o
âmago da psique humana, é um ensaio sobre
solidão, estagnação, passagem do tempo,
individualidade e a formação de carácter.
O diálogo e execução de Kaufman é cortante e
memorável, alcançado com os desempenhos
cruciais do pequeno, mas talentoso elenco,
que conta com Jessie Buckley e Jesse Plemons
como personagens principais e David Thewlis
e Toni Colette como pai e mãe
respetivamente.
O novo filme de
Kaufman é o melhor trabalho do cineasta,
provou-se igualmente o melhor filme de 2020
até à data. Da mesma forma que arte abstrata
não agrada a todos o mesmo acontece com este
filme, mas quem acompanhar esta viagem com
certeza sentir-se-á recompensado no final
uma vez que
Tudo Acaba Agora
é um dos filmes mais interessantes do ano,
que levanta perguntas e inicia discussões.
Tenet (2020)

Depois de vários
adiamentos devido à pandemia Covid-19, o
filme mais antecipado do ano,
Tenet
do realizador Christopher Nolan, finalmente
estreou em 70 países, incluindo Portugal, a
26 de agosto. Nolan regressa ao grande ecrã
e debruça-se novamente sobre o seu conceito
favorito, o tempo, tal como fez previamente
com Memento
(2000),
Inception
(2010) e
Interstellar
(2014).
A nova adição à
filmografia de Nolan
é um
thriller
de ficção-científica e ação que envolve o
mundo da espionagem internacional e segue o
Protagonista, um agente da CIA que é
recrutado por uma organização secreta
intitulada Tenet, encarregado com a missão
de impedir que a Terceira Guerra Mundial
aconteça e armado apenas com a palavra
Tenet. A Terceira Guerra Mundial será
causada por pessoas no futuro que desejam
destruir o passado e desta forma impedir a
extinção da humanidade no futuro, ou seja, é
uma tentativa desesperada de apagar os erros
cometidos no passado. Andrei Sator é o
contacto entre o presente e o futuro e para
o parar e salvar o mundo o Protagonista
utiliza a inversão do tempo, uma manobra
desenvolvida no futuro e enviada para o
passado, que consiste em inverter o fluxo de
entropia de um objeto ou pessoa e
consequentemente inverter o fluxo do tempo.
Em
Tenet,
Nolan desconstrói e desdobra o tempo,
apresentando a ideia de que o tempo não é
linear, mas sim circular e sobreposto, em
que várias realidades existem
simultaneamente no mesmo plano. Os mesmos
objetos ou pessoas, ou melhor, as várias
versões dos mesmos objetos ou pessoas,
coexistem e por vezes cruzam-se, no mesmo
plano de existência ora movendo-se para a
frente ou para atrás através da inversão do
tempo.
Tenet é um
filme de espionagem centrado à volta de
teorias e paradoxos temporais. É o filme
mais ambicioso e complexo de Nolan, é um
verdadeiro quebra-cabeças desafiante que
exige toda a atenção da audiência e requere
uma reflexão profunda. Em termos técnicos
destaca-se a cinematografia de Hoyte van
Hoytema que proporciona um grandioso
espetáculo visual com sequências de ação
inovadoras e a banda sonora composta por
Ludwig Göransson. O elenco é um componente
fulcral para o sucesso de
Tenet
onde se destacam os desempenhos de John
David Washington (o Protagonista), Robert
Pattinson (Neil) e Elizabeth Debicki (Kat).
Tenet é um bom
filme, mas não é uma obra-prima apesar de
todas as suas qualidades positivas. O ritmo
acelerado da narrativa e o constante
bombardeamento de novas informações e
detalhes dificultam o seguimento e
compreensão do enredo. A mistura do som é
desagradável já que por vezes os efeitos
sonoros sobrepõem-se ao diálogo das
personagens tornando-se difícil discernir as
falas. No fundo, a sobre-exposição constante
de informação torna-se cansativa. Por outro
lado, algumas das personagens, com exceção
de Kat, são emocionalmente rasas e poderiam
e deveriam ter sido mais exploradas nesse
sentido.
Tenet é sem dúvida o filme mais ambicioso de Christopher Nolan, mas está longe de ser um dos melhores filmes do realizador, como Memento (2000) ou Dunkirk (2017), porque carece de elegância, poder imersivo e densidade emocional na narrativa. No entanto, é um filme único e imperdível, um puzzle temporal visualmente deslumbrante, que deve ser apreciado no grande ecrã.
Palm Springs (2020)

O filme
norte-americano
Palm Springs
estreou na plataforma de
streaming
Hulu a 10 de julho e é um dos melhores
filmes de 2020 até à data. É uma comédia
romântica com elementos de ficção-científica
que revitaliza e aperfeiçoa a fórmula do
time loop
(um ciclo de tempo interminável e
inescapável que repete sempre o mesmo dia)
popularizada com o filme
O Feitiço do Tempo
(1994).
Palm Springs,
escrito por Andy Siara, é a primeira
longa-metragem do realizador Max Barbakow e
é protagonizado pelos atores Andy Samberg e
Christin Milioti.
O enredo passa-se
em Palm Springs, durante a celebração de um
casamento, e segue a vida de Nyles (Andy
Samberg) que está condenado a viver
eternamente o mesmo dia. Não existe nenhum
amanhã, existe somente o hoje que se repete
dia após dia num ciclo infinito. Até que
Sarah (Christin Milioti), a irmã da noiva e
dama de honor, fica aprisionada no
time loop.
Os dois estão agora presos no mesmo dia, no
mesmo local e incapacitados de fugirem de si
mesmos ou um do outro.
O que distingue
Palm Springs
do famoso O
Feitiço do Tempo
(1994) e dos consequentes filmes que
seguiram o conceito do
time loop
como, por exemplo, o filme de terror
Feliz Dia Para Morrer
(2017) ou o
filme de ação
No Limite do Amanhã
(2014) é uma mudança simples mas crucial: em
vez de somente uma pessoa experienciar o
mesmo dia infinitamente serão duas pessoas a
experienciar o mesmo purgatório.
Palm Springs é
um filme refrescante devido ao argumento
inovador, sólido e divertido de Andy Siara
que o realizador Max Barbakow capturou num
ritmo rápido e com um tom colorido e leve.
As duas personagens principais foram
profundamente desenvolvidas ao longo de toda
a duração do filme, com personalidades em
que as motivações, medos e falhas brilham,
algo que é raro em comédias românticas. A
dinâmica e química que a dupla romântica
demonstra enquanto navegam pela absurdidade
de um time
loop é
intoxicante. A realidade desprovida de
sentido e significado, em que se está preso
no mesmo dia e mesmo lugar sem qualquer
escapatória, e como tal não existe
consequências pelas ações tomadas levanta
questões existencialistas importantes:
resignação total face à situação, aceitar o
limbo e encontrar desta forma alguma paz ou
procurar lutar e consequentemente lidar com
as consequências dolorosas do possível
amanhã? Permanecer no conhecido estagnado ou
arriscar o desconhecido repleto de
incertezas? Alimentar uma fachada segura e
distante ou ter confiança e apostar num
relacionamento romântico duradouro?
Palm Springs é um filme divertido e surpreendentemente profundo, sem nunca se tornar pesado, que aborda temas existencialistas, conexões humanas e o fardo das consequências através de personagens bem-escritas e humor divertido. Palm Springs não só é um dos melhores filmes de 2020 como também é uma das melhores comédias românticas dos últimos anos e o melhor filme sobre um time loop.
Honey Boy (2019)

Honey Boy é
uma produção norte-americana que estreou em
2019 no Sundance Film Festival. O filme foi
realizado por Alma Har'el e escrito pelo
ator Shia Labeouf.
Honey Boy
é um filme semiautobiográfico, uma história
fictícia inspirada pela infância de Labeouf
e o subsequente internamento para curar a
dependência alcoólica em adulto.
Honey Boy
acompanha o ator Otis em duas alturas
cruciais da sua vida: aos 12 anos,
representado por Noah Jupe, quando se estava
a estabelecer como ator enquanto lidava com
o relacionamento tóxico que tinha com o pai,
e aos 22 anos, representado por Lucas Hedge,
quando é internado para reabilitação e
diagnosticado com Stress Pós-Traumático.
Para Otis vencer o alcoolismo e tratar os
problemas psicológicos e emocionais é
necessário fazer terapia e confrontar a
origem da sua dor: o seu pai. Shia Labeouf
representou o próprio pai, James, um
veterano da Guerra do Vietname, criminoso
com um passado de abuso de substâncias que
trabalhou em circos.
Shia Labeouf
escreveu grande parte do guião do filme
durante o seu internamento para reabilitação
da dependência alcoólica, em que teve de
escrever sobre os momentos mais negros da
sua vida. O filme
Honey Boy
é como uma sessão de terapia pública que
reconta e expõe trauma para poder
cicatrizar, em que dor é transformada em
arte. O filme traça relações de causa-efeito
ao descortinar as razões do sofrimento de
Otis durante as sessões de terapia.
A realizadora Alma
Har’el guia o filme através do uso
recorrente de paralelismos entre o Otis em
criança e adulto. Estes paralelos narrativos
são normalmente puramente visuais, em que as
situações são as mesmas, mas as
circunstâncias diferentes. Como por exemplo,
o Otis ser alçado com cordas e puxado para
trás num set
de um estúdio
em criança e adulto ou o Otis a gritar de
raiva, contorcido sobre si mesmo, em adulto
ou a gritar com os braços no ar e cabeça
erguida, com a vida toda pela frente, em
criança.
Honey Boy é
profundamente
pessoal e intrinsecamente honesto, é um
filme catártico tingido por uma nudez
emocional. Estas qualidades são
especialmente notáveis no guião de Labeouf e
no seu desempenho a representar o pai, mas
também nos dois atores que representam Otis.
São estas características que tornam
Honey Boy
tão especial e empático, em que não se julga
as personagens, mas há sim uma tentativa
para entendê-las. O pai, apesar de todo o
sofrimento que causou e de todas as falhas
que tem, não é um vilão nem um monstro. É
apenas um homem com vários problemas, capaz
de proporcionar tanto momentos de felicidade
ou dor ao filho. E o filho nada mais deseja
do que ser amado e entendido pelo pai.
Honey Boy é sobre sarar feridas profundas infligidas pela família, é sobre um filho reconciliar-se com o pai, com a dor que este lhe causou e com o amor inerente que sente pelo mesmo. É sobre aceitar que dor e amor coexistem por mais paradoxal e tortuoso que esta noção seja. É um filme semiautobiográfico, mas o seu tema é universal: trauma geracional, um ciclo de dor que passa de pai para filho. Honey Boy é sobre quebrar esse ciclo.
Cléo de 5 à 7

Cléo de 5 à 7
(título
português:
Duas Horas na Vida de Uma Mulher)
é um filme francês de 1962 realizado e
escrito por Agnès Varda. Varda foi uma
figura marcante da
Nouvelle Vague
e uma das
realizadoras mais importantes do cinema do
século XX, sendo uma das vozes femininas
mais influentes na Sétima Arte.
Cléo de 5 à 7
é a segunda
longa-metragem que realizada por Varda e
segue a vida de Cléo, uma jovem cantora de
música pop, enquanto espera ansiosamente
pelo resultado de um exame médico. O filme
tem uma duração de 90 minutos e a narrativa
decorre em tempo real, iniciando-se às 17
horas e concluindo às 18 horas e 30 minutos.
Filmado inteiramente a preto e branco (com
a exceção do genérico que consiste numa cena
de leitura do tarot) e com uma montagem
fluída e precisa, Varda emprega um realismo
elegante ao capturar Paris dos anos 60 e a
jornada emocional da protagonista.
Acompanhamos o
quotidiano de Cléo que foi obscurecido pelo
medo da morte enquanto a jovem se tenta
distrair: desde as viagens de táxis às idas
a cafés, das conversas com amigos às reações
a estranhos, dos ensaios de música às
deambulações por parques. Varga utiliza
estas situações mundanas do dia-a-dia para
explorar o mundo interior da personagem.
Cléo de
5 à 7 é
um olhar íntimo sobre a vida de uma mulher,
sobre as preocupações com a carreira (desejo
por sucesso e reconhecimento do seu
talento), sobre as preocupações relativas à
vida amorosa (o seu companheiro é um homem
bem-sucedido mas não lhe dá atenção). A Cléo
é retratada com honestidade e fragilidade: é
mimada, vaidosa, supersticiosa e exagerada,
no entanto, ela é consciente destas falhas,
o que gera empatia para com a personagem.
A sombra da morte
paira sobre Cléo, infligindo-a com ansiedade
e acuidade sobre o que a rodeia. Quando Cléo
conhece, por sorte do acaso, Antoine, um
soldado que partirá em breve para a Guerra
da Argélia, floresce entre os dois um
sentimento de pertença e compreensão. Na
reta final do filme, e apesar da incerteza
do futuro, a ansiedade de Cléo finalmente
dissipa-se e dá lugar a esperança e
felicidade. A Cléo emerge desta experiência
uma pessoa mudada.
Apesar da premissa
fatalista, o filme é uma mescla espirituosa
entre melodrama e humor, sendo marcado por
jovialidade e leveza. Destaca-se as
cameos
divertidas de Jean-Luc Godard e Anna Karina,
a banda sonora de Michel Legrand, a edição
experimental com sequências poéticas e a
cinematografia harmoniosa. O movimento de
câmara é marcado por uma leveza exemplar ao
deslizar por entre cafés e ruas repletas de
pessoas, ao capturar introspetivamente a
sentimentalidade de Cléo quando canta,
passeia sozinha no parque ou cria laços com
Antoine.
Ao longo de
Cléo de 5 à 7,
acompanhamos as oscilações entre pavor e
esperança da Cléo, como a ameaça da morte
influencia como interage com o que a rodeia.
Desta forma,
Cléo de 5 à 7
aborda o tempo, a mortalidade e o ponto de
vista feminino. É um filme
existencialista e poético, que por ser
dotado de naturalidade e sensibilidade não
cai no pretensiosismo.
Cléo de 5 à 7 é um dos melhores filmes de Agnès Varda e uma obra imperdível da Nouvelle Vague. Quase sessenta anos depois da sua estreia o filme continua a ser refrescante e moderno devido ao seu conteúdo e estilo.
“Ensaio sobre a Cegueira” (2008)

Nas últimas
décadas parece que o interesse por filmes
sobre epidemias e cenários pós-apocalípticos
aumentou. Existe um variado leque de
escolhas desde filmes sobre
zombies
de drama como
28 Days Later (2002) ou
de comédia como
Shaun of the Dead
(2004) até filmes sobre vírus
assustadoramente reminiscentes do Covid-19
como Contagion
(2011). Devido à
grande quantidade de filmes deste género há
sempre obras fílmicas que não têm tanta
atenção no panorama audiovisual como
deveriam ter, como é o caso de
Ensaio
Sobre a Cegueira
(2008), a versão
cinematográfica da renomada obra literária
homónima de José Saramago, adaptada para o
grande ecrã por Fernando Meirelles, o
aclamado realizador de
Cidade de Deus
(2002). O filme é uma co-produção entre o
Canadá, Japão e Brasil sendo falado
maioritariamente em inglês e em algum
japonês. O elenco principal é constituído
por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice
Braga, Gael García Bernal, Danny Glover,
Yusuke Iseya e Yoshino Kimura.
A história de
Ensaio Sobre a Cegueira inicia-se com um
homem que sem aviso nem explicação, e no
meio do trânsito, fica cego e a sua visão é
mergulhada num mar branco. A cidade depressa
é afetada por esta estranha epidemia de
cegueira branca que se alastra pela
população. O governo declara quarenta
obrigatória e os primeiros infetados são
aprisionados num hospital. Nos dias
seguintes, mais afetados chegam e as alas do
hospital ficam sobrelotadas. Aqueles que não
estão afetados temem a cegueira branca como
se fosse uma praga, evitando os cegos e
exercendo força para os manter isolados.
As personagens em
que a narrativa se foca são da ala 1: o
Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o
Médico, a Mulher do Médico, a Mulher dos
Óculos Escuros, o Ladrão, o Menino e o Velho
da Venda Preta. Tal como na obra original,
não são utilizados nomes para as personagens
e a ação não se passa em nenhum país
reconhecível, uma vez que o foco da história
não é em localizações ou pessoas
específicas, mas sim na humanidade.
Desorientados com
a cegueira branca e sob a ameaça de serem
mortos a tiro por militares se tentarem sair
das instalações, sem racionamentos de comida
suficientes nem qualquer ajuda externa, o
hospital rapidamente é engolido pela
desordem. Lutas por poder instalam-se apesar
dos esforços do Médico de organizar
democraticamente as alas e da Mulher do
Médico de ajudar e guiar os cegos sem
revelar que consegue ver, já que ela mentiu
sobre ser cega para poder acompanhar o
marido. O lado mais vil e cruel da natureza
humana emerge quando os mais fortes usam a
força e o monopólio dos mantimentos
alimentares para subjugar os mais fracos, o
caos governa o hospital e semeia humilhação,
violência e mortes.
A Mulher do
Médico, a única pessoa que inexplicavelmente
não foi afetada pela cegueira, é quem os
liberta do inferno do hospital e abre os
portões após os militares terem abandonado
as instalações. É ela quem guia o seu
pequeno grupo pela sociedade destabilizada e
em direção a um refúgio longe dos cruéis
instintos primitivos do Homem.
O verdadeiro
horror de
Ensaio Sobre a Cegueira não
é a misteriosa epidemia que roubou a visão à
humanidade, mas sim a complexa natureza
humana no seu pior momento, entranhada de
uma crueldade adormecida que brotou atos
atrozes, mas também de uma necessidade e
procura vital por empatia. A natureza humana
é confusa, e de certa forma inexplicável, é
uma amálgama de contradições, tanto capaz de
praticar o bem como o mal, tal como Saramago
diz, no livro através da voz da Mulher de
Óculos Escuros e no filme através da voz do
Velho da Venda Preta: “Dentro de nós há uma
coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos”.
Ensaio Sobre a
Cegueira é uma boa
adaptação de uma obra literária de
excelência. Ficou aquém do original, mas tal
facto é esperado, já que cinema e literatura
são meios de comunicação com complexidades
muito distintas. Meirelles não transpôs toda
a riqueza do original, mas foi fiel à
narrativa original e capturou a sua essência
com naturalidade. O tom e estética do filme
destacam-se em especial com o uso e
manipulação de luz, cores e composições
pictóricas engenhosas e experimentais. Os
brancos dominantes, ofuscantes e desfocados
dos planos em conjunto com transições
inteligentes e precisas transmitem de uma
forma imersiva como a cegueira branca é. Por
sua vez, os desempenhos do elenco foram
razoáveis com a exceção de Julianne Moore,
que interpretou a Mulher do Médico, que
demonstrou uma acuidade emocional
impressionante.
“Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”: Sonata de Outono

Sonata de
Outono (título original:
Höstsonaten) é um filme sueco de 1978
realizado e escrito por Ingmar Bergman, um
dos autores mais importantes do cinema
europeu e um dos grandes mestres da Sétima
Arte.
O filme é um
drama que se foca em duas personagens
femininas e na sua relação de mãe-filha.
Charlotte Andergast, uma pianista
bem-sucedida, depois de perder o companheiro
Leonardo, reencontra-se pela primeira vez em
sete anos com a filha, Eva, quando esta lhe
escreve a pedir que a visite durante alguns
dias. Eva está casada com um clérigo e vive
numa pequena cidade. As duas mulheres têm
uma relação complicada que se torna ainda
mais tensa quando Charlotte descobre que a
sua outra filha Helena, que sofre de uma
doença terminal que a deixou paralisada e
incapaz de falar, foi retirada da
instituição e vive agora com Eva. O
reencontro desencadeia um confronto entre
Charlotte e Eva.
Ingmar Bergman
disseca a relação entre as duas personagens
ao abrir feridas do passado e expô-las pela
primeira vez numa discussão longa e
dolorosa. Charlotte desprezou o papel de mãe
para se focar na carreira de pianista e Eva
cresceu sem conhecer carinho, conhecendo
apenas o controlo em forma de críticas da
mãe, o que incutiu na jovem um sentimento de
fraqueza e impotência desde cedo, e Eva
despreza a mãe por não conseguir lidar com a
situação de Helena. Ambas são marcadas
pela falta de afeto e pelo desejo do mesmo,
a herdança de mãe para filha é a dor.
O passado
condiciona o presente de Eva e Charlotte
desde os seus relacionamentos às suas
personalidades. Em
Sonata de Outono,
os planos gerais são compostos como quadros
clássicos e a iluminação é pálida o que
confere uma sensação de longinquidade e
alienação. Estes planos são sempre usados
quando Eva recorda o passado, a captação
pitoresca ressalta como o passado aprisiona,
mas ao mesmo tempo é intocável, como um
sonho distante. Quando estes planos
são usados no presente é como se as
personagens, por vezes, desvanecessem no
meio em que se encontram.
Sonata de
Outono é um escrutínio
angustiante da relação repleta de
incongruências de amor e ódio, desejo e
repúdio que existe entre Eva e Charlotte. A
forma como ambas são capturadas é quase
cruel, Ingmar Bergman não nos permite
desviar o olhar da fealdade que decorre ao
usar grandes planos fechados, com a câmara a
centímetros das faces das atrizes, durante
os momentos de confronto, em que a raiva
outrora adormecida explode.
A intensidade e
honestidade emocional de
Sonata de Outono
recai não só na direção precisa de Ingmar
Bergman, mas também nas atuações das
conceituadas atrizes Liv Ullmann e Ingrid
Bergman nos papeis de Eva e Charlotte,
respetivamente.
Tal como o título
indica, o filme é pautado por uma banda
sonora exemplar, escolhida a dedo para as
tonalidades emocionais certas, composta por
peças de Händel, Chopin e Bach.
Sonata de Outono termina com um retorno ao início, com Eva a escrever uma carta para a mãe após esta partir abruptamente depois de terminarem a discussão, e num tom ambivalente, marcado por esperança e desilusão, nascido do confronto que era há muito necessário nesta relação conflituosa entre mãe e filha.
“Eu sou grande! Os filmes é que ficaram pequenos”: Sunset Boulevard

“Sunset Boulevard”, cujo título em português é “O Crepúsculo dos Deuses “, é um filme de 1950 da autoria do realizador Billy Wilder, é um dos grandes clássicos do cinema americano e uma das obras fílmicas noir mais aclamadas. “Sunset Boulevard” é uma reflexão sobre a indústria do cinema, a sede pela fama e a incapacidade de encarar a realidade, no fundo, o filme é um pesadelo hollywoodesco.
Um grande filme é o culminar de vários fatores e decisões artísticas, mas a história é a essência da obra. “Sunset Boulevard” foi escrito por Billy Wilder, Charles Brackett e D.M Marshman Jr. e é considerado por muitos uma das melhores narrativas que nasceu de Hollywood, é uma história inesquecível com diálogo cortante. O filme é sobre a relação perigosa que se desenvolve entre o argumentista fracassado e endividado Joe Gillis e Norma Desmond, uma estrela do cinema mudo que caiu no esquecimento e na ilusão de magnificência.
“Sunset Boulevard” é marcado por um tom sombrio e fatalista, inicia-se com o assassínio de Joe Gillis e é narrado pelo mesmo, que retrocede no tempo para mostrar como chegou àquele fim. É uma reflexão sobre a indústria implacável de Hollywood e sobre todos os que a compõe desde os argumentistas aos atores, dos fãs aos jornalistas, e uma critica ao Star System, ao processo criativo e ao estado da indústria.
É um comentário ao papel do argumentista, que é muitas vezes esquecido pela audiência, e que se tem de submeter ao modelo dos estúdios que procuram apenas o lucro, prescindindo assim da originalidade e liberdade artística. Joe Gillis é um homem cínico e procura apenas sobreviver através da sua escrita, no entanto, ele muda quando conhece a jovem Betty Schaefer, uma aspirante a argumentista cheia de paixão que se foca na mensagem e honestidade necessária para criar uma boa história e não nas exigências dos estúdios. Betty e Joe são duas faces da mesma moeda, são as duas fases dos argumentistas face à máquina de Hollywood.
“Sunset Boulevard” é uma obra que mostra o lado negro da fama e como esta destrói artistas. Norma Desmond foi esquecida pelo mundo e vive sozinha na sua grande mansão, repleta de fotos de quando era jovem e outros artefactos dos seus tempos de glória, acompanhada apenas pelo seu mordomo Max, que é posteriormente revelado ser o realizador que a tornou famosa. Esta é uma mulher de meia-idade presa ao passado e incapaz de enfrentar o presente, obcecada com preservar a sua beleza e reprimir o envelhecimento, é uma megalomaníaca consumida por ilusões de grandeza que acredita no seu regresso ao grande ecrã, algo que nunca irá acontecer. Norma Desmond é interpretada por Gloria Swanson, que foi uma grande estrela do cinema mudo e regressou ao grande ecrã para este papel. A interpretação de Swanson é imbatível e solidificou Norma Desmond como uma personagem icónica, a sua expressividade facial e corporal e a loucura no seu olhar são assombrosas, são características únicas pertencentes a uma verdadeira estrela do cinema mudo.
Para além de Swanson o elenco é também composto por figuras do cinema mudo como o realizador Cecil B. DeMille que se interpreta a si mesmo no filme, Erich von Stroheim que interpreta o mordomo Max e H.B Warner, Buster Keaton e Anna Q. Nilsson que fazem aparições como os velhos contemporâneos da Norma Desmond. Os atores William Holden e Nancy Olson que interpretam Joe Gills e Betty Schaefer respetivamente têm desempenhos naturais que são perfeitos em oposição aos maneirismos dramáticos de Norma Desmond.
A cinematografia convenciona o tom sombrio da narrativa enquanto simultaneamente captura a riqueza e ostentação ofuscante a que Norma Desmond desesperadamente se agarra.
“Sunset Boulevard” é um filme sobre os artistas no grande ecrã e atrás das câmaras. É um olhar cru e critico sobre a indústria de Hollywood que engole e cospe pessoas, descartando-as. É um filme que nos compele do início ao fim, e que tem uma das sequências finais mais fortes do cinema com Norma Demonds a ser devorada pela loucura e pela ilusão de fama que fabricou, ela vive apenas para a glória das câmaras. “Sunset Boulevard” obriga a encarar a realidade e relembra que o motor para fazer cinema deve ser a devoção à arte de criar boas histórias e não à fama.
O triunfo técnico e artístico de “1917”

O épico de guerra “1917” do realizador Sam Mendes foi inspirado pelas histórias da Primeira Guerra Mundial que o avô lhe contara. O filme tem sido criticamente aclamado. Mendes foi eleito melhor realizador nos prémios do Sindicato de Realizadores de Hollywood e “1917” é um dos grandes concorrentes dos Óscares com 10 nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador.
“1917” conta a história de dois soldados britânicos, o cabo Blake (Dean-Charles Chapman) e cabo Schofield (George MacKay), encarregados com a missão aparentemente impossível de atravessar território inimigo para transmitir uma mensagem que irá parar a investida de um batalhão de 1600 soldados britânicos, entre os quais se encontra o irmão de Blake, e salvá-los de cair numa armadilha mortífera alemã.
É um enredo convencional: missão suicida e contrarrelógio. Mas o que distingue e eleva “1917” é a mestria técnica alcançada através da direção arrojada de Sam Mendes e da visão de Roger Deakins, considerado um dos melhores diretores de fotografia da atualidade. O filme foi rigorosamente arquitetado de forma a dar a ilusão de ter sido filmado em dois planos-sequência, o único corte no filme acontece quando um dos soldados fica inconsciente, desta forma a audiência acompanha a história em tempo real e tal como os protagonistas não tem tempo para processar e parar devido à natureza da guerra, o que intensifica a ação. Este feito é uma tarefa árdua que requere planeamento, precisão e organização de todas as partes envolvidas durante todo o processo de gravação e montagem.
O triunfo artístico e técnico de “1917” não só é impressionante como é também fundamental para a cimentação do filme como uma experiência imersiva, na qual o espetador é forçado a confrontar a realidade bélica. A audiência acompanha os protagonistas, segue-os no seu encalço e coloca-se nos seus lugares, ao atravessar as trincheiras, frias e inóspitas, lotadas de homens desgastados, feridos e cadáveres; ao vivenciar a horripilante Terra de Ninguém, a quietude e beleza dos campos de França e a destruição de vilas e casas.
“1917” começa e termina com um plano de um campo cheio de flores, uma visão serena que contrasta severamente com a carnificina da guerra. O filme explora de uma forma intimista a jornada física, mental e emocional destes jovens, expondo a desolação sentida, a ânsia por sobreviver, o desespero por suceder, a dor das mortes de companheiros, mas também o confronto encontrado na camaradagem e nas piadas, histórias e canções saudosas sobre casa.
A cinematografia de Deakins captura tanto a beleza campestre como o terror e frenesim da guerra de uma forma assombrosa, recorta silhuetas com paisagens e luz criando imagens inesquecíveis. “1917” é uma proeza visual que é fortificada pela trilha sonora exemplar composta por Thomas Newman, pelo elenco constituído por talentos como Colin Firth, Mark Strong, Benedict Cumberbatch, Andrew Scott e Richard Madden (que têm participações curtas no ecrã, mas marcantes) e pelos dois atores principais, George MacKay e Dean-Charles Chapman, que se destacam com os desempenhos naturais, convincentes e emotivos.
É pela mestria técnica e a audácia artística que “1917” se consagra como um dos grandes épicos de guerra, é uma obra imersiva sobre o inferno travado por entre lama, balas e cadáveres. “1917” reflete sobre a magnitude das perdas e a inutilidade da guerra e recorda os valores, os atos e os homens, porque guerras não são ganhas por massas anónimas, mas sim pelo esforço coletivo e contínuo de homens que carregam muito mais do que as suas mochilas e armas às costas.
“Une femme est une femme” em memória a Anna Karina

A atriz Anna Karina
faleceu a 14 de dezembro de 2019 aos 79
anos. Anna é um ícone do cinema e o seu
falecimento é uma enorme perda para o mundo
da Sétima Arte.
Anna nasceu na
Dinamarca e emigrou para Paris aos 17 anos.
Para além de uma carreira extensa enquanto
atriz foi também modelo, realizadora,
cantora e escritora. Mas é no cinema, e ao
lado do realizador francês Jean-Luc Godard,
que criou o seu maior legado e os filmes
pelos quais mais se destaca. Anna, uma atriz
de talento inegável, é considerada por
muitos a cara que representa a
Nouvelle Vague.
Foi a musa
de Godard e sua esposa entre 1961 e 1967.
Protagonizou vários filmes do cineasta como
“Le Petit Soldat“, “Une femme est une
femme”, “Vivre sa Vie”, “Pierrot le Fou”,
“Alphaville” e “Bande à Part”.
A atriz maravilhou
audiências com o seu charme e beleza
representado várias personagens
inesquecíveis, cada uma com as suas
idiossincrasias, e através das quais brilhou
ao explorar uma amálgama de nuances como
sentimentalidade, timidez, jovialidade,
melancolia, impertinência, um sentido de
humor irresistível, entre tantas outras
mais.
A Anna Karina era
carismática, elétrica e hipnotizante, e
penso que a maioria dos espectadores nunca
se esquece da primeira vez que a vê atuar, o
que foi o meu caso e a razão por querer
refletir sobre “Une femme est une femme”, o
primeiro filme em que a conheci e uma obra
que revisitei muitas vezes.
“Une femme est une
femme” traduzido para português significa
“Uma mulher é uma mulher”. O filme estreou
em 1961 e é a segunda colaboração de Anna
Karina com Godard, sendo, no entanto, a
primeira a estrear devido à censura imposta
em “Le Petit Soldat”. O Festival
Internacional de Cinema de Berlim premiou a
obra com o Prémio Especial do Júri e Anna
Karina com o Prémio de Melhor Atriz por
demonstrar qualidades raras numa atriz que
tinha acabado de iniciar a carreira.
“Une femme est une
femme” é um filme de comédia, drama, romance
e um musical. É uma obra marcante da
Nouvelle
Vague e uma
das grandes obras-primas de Godard. É um
filme inovador e criativo que continua a ser
uma lufada de ar fresco décadas depois,
cimentando-se como único e irreverente.
O enredo do filme é
bastante simples: Angela (Anna Karina), uma
dançarina de cabaret, deseja
desesperadamente ter um filho com o seu
namorado Émile (Jean-Claude Brialy), mas
este é relutante à ideia e para alcançar o
seu sonho seduz o amigo Alfred (Jean-Paul
Belmondo), que está apaixonado por ela,
provocando ciúmes em Émile. O triângulo
amoroso questiona, ao longo da ação, se o
que estão a viver é uma comédia ou uma
tragédia, questionando o amor e a relação
complexa entre homem e mulher.
É um filme vibrante
em forma e conteúdo, que se destaca por ser
o culminar de vários talentos sob a visão
arrojada e visionária de Godard. As trocas
de diálogo são inteligentes, repletas de
humor e atrevidas sendo acompanhadas por uma
banda sonora que exalta o cariz bizarro das
discussões. No entanto, a banda sonora tem
uma particularidade muito singular já que é
marcada pela dissonância: começa e termina
abruptamente, e em momentos que esperamos
ouvir som há apenas o silêncio, como por
exemplo, na atuação da Angela no cabaret que
quando começa a cantar a música desaparece
restando apenas a sua voz. O filme é uma
homenagem aos musicais clássicos e
simultaneamente quebra as regras
convencionais dos mesmos.
Nesta carta de amor
ao cinema, Godard desafia convenção atrás de
convenção criando assim o seu estilo único e
experimental, fazendo meta-referências a
filmes da sua autoria e referências a outras
obras e figuras do cinema; as personagens
estão conscientes da presença do espetador e
quebram constantemente a quarta parede ao
olharem para a câmara, dirigindo-se e
falando diretamente com a audiência. É um
filme deslumbrante com uma mise-en-scène
harmoniosa que nos revela imenso sobre quem
as personagens são e o desempenho do trio de
atores é exemplar e fascinante. A
cinematografia de Raoul Coutard captura toda
a vivacidade das cores ricas que sobressaem
no grande ecrã, das personagens, e da Paris
dos anos 60.
“Une femme est une
femme” mantém-nos agarrados ao ecrã desde da
sequência de introdução até ao fim do filme,
com Angela a dirigir-se à audiência e
piscar-nos o olho uma última vez, depois de
retorquir ao namorado “Je ne suis pas
infâme, je suis une femme” (não sou infame,
sou uma mulher), que para além de ser um
trocadilho inteligente, é também relevante,
já que a grande questão do filme é a mulher
e a beleza, confusão, impertinência e
desejos que a caracterizam.
Anna Karina
desempenha em “Une femme est une femme” uma
das melhores atuações da sua carreira e é um
dos elementos-chave para a excelência e
magia deste filme. Angela é uma personagem
cheia de conflitos internos encarnada com
leveza, ternura e tremenda beleza por Anna.
Os maneirismos, olhares, expressões e
hábitos com que compõe a personagem
permanecem connosco, resultando numa atuação
apaixonante e memorável.
“Eu soube que tu pintavas casas”: O Irlandês

O novo filme de
Martin Scorsese estreou na plataforma
Netflix a 27 de novembro. “O Irlandês” irá
estar no grande ecrã apenas num pequeno
número de cinemas pelo mundo e Portugal não
faz parte dessa seleção.
Scorsese volta à ação
com um filme sobre mafiosos, um género pelo
qual se distinguiu, e com caras que estamos
habituados a ver em filmes da sua autoria:
Robert De Niro e Joe Pesci. A estes grandes
atores junta-se Al Pacino, de igual calibre,
que colabora pela primeira vez com o
realizador.
À semelhança de
“Tudo Bons Rapazes” e “Casino” a nova obra
de Scorsese tem toda a ação, violência e
sangue característicos dos seus filmes sobre
gangsters,
mas há um novo
elemento na sua equação, um componente que
tinge e modifica o sentimento presente ao
longo do filme e que o diferencia: este é um
filme reflexivo, este é um filme que
confronta a fealdade e finalidade da morte.
A obra
cinematográfica inicia-se com Frank Sheeran
(De Niro), velho e débil, encarcerado a uma
cadeira de rodas num lar, onde conta-nos a
sua vida em retrospetiva e como passou de um
simples condutor de camiões a “pintor de
casas”, código para quem assassina a ordens
da máfia. Sheeran, o Irlandês, narra a sua
história a partir da década de 50 quando
conhece o mafioso Russel Bufalino (Joe
Pesci), que o graceja com a sua confiança e
orientação, e que mais tarde, o põe a
trabalhar para o presidente da maior união
sindical dos Estado Unidos, Jimmy Hoffa (Al
Pacino). Estes três homens desenvolvem laços
estreitos de amizade e respeitam-se
mutuamente.
Mas o mundo da máfia
é implacável e toda a ação tem uma reação.
Quando Hoffa se insubordina contra os
desejos da máfia ele tem de ser eliminado e
essa tarefa cabe a Sheeran. Russ e Sheeran
tentam desesperadamente salvar Hoffa,
fazê-lo entender que tem de mudar os seus
comportamentos, mas o velho sindicalista
recusa-se a ouvir e inevitavelmente sofre as
consequências.
Em “O Irlandês” o
glamour e ostentação da máfia não domina o
ecrã, mas sim a melancolia, o peso das
ações. É uma história densamente ligada a
noções de amizade e família, lealdade e
traição que são subjugadas ao mundo do crime
organizado. Hoffa desaparece e é esquecido
pelo mundo, os mafiosos são presos (por
razões nunca ligadas ao desaparecimento de
Hoffa) e morrem na prisão com a exceção de
Sheeran. Ao contrário dos protagonistas em
“Tudo Bons Rapazes” e “Casino”, Frank
Sheeran não tem direito a um recomeço, não
tem um final remotamente positivo. É
castigado pela idade, repudiado pela sua
família, abandonado à solidão e aos seus
pecados, resta-lhe apenas as suas memórias,
o conforto da religião e o caixão verde que
o aguarda.
“O Irlandês” é o
filme mais contemplativo de Scorsese, é o
produto do estilo característico do
realizador conjugado com a reflexão que
advém da velha idade. As sequências
elétricas, os movimentos de câmara
deslizantes, a trilha sonora exemplar e a
cativante narração do protagonista estão
agora embutidas de uma sensação funesta que
paira durante toda a duração do filme e se
intensifica no final. Com uma duração de
3h30mins o filme salta entre linhas
temporais, avança e recua na história, a um
ritmo contido e narrado por um mafioso
vergado pela velhice. Para além da direção
sublime com que Scorsese orquestra o filme
também o desempenho dos atores deve ser
louvado, principalmente o Joe Pesci que
maravilha ao encarnar um mafioso racional e
ponderativo, em oposição aos seus outros
papéis de mafiosos que fervem em pouca água.
A nova entrada para a filmografia de
Scorsese é um grande filme, a única falha
apontável é que apesar do
CGI
conseguir
rejuvenescer as caras do trio principal de
atores as suas capacidades motoras não podem
ser modificadas, e isto é notável quando
Sheeran pontapeia o merceeiro lentamente e
sem força.
“O Irlandês” é dotado de um sensibilismo que deixa o seu
traço em cada momento. É um filme que se
despede com um plano inesquecível que ecoa
dentro do espetador: o corredor escuro e a
porta entreaberta para o quarto de Sheeran
com este sozinho e no silêncio, deixado
apenas com as represálias das suas ações e a
sua consciência, à espera da inevitável
morte e o consequente esquecimento.
Família e Sonhos em “Little Miss Sunshine”

“Little Miss
Sunshine”, cujo título em português é “Uma
Família à Beira de um Ataque de Nervos”, é
um filme de comédia e drama realizado por
Jonathan Dayton e Valerie Faris em 2006. É
sobre uma família disfuncional determinada a
atravessar o país até à Califórnia, numa
velha carrinha Volkswagen, para levar a sua
filha Olive às finais de um concurso de
beleza infantil.
O filme
apresenta-nos assim uma família peculiar e
caótica com membros muito individualistas,
cada um com os seus sonhos, problemas,
temperamentos e filosofias. Olive, a filha
de sete anos, quer participar no concurso
“Little Miss Sunshine”; Dwayne, o filho
adolescente, fez um voto de silêncio para
pilotar na “U.S Air Force”; Richard, o pai,
desesperadamente tenta que o seu negócio
tenha sucesso; Sheryl, a mãe, é
sobrecarregada com stress; Frank, o tio, é
um ex-professor universitário suicida e
Edwin, o avô, é viciado em heroína.
Os pontos fortes
de “Little Miss Sunshine” são o guião (pelo
qual Michael Arndt ganhou o Óscar de Melhor
Argumento) e o elenco composto inteiramente
por atores excecionalmente talentosos (Greg
Kinnear, Toni Collette, Steve Carell, Paul
Dano, Abigail Breslin e Alan Arkin, tendo os
dois últimos sido nomeados a Óscares que
Arkin venceu) que criaram um retrato
memorável de uma família com laços frágeis à
beira da bancarrota. O enredo desenvolve-se
como uma montanha-russa alternando entre os
altos e os baixos a um ritmo aliciante. O
desenlace da história e as várias dinâmicas
entre os membros da família tanto suscitam
risos com situações descabidamente bizarras
e cómicas, momentos reconfortantes ou
situações excruciantes de tristeza. É um
filme cativante desde o início ao fim, com
uma banda sonora que exalta a miscelânea de
sentimentos eufóricos e disfóricos e uma
cinematografia que captura coloridamente a
excentricidade desta família.
Os desejos que guiam cada indivíduo, para além
da dinâmica da família, são o tema central
de “Little Miss Sunshine”. Existe uma grande
luta dicotómica (Ganhar Vs. Perder) presente
vincadamente no Richard (pai) que defende
que “só existem dois tipos de pessoas neste
mundo, perdedores ou vencedores”, que todos
os que não são vencedores são falhados e
desistiram de si próprios. Richard age, e
citando o próprio Michael Arndt, como o
“antagonista filosófico” do enredo e o filme
desconstrói a filosofia que ele defende, a
vida não é um concurso e não se resume a
perder ou ganhar.
O filme afirma
verdades difíceis de aceitar, apesar de todo
o esforço nem todos os objetivos são
concretizáveis. Todas as personagens são
confrontadas com as suas limitações e com a
dor e frustração de ver os sonhos a
desmoronarem-se, e subsequente, é
desencadeado transformações internas e a
aceitação da realidade. No entanto, o que
realmente importa não é ganhar, mas sim
tentar e continuar em frente, encontrar
felicidade mantendo-nos fiéis a nós próprios
independentemente das expectativas da
sociedade. Estas ideias são expostas no
clímax do filme em que todos os membros da
família apoiam Olive, que está a ser
ridicularizada no concurso por não se
enquadrar no “padrão” e por ser ela própria,
ao juntarem-se todos no palco a dançar
gerando caos no evento. Olive não ganha o
concurso, mas termina a experiência feliz e
com o apoio da sua família.
Esta é uma
história de uma família que fortifica os
seus laços outrora quase quebrados numa
viagem tumultuosa, entendendo-se agora
mutuamente e a si mesmos. A velha carrinha
Volkswagen amarela que tem vários problemas
mecânicos e só pega se for empurrada por
todos os membros é uma analogia para o
funcionamento da família, encontramos
catarse ao vê-los a trabalhar em conjunto e
seguir caminho apesar dos sofrimentos
pessoais.
É um filme
energético, engraçado e melancólico, é uma
amálgama de sentimentos que resulta num dos
filmes de “roadtrips” mais memoráveis de
sempre. “Little Miss Sunshine” é agridoce,
mas reconfortante.
(2019-10-28)
“A vida é curta”: Ikiru (1952)
Daniela Graça

Ikiru
é um filme japonês de 1952 de Akira
Kurosawa - um dos grandes mestres do cinema - e
é uma das suas obras mais aclamadas.
(2019-09-28)
"Variações"
Daniela Graça

“Variações” foi o
filme português mais esperado do ano e
finalmente estreou a 22 de agosto. O filme
biográfico sobre António Variações é
realizado por João Maia e protagonizado por
Sérgio Praia.
O filme segue a
vida do cantor (nascido António Ribeiro)
desde a infância até à sua morte em 1984,
devido a complicações resultantes de SIDA. A
cronologia não é linear e a narrativa não
incide muito sobre os anos de sucesso de
Variações, optando por se focar no caminho
do cantor até ao sucesso e o final da sua
curta carreira.
É um olhar
intimista sobre a vida de António que evoca
com sucesso a paixão que o cantor tinha pela
música e o êxtase, angústia e solidão que
esse sonho lhe trazia. Dá-nos a conhecer as
suas origens, a sua aldeia, como era
apaixonado por música desde criança, a sua
vida em Lisboa e na Holanda, as suas
relações pessoais e as suas inspirações.
Mostra o seu processo criativo e o caminho
penoso, mas necessário, que teve de
percorrer para melhorar a sua arte e
alcançar o sucesso. O filme mostra os vários
obstáculos que o artista teve de superar:
ele tinha a voz e a paixão, mas faltava-lhe
a técnica, as mudanças de bandas e as
diferenças com a editora. O filme transmite
a ânsia e vontade de vingar de Variações que
foi capaz de ultrapassar todas as barreiras
pois a música era a sua vida.
António brilhava
enquanto cantor, barbeiro, pessoa e persona.
Tinha em si uma enorme sensibilidade,
ternura e tristeza que transbordavam nas
músicas que escrevia. O filme demonstra e
explora eficazmente como a sua infância e
aldeia, a sua mãe, e o seu relacionamento
complicado, porém cheio de carinho, com o
seu amante marcaram o cantor.
Sérgio Praia
encarna na perfeição António Variações, a
sua atuação é a jóia deste filme. Conseguiu
dar vida à personalidade tão peculiar,
única, extravagante e intoxicante que foi
Variações e fazer-lhe justiça.
Para além dos
cenários e do guarda-roupa que recriam os
anos 70 e 80, a cinematografia é um dos
melhores aspectos do filme, que captura com
sucesso e vivacidade a vida noturna dos anos
80, a energia dos ensaios, a ânsia e
melancolia de Variações, a calma e beleza
idílicas da terra natal do cantor que ele
tanto amava, e os momentos de ternura entre
Variações e Ataíde, o seu amante.
O filme
destaca-se nos momentos em que António canta
para o público. A qualidade da representação
de Sérgio Praia aliada ao trabalho de câmara
criam momentos de verdadeira emoção que
transborda do ecrã para o público. O filme
cria momentos inesquecíveis em que não só
compreendemos, como também sentimos como a
música pode tocar as pessoas
“Variações” não é
um filme excelente e tem as suas falhas: as
personagens secundárias têm pouca
profundidade, a narrativa tem um ritmo
desequilibrado, não aborda muito a homofobia
existente num país extremamente tradicional.
Não é excelente,
mas é um filme bom, sensível e respeitoso,
que homenageia um dos artistas mais
importantes e irreverentes do nosso país. É
uma homenagem a todos os loucos que ousam
sonhar e que persistem mesmo face à dor que
advém de perseguir esses sonhos, tal como
Variações.
António Variações
é inesquecível e inigualável, e este filme é
imperdível pelo seu valor cultural e
artístico.
(2019-08-28)
O círculo vicioso do ódio em “La Haine”
Daniela Graça

“La Haine” (1995), em português “O Ódio”, é um filme francês do realizador Mathieu Kassovitz. É um filme sobre vingança que é poderoso e reflexivo. É uma crítica social e um triunfo artístico, têm estilo e substância. O enredo passa-se em 24 horas e segue a vida de três jovens nos subúrbios urbanos de Paris: o judeu Vinz, o africano Hubert e o árabe Said.
A discriminação racial e a polícia abusiva governam nos subúrbios e a raiva ferve, e o Vinz é quem melhor "encapsula" esse sentimento. Ele encontrou a arma que um polícia perdeu no confronto do dia anterior, e sedento por retribuição e cego com raiva, jura matar um polícia se o seu amigo Abdel morrer devido aos ferimentos que sofreu ao ser espancado pela polícia.
Vinz ferve em pouca água, odeia a sociedade e principalmente a polícia, ele quer provar que é forte, que é capaz de puxar o gatilho da arma. Quem o contesta e tenta mostrar-lhe a razão é o Hubert, que lhe diz “ódio gera ódio”. O Hubert é pugilista e mais maduro que os outros dois rapazes. O Said é o meio-termo entre o Vinz e o Hubert, sendo por vezes impulsivo como o Vinz ou mais maduro como o Hubert.
“La Haine” é um retrato da juventude imigrante oprimida e rebaixada, de todas as frustrações que rodopiam na selva de cimento que são os subúrbios de Paris, e do caos, violência e falta de rumo que marcam estes jovens. O filme mostra sem rodeios o abuso do poder dos polícias e a falta de confiança que os imigrantes têm nos mesmos, quando um polícia diz a Hubert que “os polícias estavam só a fazer o seu trabalho, a proteger” o jovem responde-lhe com “e quem nos protege de vocês?”.
Tanto em conteúdo como em forma “La Haine” é uma obra de arte. O filme é inteiramente a preto e branco, com uma estrutura cuidadosamente calculada, um argumento cativante que é encarnado por um elenco talentoso, e uma cinematografia harmoniosa e bela, que faz o melhor uso possível da luz e da paisagem citadina de Paris. A câmara move-se com suavidade e precisão elevando a narrativa, o que resulta em cenas formidáveis, como a notável cena em que o Vinz, à frente do espelho, reencena o famoso monólogo do Robert De Niro em “Taxi Driver”(1976), que reflete a personalidade sonhadora e raivosa de Vinz, ou a cena em que sobrevoamos sobre o bairro onde os jovens moram enquanto um DJ toca o seu “set”, cena que caracteriza o movimento artístico de uma geração e demonstra a situação social.
“La Haine” é um espelho da nova França multiétnica. É um filme emotivo e marcante, que evoca reflexão sobre a sociedade e o círculo vicioso do ódio. Haverá maneira de contornar este círculo ou até mesmo quebrá-lo? Ou estaremos condenados a permanecer neste círculo odioso? O final de “La Haine” é inesquecível, as palavras de Vinz ecoam no escuro depois dos tiros: «É uma história sobre uma sociedade que cai, mas que se vai dizendo, para se tranquilizar: “Até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. O importante não é a queda. É como se aterra”». Ódio é um sentimento definidor e destruidor da humanidade.
Passaram 24 anos desde a estreia de “La Haine” e continua a ser uma história relevante na nossa atualidade, é uma história sobre a condição social, a renúncia da autoridade e ódio que se aplica ao passado, ao presente e ao futuro.
(2019-07-29)
“Persépolis” e a importância da essência
Daniela Graça

“Persépolis” é um filme francês de animação de 2007, e é baseado na banda desenhada autobiográfica com o mesmo título da autoria de Marjane Satrapi, que juntamente com Vincent Parannoud realizou o filme.
O filme segue a história da pequena Marjane até se tornar numa adulta. É um filme de pequena duração, com pouco mais de 1 hora e meia, mas que encapsula uma grande história, não só a de Marjane como a da sua família e país. É uma obra cativante pela sua forma e conteúdo, pela sua personagem principal cheia de vivacidade e personagens secundárias caricatas e intrigantes.
“Persépolis” é contado através dos olhos da jovem, como ela perceciona os acontecimentos e as opiniões dos seus familiares, e inicia-se com a Revolução Iraniana de 1979 e com a queda do regime do Xá. Marjane cresce e o mundo muda, um regime opressor e violento instala-se e uma guerra, que irá ceifar milhares e milhares de vidas, desenrola-se. Ela continua a crescer, a questionar-se a si mesma e ao mundo, muda-se para Viena onde se sente isolada no frívolo e frio Ocidente. Volta para casa no Irão onde se sente desconexa.
Crescer é uma tarefa árdua e confusa por si só e Marjane cresceu em circunstâncias assustadoras, perdeu parte da sua família nas mãos de um regime tirânico, experienciou a guerra, foi oprimida e controlada por uma ditadura sexista e religiosa. A jovem passou por momentos em que se perdeu, se isolou e até negou a sua identidade, momentos em que parou de lutar. “Persépolis” é sobre Marjene e as suas convicções, gostos, crises de identidade, falhanços amorosos, depressão, raiva e alienação tanto no estrangeiro como na sua terra natal, e é também sobre o mundo que a rodeia, o país em ruína, guerra, imigrantes, família, raízes e ideais. É um filme provocativo com uma animação que transborda de estilo e criatividade.
A animação é maioritariamente a preto e branco, exceto as poucas cenas passadas no presente que são coloridas. A animação no estilo de banda desenhada demonstra eficazmente tanto o mundo fantasioso de uma criança como a sanguínea realidade da guerra, joga com a luz e escuridão, enquadra e contrasta criativamente, e faz uso de silhuetas, sombras e reflexos, assemelhando-se por vezes a um teatro de sombras. A animação exalta a história convoluta e o diálogo inteligente, tocante e humoroso.
“Persépolis” é tremendamente multifacetado, desenvolve os mais variados assuntos, mensagens e valores. É um filme pessoal e honesto, o que o torna tão marcante e emotivo, e com muito por onde refletir. É uma homenagem sobre a nossa essência, as nossas origens, aquilo em que acreditamos e aqueles que viveram e morreram pelos ideais justos. É um manifesto sobre ter orgulho de quem somos e nunca esquecer de onde viemos, tal como a avó de Marjene lhe disse “permanece sempre digna e integra perante ti mesma”. Nunca devemos perder a essência de quem somos, mesmo nos momentos em que nos falta esperança e força. Devemos seguir em frente, sempre, tal como Marjene.
(2019-06-29)
Como “Os Filhos do Homem” (2006) se distingue no género de ficção-científica
Daniela Graça

“Os Filhos do Homem” (2006) do realizador Alfonso Cuarón é um filme de ficção-científica que engloba drama, suspense, ação, política e guerra.
O enredo do filme é simples: é 2027 e o mundo caiu no caos porque a humanidade é infértil. A Grã-Bretanha tem uma política extrema de anti-refugiados. E Theo, um ex-ativista, concorda em ajudar a jovem imigrante Kee, que milagrosamente está grávida, e levá-la até um santuário fora da Grã-Bretanha onde ela e a criança estarão protegidas.
A premissa simples de “Os Filhos do Homem” é o que o distingue do típico filme de ficção-científica, não existe um mundo fantasioso com uma história e mitologia complexa, criaturas sobrenaturais ou tecnologia avançada. O filme apresenta-nos uma distopia duma realidade familiar à nossa passada no futuro muito próximo. É devido a essa mesma proximidade ao que conhecemos que o filme se torna arrepiante.
A história é elevada através das personagens, todas elas extremamente bem desenvolvidas refletindo a humanidade no seu pior e melhor, e os respetivos atores que as encarnam talentosamente. Tanto os atores principais Clive Owen (Theo) e Clare-Hope Ashitey (Kee), como o elenco secundário Michael Caine (Jasper), Julianne Moore (Julian) e Chiwetel Ejiofor (Luke) têm performances magníficos, demonstrado a intrínseca complexidade da natureza humana face ao desastre e as suas diversas reações.
Cuarón cria um mundo sem futuro e assombrado pelo passado, um mundo com escolas e parques vazios, sem risos de crianças. A humanidade está estagnada, sem esperança e sem rumo. Em Londres vemos pessoas esgotadas, ruas sujas, e bombas explodem. Instalou-se uma severa política que discrimina e persegue refugiados, são criados campos de concentração onde são retidos. As forças militares são violentas e xenófobas. Grupos radicais extremistas surgem para combater a desigualdade com violência. Neste ambiente nocivo o bebé milagre de Kee seria usado como peão político, e como tal, eles têm de escapar da Grã-Bretanha.
O filme alterna fluidamente entre momentos de reflexão, demonstrado o desânimo inerte, e os momentos de fuga e de luta pela vida, em que a camara segue as personagens tremendo e é atingida por sangue, como num documentário de guerra, magnificando o perigo em que se encontram. A cinematografia tem como palete de cores tons frios, sombrios e esbatidos evocando o sentimento de decadência. A trilha sonora exalta o caos, um exemplo marcante foi “In the Court of the Crimson King” de King Crimson, uma canção mística e fúnebre, que ecoa sobre planos da precariedade de Londres, uma cena tão assombrosa que me causou arrepios.
Cuarón demonstra eficazmente em “Os Filhos do Homem” como a humanidade engolida por medo e desespero se prejudica ainda mais, caindo em violência e caos, perseguindo e magoando-se uns aos outros. Mas no meio de toda essa angústia quando a esperança finalmente surge, como um ténue raio de luz, consegue mover o coração humano mesmo nas situações mais adversas.
O filme tem uma grande carga emocional e o espetador fica investido devido às personagens. É ficção-científica, mas os temas são reais e importantes na nossa atualidade, faz nos questionar a situação e a moralidade de políticas de refugiados e guerra, faz nos refletir sobre o Homem e as suas atitudes, sobre o nosso futuro, ou melhor, a falta de existência do mesmo.
“Os Filhos do Homem” é revigorante, é um dos filmes de ficção-científica mais distintos e refletivos do nosso século. É sentimental sem cair em dramas supérfluos, é filosófico sem se tornar elitista ou massacrante. É acima de tudo refletivo, honesto e humano.
(2019-06-08)
O sonho de Wadjda
Daniela Graça

“O sonho de Wadjda” (2012) é um filme
de drama e comédia realizado por Haifaa
Al-Mansour. É a primeira longa-metragem
realizada por uma mulher na Arábia Saudita.
A história segue a vida da jovem rapariga
Wadjda que sonha em comprar uma bicicleta e
andar nela livremente.
No entanto a
Wadjda vive numa sociedade machista e
patriarcal que a restringe em vários
aspectos, sendo um deles, o simples acto de
andar de bicicleta. Este sonho é desaprovado
pelos seus pais, professores e sociedade
porque “não é uma coisa de meninas”. Só o
vizinho e amigo dela, o Abdullah, a apoia. É
uma premissa simples, mas contada com muito
coração.
A Wadjda é um
espírito-livre e não desiste, engendra
vários planos para poupar dinheiro como
vender cassetes, pulseiras e implorar à sua
mãe (o que não resulta). Quando estes falham
ela entra no concurso de leitura do Corão
cujo prémio monetário é o suficiente para
comprar a bicicleta.
Um dos aspectos
que mais gostei foi a direção de fotografia
que proporcionou uma composição de
fotografia harmoniosa, agradável e colorida,
o que reflete imenso a Wadjda e toda a sua
juventude, humor, rebeldia e força de
vontade.
O filme mostra uma realidade que muitas mulheres vivenciam, mostra como se têm de tapar para não serem vistas por homens, como não podem cantar para não serem ouvidas por homens, como não podem conduzir, enfim, como são restringidas em tantas coisas. Mas mostra também a beleza da juventude, das amizades e da relação mãe-filha. E mais importante, mostra como os sonhos, os nossos objetivos e aspirações, são uma parte fundamental de quem somos e que por mais que tudo esteja contra nós, devemos persistir e continuar a lutar.