Afonso Dias

reflexões in verso

Afonso Dias

vem aí...

vem aí...

não será ainda o tempo
das fanfarras

virão talvez serôdias
as cerejas

serão mais duvidosas
as certezas

há que ter afinadas
as guitarras

cavalo peado não trota
no cascalho

dá-lhe rédea alumia-lhe
o caminho

uma côdea e uma lasca
de toucinho

acalentam em estradas
e atalhos

se é muito o frio veste
a roupa velha

da que te vem do tempo
dos reis magos

mas aos filhos não faltes
com os afagos

de algodão e linho
e lã de ovelha

e de ternura nas mãos
plena e clara

lambuza-te sem temor
do exagero

perfuma a cama e a açorda
com o (melhor) tempero

para a vida que aí vem
e é tão severa



das efemérides

das efemérides

a bosta comendada é tentadora
o vislumbre da mama é sedutor
escorre baba a gula desalmada
mas está tão cara a vida sô doutor
é chapa ganha e gasta sobra nada
mas há sargos na cova do vapor
talvez ajeite a janta se os catar
tenho é que aprender a esbracejar
e treinar as braçadas um bocado
pode ser que atravesse o tejo a nado
e ainda chegue ao resto de repasto
a reforma espreme-me a coragem
e a algibeira rota é uma aragem
que espalha espirros pelo peito fora
o carrocel parou pois é agora
que eu vou dar a voltinha já fechada
o algodão doce não me sabe a nada
nem lembranças me vêm de namorar
quando a falta que fazia era cantar

vou é ao mar da palha mijar de alto
e a segurança social tomar de assalto
pode ser que venha o euromilhões
e ainda me vão ver nas digressões

ah faz anos o 25 de novembro
ena com caneco grande assombro
com tanta trapalhada mal me lembro
da elke sim a alemã acolhedora
cantava-se então a guantanamera
e comia-se arroz para a caganeira

ora nova corrida nova metáfora
que sempre se aprende outra maneira


golpe de vista

golpe de vista
          aos burocratas bem sucedidos meus amigos mais ou menos
          (já que acordei bem disposto)


ó que belo olho de vidro
refulgente
que até semelha em brilho
o diamante
quase parece o traste
inteligente
sendo apenas um cegueta
um pedante
mas tem curso de lacaio é um
pingente
um berloque do poder
o meliante

nada cria que se veja
pois não pensa
do outro olho é vesgo
e não lobriga
a mor distância que a pró-
pria barriga
perito é só em rimel e
cagança

não vê ponta de corno
a avantesma
é um espectro de pus um
avejão
um molusco gastrópode
uma lesma
uma bosta de trampa
um cagalhão

que deus noss’nhor nos forneça ‘ma infinita dose da sua mais santíssima
paciência
que ajude a penar esta
penitência


crónica de agosto (em dois tempos)

crónica de agosto (em dois tempos)

tempo primeiro

tão amigos que somos e tão tolos
zurzíamos nos fachos que nem ginjas
já o sol se punha pela cerveja abaixo
da goela depois veio-te a covid
e foi uma semana sem ver gajas
vá lá que havia sopa congelada

a pressa que eu tinha em ir à fonte
que é estéril como o bispo do seixal *
(bom negócio de esquerda dos valentes
e coçar bem as virilhas dá comenda
canta a conta camarada a conta)

já a meteorologia é uma vaca
arde a serra ribanceira abaixo
cinzento é de cinza este fumeiro
e o covão d’ametade ** vai enxuto
“leva nisto e não chove” diz-se em lagos

n’igreja de santo antónio *** brilha a talha
tinha eu tantas saudades tinha tinha
e atracou o comboio fez cem anos

               * restaurante no seixal
               ** lugar ao cimo do glaciar de manteigas
               *** em Lagos

tempo segundo


vive o vírus
verga a viga
vilegiatura
vigiada
vigilante
diligente
diligencia
a dedada
formatada
formatura
olhós três
da vida airada
olho por olho
é bisolho
não é terçolho
o hordéolo
é rima mal
amanhada

uma maçada

qualquer maré
do mar é
e é do banheiro
a braçada
anca coxa
perna e pé
anatomia
artilhada

não baza israel
de gaza
mas não goza
com a maralha
que acordada
é teimosa
e tem a meta
traçada
na síria é
o que se vê
só metralha
desvairada
iemenita
a tormenta
seca de sede
esventrada
ucrânia
martírio cego
zaporíjia
atomizada

o papa faz
homilias
e as rezas
não dão em nada
esganai
os filhos da puta
antes da noite
fechada
a geostra-
tégia é uma
valentís-
sima
cagada


em alexandrino
               da insónia

em alexandrino
               da insónia

gelada vinha a noite           que de enfado fervia
e a madrugada tonta           sonâmbula riscava
a sombra do meu melro          planava as colcheias
que floriam aladas           pelo mestre da vigília
invadiam os gatos          o casario altivo
pé ante pé subiam          ‘té ao silêncio nu

lá fora a humanidade          ó desordem das horas
p’lo mercado vagueia           à luz do tempo cru
imundos são os pombos          que cagam as varandas
(natureza imperfeita           haja deus que lhe acuda)
de alerta tudo vejo           nesta atalaia azul

e ao despertar serôdio           eu solto a caramunha
que ao menos a poesia           me adormente a alma
se o corpo não comando           todo em nervos aceso
que a boa musa cante           uma cantiga branda
e a paz me embale ao colo           da bonançosa lei
fundido seja o ferro           que as insónias ateia
e floresça o sossego           em leve sinfonia


a um irmão do meio

a um irmão do meio

pertenço a uma ampla e generosa irmandade, com um irmão de sangue — pilar maior
do meu edifício interior — e vários irmãos que a vida, generosa, me ofereceu:
irmãos do meio

sempre estarás
irmão do meio
eu sei
porque tu és de ficar
e até mesmo quando
o absurdo paradoxo metafísico
me fizer ausente
das vespertinas tertúlias
arrítmicas e perfeitas
onde sempre foi possível
encontrar o olhar exacto
e ver nítidas as certezas
em redor da mesa franca
enlevada de vinho fresco
e risos luz

quando eu me ausentar
pelo incerto fogo
com o enfado dos fados
consumado
e a desvalida voz
ajoelhada
sei que me trarás
ainda uma vez
irmão do meio
o transtorno risonho
dos teus arpejos brutos
e as migas verdes
da tua terra plana e franca
e haverás de mergulhar
o olhar tranquilo
sempre mais fundo
no código das dúvidas
que não alcanço

irmão do meio
incansável conquistador
de ternas mágoas
sei que lograremos alcançar
em desacordo pleno
os desígnios ainda nem sonhados
e que fazem falta
como bem sabemos


vila franca de xira

vfx
                    1969 no funeral de alves redol

era um tempo de pranto recolhido
e o respeito viu-se profanado
as bestas atearam a algazarra

e a guarda brandiu as baionetas
esfacelada foi a brita de soluços
tropel de ferros palha blanco abaixo

chispavam os cascos nas escadarias
e voaram paralelos das calçadas
indignava-se o sangue franco e leve
que vinha honrar o homem que partia

um algoz tombou de borco na calçada

era novembro em vila franca e frio
e nunca mais a noite foi serena
para quem a alvorada conspurcava


do louvor e da mentira

do louvor e da mentira

é manca a mentira
ainda mais a bênção
fendida é a parábola
que desde a escritura
eleva a palavra
ao pico do céu

purifica-se o canalha
no gesto da benzedura
e se envolve no fedor
a assinar a redenção
do pecado da vileza
o pus em que se lambuza

na alameda dos desvios
a verdade é a cabra-cega
e a mentira caga-tacos
que é baixinha e sorrateira
lá do bojo bolça podre
faz batota pela medalha
e no colo generoso
de deus padre espírito santo
nas boas graças se aninha

(parece deus distraído
em parte incerta tomado
ai jesus que estou lixado
)

e
eu persigno-me
eu genuflicto-me
eu arrasto-me
eu arrojo-me
eu penitencio-me
eu cilicio-me
eu humilho-me
eu vexo-me
eu atormento-me

(e o divinal conforto não me acolhe
nem me sossega o da autoridadezinha
)

socorre-me o camões
amigo velho
“os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos...”

e então
arrenego-me
arrepelo-me
excomungo-me
anatemizo-me
amaldiçoo-me
abrenuncio-me
vade-retrío-me
satanizío-me

mas
fatigo-me
enfado-me
enjoo-me
ai…

até que por fim
apaziguo-me
tranquilizo-me
sereno-me
conformo-me
resigno-me

e concluo
uma vez mais

estupraram-me

de novo


das guerras

das guerras

a mulher abusada no ventre de tudo
é um novelo de luto que me envolve
na notícia diária estupro alarve;
uma criança a florir morte no sorriso
é bênção nula do natal que vem avesso
escárnio da natureza retorcida e ferro
sobre a pureza da neve em flor inerte

ecuménica a dor de verbo e a prece
diversas como a indiferença tanta
e a maldade cinzenta tão fervente
que deus nem imagina a geografia
que a rosa dos ventos não acolhe
plena que é de norte e sul e este e oeste

ó maldade maior és cega e surda
e não lambes do vento todo as lágrimas
de sangue e sal das latitudes doidas

a dor viva iemenita e palestina
ou tibetana ou síria ou afegã
e ucraniana sede justos
pese o diverso carimbo dos ferretes
é igual na mulher mágoa chaga inteira
tão grande é e sem caução do poder cego
que tudo pode em todo lado e é sempre igual
indiferente é o sotaque e a gravata

barbaridade é o que barbariza
e nada floresce sobre o entulho
de betão de música e de ossos
fazer mal é maldade sempre ouvi
pecadora maior a indiferença
e o poder de deus (dos deuses) feneceu

pela areia pela lama pela neve
leva a mulher os filhos e a vida
poesia do útero e vital encargo

não dar a outra face é dignidade

(as lágrimas daquele homem que dor tanta)
vergonha é ser capaz de não chorar


recomeços

recomeços

o desamparo da memória
ralenta as cores
e enxota os sons

emudecem os guisos
das seis papoilas
sisudas
cinzentas e desasadas
na ladeira sem erva

na fuga da memória
pelas esquinas
os passantes não passam
arrastam silêncio
imóvel e sombrio
sem livros e cerveja

não se abraçam os homens
porque
acabaram os golos
nas balizas que já não há

a ternura ausenta-se
suspensa e serena
e não há frio

há silêncio apenas

pausam as vitórias
nas pedras por legendar

infinita é a pedra intocada
e a memória que perdura
em vida fresca

vitoriosa é a calma
plena paz


prime time

prime time

a senhora da tv
teve um orgasmo
ortofónico
e dois
e mais
até que por fim
articulou consolada
“ai a guerra meu deus !...”
mas deus não estava
prá ditadura do prime time
não estava para aí virado
para aí vidrado
para a guerra

nem de frente
nem de costas
estaria mais de soslaio
de viés
na esguelha
no sossego
dos santuários
quiçá mais disponível
para rezas
vigílias calmas
civilizadas
como o chá de camomila
que apazigua pela sonolência
e pelo sexo nunca

ai o sexo
esse descabelado,
desembestado
destrambelhado
descontrolado
todo tremuras e “chiliques”
que não pacifica
antes acende os carnavais
mas enfim
enxota as aranhas
e sossega
os temporais
os interiores

mas os demais
dos negócios
da indiferença
dos lucros
dos eunucos
que vestem trajes de medo
fardam velho e vingativo
e trazem o pecado antigo
que sempre há
e que tem
de expiar-se
de pagar-se
agora ou logo
como é de lei
como é da lei
do castigo

ejaculai metralha
eu vos digo
pagai com metralha nova
a velha metralha
tatuada
de silêncio morto
(mais velha é a estupidez
do que o divino)

é preciso
que haja sempre alguém
sempre novo
de novo
a pagar o pecado
da mãe
da avó
do avô
do tetravô
de herodes
de judas
de stalin
de hitler
da harpia que os pariu
da mulher que os rejeitou
do phalo que não se ergueu
do pai tirano
da santa ingrata
da santa ingrácia

que não acaba uma obra
que não acaba

ámen
caríssimos irmãos
odiai-vos uns aos outros
(e nem perdoeis
os inocentes
os colaterais)

queridos poetas
por onde andais
a minha porta está sempre aberta

entrai


poema do borda d’água

poema do borda d’água

cada dia é de seu santo
e hoje 6 de fevereiro
domingo e sem pinga d’água
é o da santa doroteia
e mais de são paulo miki
(escrito assim mesmo com K)

certifica o borda d’água
almanaque lá de casa
longevo como o dianho
de noventa e três invernos

mais vos digo que lá li
que neste dia nasceu
em mil seiscentos e oito
um menino que haveria
de vir a ser o vieira
que conversava com os peixes
e sermoava aos escravos
em terras de vera cruz
onde floriu o carnaval
mais a santa bossa nova
ambos ora amordaçados
pela bolsonaria peste
e as coroas de veneno

(mas por onde é que eu já vou
que ainda acabo no amor
ou a falar passarinhos)

o borda d’água é que veio
visitar este poema
apareceu-me ele em seia
ali à serra da estrela
pela mão da mulher búlgara
a quem eu dei os dois euros
que melhor gastei na vida

sábio das ervas de cheiro
e dos tempos de plantio
de chuvas neves e orvalhos
do oráculo das luas
dos dias disto e daquilo
de festas e romarias
de horóscopos e purgas
que limpam o intestino
de rezes e pastorícia
mestre em marrãs parideiras

conhece os santinhos todos
o meu mestre borda d’água
que me alagou a lembrança
e me trouxe felicidade
(e a falta que ela me faz)
e com fumos de hortelã
me deu estes versos tolos
que ora aqui vão perfumados

ficai ainda a saber
que o sábado dia 20
‘inda do mês fevereiro
tem por santo o eleutério
e nele nasceu o nemésio
da terceira o bom poeta
e é o dia mundial
da justiça social

vem tudo no borda d’água
que é culto e tem serventia
ora lede ora estudai

6.2.2022


69 adolescente

69 adolescente

quando eu morrer fala comigo que
eu estarei lá como no tempo súbito
em que primeiro nos encontrámos
e havia uma encosta de rosmaninho
a trepar ao topo das coisas loucas

o sonho animava os homens dizia o
poeta e a voz do manel trovador
trazia um sorriso morno e grave
a derreter surpresas e a inaugurar
a vitoriosa revolução de cada dia

sedentos éramos de flores e de cantigas
e sabíamos o ritmo exacto dos girassóis

a dialética era então uma cachopa linda

no tempo das certezas sabíamos as dúvidas
e viajávamos estradas que ainda não havia

quando eu morrer olha-me serena e que
os olhos com que me vejas  vivo e sempre
venham de nuvem  flutuem o tejo de aventuras
e afrontem o horizonte ainda além
onde no mouchão por cima da maré alta
a ternura toda ainda lá está   que eu sei

16.1.2022


boca de cena

boca de cena

fino fresco e sempre jovem
dói o amor de mansinho
como as saudades boas
que trago fundas no peito
as saudades de sentir
o que sentia nas vezes
em que fui feliz e tanto
que até os sonhos seguiam
pelo caminho dos sonhos
e as certezas eram certas
e as horas pontuais

e digo-vos porque o sei:
muito bom é gostar muito
de lugares coisas pessoas
e também de ter saudades
mas que as saudades boas
não ardam em nevoeiro
que embota o exacto tino
que deslinda o bom caminho
porque é preciso ter pressa
e há tantos passos a ir

(a contar do dia de hoje
nos 100 anos que hão-de vir
estarão mortas as pessoas
que vivas estão agora
e sabe-se lá que mais
surpresas virão aí)

       tanta dor tão pouco tempo
       quem se atreve na conjura
       quem ousa a subversão

lembram a urgência do amor
de que o Eugénio falava ?
                   é agora      é agora

e é por isso saber
que tenho de ter aberta
a cortina deste palco
e mantê-la escancarada
plantar degraus e estender
a rampa dos precisados
da plateia ao proscénio
que é aqui de onde se alcança
a fila de lá do fundo
para que possas subir
tu e ela e eles e elas
mágica conjugação

com a cara aberta e o braçado
das máscaras que frequentas
a anunciarem sombras
medos dúvidas equívocos
e as certezas que houver
e ainda as marés propícias
que cativam a marinhagem
com o cio do mar magano

traz lágrimas arco íris
matizes loucos de luz
e dores de luxúria e espanto
flores e pó deserto e verde

traz harmonias vibrantes
“canta que ninguém te afronta”

sobe até aqui à ribalta
traz o que te cabe dentro
e desvenda plenamente
tudo o que é memória velha
e carrega uma ciência
amalgamada nos olhos
que sabe os saberes de tudo

traz os meninos corados
lisos de pele e sorriso
mas também as fomes doidas
hirtas de gelo transidas;

nas lembranças que trouxeres
embala também os homens
que erguem aos arranha céus
os píncaros de néon
calos de tijolo e penúria
e tardios se aconchegam
em tremuras de tugúrio
com filhos de olhos redondos
todos de súplica e espanto;

homens arma ferro e lama
fome e fronteira cerrada
barco náufrago infectado
tempo e pó desamparado;

desamarra as tuas mãos
e oferece-as como guarida
àquelas mulheres sombra
que sibilam no silêncio
uma novena de medo
temerosa e ofendida

e aos meninos surpresa
que posam infernizados
nas teias da indiferença
puta velha e proxeneta
anafada de miséria
com eles canta o um-dó-li-tá
que enxote a bruxa pra lá

e grita pela urgência
dum tapete de cetim
que se estenda sobre os cardos
que só picam pés de pobre

tanta dor tão pouco tempo
vida breve vida breve
quem se atreve ai quem se atreve

28.12.2021


poema para jovens como eu

poema para jovens como eu

enorme era o quintal e era o tempo
gigante o pai e forte mais que a noite
a distância mais longa do que o vento
desmesurada a espera pela aurora
tudo era imenso na verdura
pequeno era só eu sei-o agora

no tempo cresce o corpo mirra a ideia
mingua o linho novo em água fresca
encolhem os lugares e as figuras

passo a passo menos são os passos
carecidos pela fome do caminho
e se tudo se aclara na viagem
mais pequeno se faz o que atrás fica

atenta pois nas redes e nos ecos
que mordem as canelas da frescura
lembra-te antes do vermelho gordo
que tinham os morangos pelas leiras
no tempo em que tudo era à medida
do tamanho exacto da doçura

sempre que voltares à casa velha
verás a antiga escola pela sombra
que alaga o cristalino nos teus olhos
e apouca a redonda arquitetura
sem arestas a acoitar papões
(que grande era o recreio que afobava
no um-dó-li tá do mata e dos piões)

melhor que não voltes antes deixa
no teu olhar que tudo guarda inteiro
o tamanho das coisas que elas tinham
no corpo que elas são o que elas eram

e se quiseres há-de quedar intacta
a estatura de tudo   a verdadeira
como ela era antes da saudade
que sempre se quer alongar sozinha

conserva os risos claros desdentados
e os de dentes novos   incompletos

a caçoarem dos teus nervos inquietos

30.11.2021


trava línguas sanitário

trava línguas sanitário

vêm no vento venenoso
crestados coiros curtidos
brando bando de abetardas
a alisar lisos alísios
em azáfama as azêmolas
de azia azeda azoadas
cargas carregam custosas
mas curvam costas corteses
em vénias de viés viscosas

arre corre cabra crebra
ralha a velha e ajoelha
ao altivo altar que alteia
a fé que febril se finca
na devida devoção
e anciosa a anciã
tonta bronca atarantada
tontices tartamudeia

catequisa o catecismo
administrativado
e leis leais  lerdas  ledas
levitam leves ao largo
parvas patranhas pategas
sem semelharem semente
vereadeia o vereador
do encargo encarregado

incham bichas tou lixado
bichos no bucho estrebucham
nemátodos ascarídeos
ditas lombrigas que à bruta
me desarrumam  a alma
intempera-se-me o intestino
- salva  sanita  saneia
que a tripa do tipo trippa
resolve e devolve a calma

23.10.2021


o meu sítio

o meu sítio

no meu sítio
     (que é onde eu quero)
sei aonde estão
a cómoda
a prateleira
o estendal
a paisagem
o computador
as fotografias
as flores
e sei
o lugar da mesinha dos segredos
à cabeceira da cama certa
com a gaveta velada
maçónica
atulhada de truques
e duendes cúmplices

porque é no meu sítio
     (por muito que o meu sítio mude de sítio)
que está o altar da segurança
e o azeite sem acidez
a alumiar o apetite
e o leito ajeitado
ao baloiço das madrugadas exactas

e eu preciso sempre e tanto
de voltar ao meu sítio
que é onde sei que é
a certeza

às vezes distrai-se o amor
e perde-se
no meu sítio
     (que é os meus sítios todos)
e a perdição de amor
instala sempre um frio
muito azul
com ressonâncias boreais
cálidas e mentirosas
a prometerem ondulações brandas
onde a beleza prometida
só gela inércia lúgubre
e mais nada

mas tudo é perfeito
e resolúvel
no meu sítio
     essa é que é essa
e surge sempre na carência dos actos
um gesto sábio
que vem porque é preciso
a desenhar os caminhos
por onde seguem as horas

e porque é tudo verdade no meu sítio
o medo fica sempre lá fora
arredado dos lugares de abrigo
que ergo em volta
de todos os sítios
do meu sítio

às vezes
arrepios impertinentes
afloram tolos
pele adentro
mas são de afecto
apenas
e fazem falta

regularmente a insónia
vem aos solavancos
e o tempo fica desolado
e bêbado
a cambalear as horas
porém outras vezes
a insónia vem clara e recheada
de poemas e afagos
ou de preguiça
a reclamar vigília
ampla e generosa
qual ama de leite
flamenga e plena

e pela vigília viajam risos
e embaraços
com pessoas
e luz
inquietação
e sombras

tudo falta
e tudo há no meu sítio
e é assim que tem de ser

no meu sítio
até há
uma voz permanente
a ditar acordes a jobim
e uma canção de paul simon
a tecer as cortinas
que não há

“let us be lovers...”

sem o meu sítio
cá dentro
não teria para onde voltar
depois de ir

26.7.2021


zanga e frutos vermelhos

zanga e frutos vermelhos

s. teotónio martírio
de mui longes himalaias
ferve em mirtilos e amoras
especiarias no vento
acenam reis do oriente
às framboesas que choram

ao sudoeste acabrunhado
arribam bandos de pobres
mais pobres que na charneca
onde a pobreza é secura
silêncio desembestado

monta a banca no convés
o corleone assanhado
camarata sem chuveiro
poupa na água da rega
o metro quadrado é cego
e é cego o papel selado
não venham cá com o governo
se o sef não fala pobre
venha o oftalmologista
fazer o nó da gravata
ao ministro enevoado
caem pobres na falésia?
floresce a infecção?
proteja-se o contrabando
salve-se a conta-corrente
e a alta-cilindrada

para quê tanta ralação?
são só pobres quase nada

e a indiferença ecoa
no peito dos himalaias
não deixes que no teu peito
o que é bom se desvaneça

e o caril esvoaça a lua
e o estado não estuda o molho
que no oriente em odemira
fede algemas requentadas
suor de almas penadas
que penas penam cá longe

só a santa paciência
cofia o bigode à morsa
e azeda-me a brotoeja
que até o surrealismo
se me entra em ebulição
iscas com elas entoam
serenatas aos pategos
e a água benta do caldo
fede na boca ao ventura

e o xico do cêdêesse
que sim sem saber o quê

valha-me o s. teotónio
boa pessoa acho eu

cuidai lá de quem precisa
digo eu à governança
bandidos é na cadeia
acreditai no que digo

e acendei os sorrisos
só para quem os merecer

pronto

4.5.2021


a consciência

a consciência

a consciência é uma casa
lúcida e perfeita
uma pureza de traço
no ritmo claro
do tijolo
do compasso
da esquadria
da luz
do aprumo

uma arquitectura firme
pousada sobre
o registo obsessivo dos esquecimentos
e a impertinência autoritária
da memória

um espaço aberto
a luzir neurónios
desvelados e atentos
temerosos só de raras sombras

    harpias de agoiro
    a semearem névoa
    a encardirem a lua

impressiva é a seiva
inoculada pelo berço
pelo seio
pelos braços
os abraços
os brindes
os versos

a consciência não precisa de recordações
(nem a natureza)
por recursos carece apenas
dos códigos impressos
na nuvem certa

feitos de percurso
com gente
e afectos

e vénias de gratidão


29.4.2021


romance de abril

romance de abril

cheguei nu e enfezado
ao meu ponto de partida
já gambuzinos planavam
a falésia de peniche
e o big brother ardia
no forno do ali babá
nem o orwell sonhava
com a maldade que viria
setenta anos após
com a TV da maminha
e bicep afiambrado
na basófia tatuada 

(e já me foge a ideia
que me surgiu à bocado) 

nas vésperas rezava o terço
a avó noiva beata
e a cantilena das velhas
cruzes e credos ao alto
zunia pelas orelhas
do cachopo atarantado
aspergido de água benta
e de incenso fumegado 

e já pingava o almesse
dos beiços do requeijão 

o xixi era lá fora
no cerrado ao pé das cabras
e a geada mordia
no fundo do pé descalço 

vestida a camisa breve
tal qual reclama a verdura
já o polícia sinaleiro
num flamengo aprumado
bailava no areeiro
com luvas de casamento 

e o salazar sempre velho
era o alecrim aos molhos
com cheiro a naftalina
e uma sombra de ferros
acesos lá na lonjura
abria sulcos no olhar
das mães frieza e susto 

(as miúdas eram giras
e a gente bem as mirava
com fartura de sorrisos
e acenos de ternura
na liberdade pequena) 

faziam tanta impressão
os tempos de há tanto tempo
qu’inda bem que já lá vão 

velhice é só o que fica
a entupir a memória
do luar amordaçado
e da morte temporã
soprada a ventos do sul 

e o pouco comer que tinha
nesses tempos dum cabrão 

(e um medo redondo vinha
pala incerteza da noite
sem margens e sem veredas) 

há já quarenta e sete anos
que deixámos essa vida 

poetas voaram leves
novos refrões afinaram
novas discórdias floriram
a surpresa alagou tudo 

e é assim que vamos indo 

com cuidado 

10.4.2021


sombra e cor

sombra e cor
        poema para a Carolina

as luzes aludem à luz
e a cor ajeita-se

ao acto
que ilumina

e a treva não é bem vinda
a este namoro

por isso se inclina
a sombra
no outono
submissa ao solstício
revelado 

e a sombra não desce
à condição da treva
pois é aí que a noite se recolhe
na plenitude
do silêncio

por isso a sombra não tem cor
e no impasse
claro e escuro
só tem respeito
e regra

e mesmo que a anunciação do sol
ainda tarde
sempre a cor se revela
impertinente
e sábia

e há uma paleta de abelhas
a esvoaçar o douro
e os himalaias todos
numa orgia de pólen

com mel
e vinho
e líbido
e andorinhas livres

é sempre certa
a mistura íntima
do cio
e dos segredos

25.3.2021


poesia nossa de cada dia

poesia nossa de cada dia

tem a altivez da esteva
e a agilidade que leva
quem só da luz é cativa
mas não sofre maladia
transtornada compulsiva
a poesia

dos caminhos é maestra
na indisciplina é destra
e em arco íris viciada
da preguiça é senhoria
em piruetas desbragada
a poesia

não está sentada no horário
nem estuda o abecedário
tim-tim por tim-tim exacto
bebe o vento da maresia
que a inspira e sai barato
a poesia

o mestrado em vadiagem
é o sextante da coragem
que tem no olhar vagabundo
em aventuras porfia
na decifração do mundo
a poesia

não usa grau ou canudo
mas com olhos de ver tudo
vê tudo o que importa ver
no longe de cada dia
está no pensar e no ser
a poesia

sendo livre é prisioneira
do bem que persegue avara
e é escrava da claridade
mas tem carta de alforria
doutorada em liberdade
a poesia

4.3.21


olhar

olhar

mesmo de soslaio
pelo rabo do olho
disfarçadamente
um ponto de vista
se instala no fito
olho arregalado
do ver evidente
do olhar do artista

dilata a pupila
arrepia a iris
o cílio cicia
arqueia o sobrolho
pálpebra tremente
olho de perdiz
o olhar de dentro
na lágrima ardente

  

trata-se de olhar
trata-se do olhar

  

seja a piscar, a contemplar, a observar, a fitar, a espreitar, descortinar, a mirar, a piscar,  a avistar;
com olhos que choram, que riem, que interrogam, que perscrutam, que suplicam;
de olho vivo, olho de lince, olho de águia, olho de água;
à  vista desarmada, ou a olho nu;
de um golpe de vista, de uma olhadela, com olhos de ver;
olhos nos olhos, olhos espelho (da alma que avisa);
mas nunca pitosga, cegueta do tipo “mais cego é quem não quer ver”
(e nem oftalmologista
nem oculista
têm maneira de resolver);

de microscópio, de telescópio, do miradouro…

é limpar a ramela
(se caso pôr rímel)
olhar com cautela
o que admirar
que se saiba olhar
e se aprenda a ler

que não seja nunca
   o mau olhado
   o pobre modo
   de não ver

22.2.21


intimidade

intimidade

olho aquela exacta criatura
humana
ali parada
e vejo que olha
numa certa
direcção 

reparo que tem um corpo
igual ao meu
olhos  pernas   boca
e cabelo solto 

indiferente ao género
sigo-lhe o  olhar
e vou com ele
 

 minucioso
alcanço o objecto
que observa 

fixo-me  no seu alvo
mas sou proibido de atingir
o fundo do que vê 

não me é permitido
viajar ao interior
daquele pensamento
(e sei que é lá que moram
as fotos e as sensações
de arrepio e calma
recolhidas por aquele olhar)
não me é consentido aceder
aos voluptuosos segredos
da sua intimidade
silenciosa
privada
plena 

(é verdade que
nunca se tem acesso
à intimidade
silenciosa
privada
plena
de qualquer
humana criatura) 

o deleite mais aceso
ou a mais gélida tortura
não alcançam o nada
que preenche o fundo
da ideia
inexpugnável fortaleza
que só raramente se  revela
em caridosos átomos
de claridade 

consigo distinguir
nítido
o mercado
no destino daquele olhar
        (de qualquer olhar)
mas não lobrigo nele
a substância
dos mistérios 

verduras ou encontros
carinho brando ou fuga
fome ou luz inquieta 

………….. 

voltou-se
e olhou para mim a criatura
humana 

mas não consegui decifrar
o fundo dos ritos 

apenas anotei
o que sem saber já sabia  

que tudo quanto eu vejo
até ao fundo
não vê a criatura que eu vejo
mesmo que eu o queira 

que o íntimo da minha
íntima raiz
é a flor dum segredo
que nenhuma navegação
desvenda
e que nem as minhas palavras nomeiam
porque a ela
inteiramente
não acedem 

resta ao não-entendimento
a confiança sábia
do instinto
a liturgia respeitosa
do silêncio 

e o total repúdio
dos oráculos 

24.01.2021


lábios rubros

lábios rubros

não me importa o tempo que não estás
pois sei que virás
de amor no colo
virás
numa exacta lua
a cavalgar surpresas 

liberdade hás-de chamar-te
e trarás um cetro de alfazema
a aspergir a névoa
e tudo ficará luzidio
como o vidro
de uma ilha mágica
a vibrar nas vozes dos meninos
e na guitarra cigana de paco
e na voz andaluz de federico
cantor maior do vento
e do mistério solto 

e o medo há-de ausentar-se
com vergonha
e medo 

e a cara dos homens feios
há-de ensaiar
sorrisos de pechisbeque
a disfarçar
gravatas descompostas
nas vozes desafinadas
e muito velhas 

e fingirão a grândola
a despertar a troça
do zeca
e o desprezo dos viajantes
que se levam pelas estradas
a caminho

mas quando chegar
- e há-de chegar
a hora dos acertos
as mãos boas hão-de abrir-se
novas
e de novo
cordatas e totais 

e numa festa as mulheres
hão-de vibrar coxas e seios
a desafiar os homens
para as danças 

em esperança fresca
a lua resplandecerá
acesa 

em ampla flor
de lábios rubros

15.01.2021


vem aí...

vem aí...

não será ainda o tempo
das fanfarras

virão talvez serôdias
as cerejas 

serão mais duvidosas
as certezas 

há que ter afinadas
as guitarras 

cavalo peado não trota
no cascalho 

dá-lhe rédea  alumia-lhe
o caminho 

uma côdea  e uma lasca
de toucinho 

acalentam  em estradas
e atalhos 

se é  muito o frio veste
a roupa velha 

da que te vem do tempo
dos reis magos 

mas aos filhos não faltes
com os afagos 

de algodão e linho
e lã de ovelha 

e de ternura nas mãos
plena e clara 

lambuza-te sem temor
do exagero 

perfuma a cama e a açorda
com o (melhor) tempero 

para a vida que aí vem
e que é tão cara  

29.12.2020

  

 

 

 

 

    

põe coentros no ovo
que o perfuma

    

 

 

- planta mais verduras 

-  


romance do negacionismo

romance do negacionismo

há um che bar em pristina
em sagres um
dromedário
e do algarve aos balcãs
a lonjura é um calvário 

como é que o che da argentina
corrido tanto fadário
foi abancar no kosovo
e como é que sagres tem
sem deserto um dromedário

    (mas porquê este paleio
     e a que propósito vem...) 

isto anda é tudo ligado
e o
big brother comanda
o preço do javali
digo eu que sou
vegan
inda que não praticante 

o trump fede a bedum
e a bochechos de lixívia
para alourar a melena
e não desampara a loja 

o bolsonaro arrota
a hidroxicloroquina
e o pantanal soluça
um  tormento  desalmado
pelo inferno da indiferença
 

e em vagas de estupidez
o negacionismo ataca
à bruta no
facebook
no twitter no instagram
e ameaça com o inferno
quem se atreva a inocular
a vacina salvadora 

as coisas que eles inventam
para distraído me porem 

    antes a poliomielite!
diz a crendice assassina
    antes a tuberculose
    o tétano e o sarampo
    que a ciência estudiosa
    antes a fé que a ciência!
    mais do que a fé a f
ézada!  

razão tinha-a o meu pai
    – quem não sabe não inventa
    cale o bico engula o
chip
    e arrume-o no intestino
    e vá cagá-lo para longe 

vacina  contra o fascismo
é que havia de espalhar-se
com um toque de raticida
e gel das unhas dourado
a disfarçar o embrulho 

a estupidez é velhaca
e ameaça cruzes! credo!
que me vão cravar o
chip
à boleia da vacina
para se saber onde páro
a qualquer hora do dia 

então tim-tim por tim-tim
o
big brother verá
a que exacto minuto
me alivio de apertos
em que me ache aflito
e pobre de mim também
a que carinhos me aninho
se tenho quem de mim cuide 

mas a quem há-de interessar
que em segredo e gozo pleno
eu lance peidos às ventas
da crendice enlameada
pelo vírus da estupidez

vão lá sujar o inferno!
vade retro lá para trás! 

10.12.2020


feminina, a paz

feminina, a paz

quando as mulheres forem
lei e mando
haverá paz 

não é da natureza feminina
a brusquidão
do sangue solto
e da rouquidão
de ferragens
a semear veneno
ou da nuvem electrónica
a eapalhar o nada
longe 

há uma fragrância
feminil
incompatível
com o vazio estético
da morte violenta
e bruta 

há uma estética que
acompanha e comanda
a condição de fêmea
- amante e amada e mãe -
que domina o riso e a sombra
o contraste e a certeza
e que sabe a hora
e o tempo certo
de tudo 

da mama
da fervura
do sexo
do sono 

suave estética
que impõe uma  ética
a vir do fundo do sangue
e dos nervos
e dos poros
e dos pelos
e da pele 

que não tolera
a sujidade
o fedor
o ruído
a lama
a dor 

só as mulheres conhecem
o complexo preço da tortura
os inexcedíveis  píncaros  do gozo
a persistente saudade dos afectos
as horas do cuidado e do carinho 

deveriam pois ser as mulheres
as guardiãs da paz 

será bom
quando o forem

5.11.2020


burocracia

burocracia

o regula-
mento
regula
o tempo
ralenta
o com-
passo
e trava
o passo
e peia
o anda-
mento
 
a
o regulamento
não urge
a urgência
que mora
fora
da hora
da ordem do dia
 
que é uma tia
fardada
muito arrumada
na hora do chá
sempre pronto
às cinco em ponto
   claro está!
 
burocrática
muito estática
paquidérmica
de banha
descaída
de bainha
descosida
e decreto
exacto
à dependura
é mestra na tortura
da desenvoltura
            criativa
 
pois não era o que faltava?
- um si bemol menor
sem despacho
superior?
- sabe o que eu acho?
acho que o senhor
saxofone tenor
devia era solfejar
melhor
neste preciso
momento
o procedimento
administrativo
que é taxativo
na proibição
ão, ão, ão
do improviso
 
fica o aviso:
é proibida a surpresa!
 
não reza
em parte alguma
que o ministério assuma
a andaluza cintura
de esbelta desenvoltura
capaz de um súbito passo
que acenda o sidério espaço
e enxote a monotonia
da ordem do dia
 
a maldita
burocracia
essa aventesma
é gastrópode
e hermafrodita
tal qual a lesma
 
e não copula
 
mas inocula
na sociedade
a insensibil
-idade
e a superficial
-idade
e a imobil
-idade
que nos fode
 
e pode?
 
pois pode.

11.10.2020


manifesto II

manifesto II

daqui deste pedestal
vou cantar-vos um romance
de mor largueza e alcance
que a navegação do gama 

é um jogo de aventuras
ponto a ponto renovado 

fala de passos e gestos
e de gente e de ladeiras
e da senhora de fátima
poisada nas açoteias
a acenar ladaínhas 

e vos declaro o intento
de ir de fio a pavio
pela seda e pela lama
pelo embalo da ideia
pelo ermo de qualquer estrada
pelo mistério que ateia
a luz que alumia o nada
que entope a consciência 

e nessa longe distância
vou falar-vos da epopeia
do pranto heroico da fome;
e da poesia ausente
do sofrimento dos ermos
e da peçonha do medo;
e da insónia do deserto
de veneno metralhado;
e também da grã bravura
branca flor de resistência
a pontuar os caminhos
onde mora a ignomínia;
e mais do gozo da pele     

na doçura dos sentidos
sorriso de liberdade
à tona do pensamento. 

tremei de desassossego
e subireis encantados
té aos altos delirantes
que nem a magia alcança 

se os olhos tiverdes cegos
libertai músculo e nervos
dai-me a vossa companhia
vinde em leveza de nuvem
nesta viagem sem termo 

e na rota sinuosa
pois que o olhar se liberte
e a vista ao largo se estenda 

não vos deixo ao desamparo 

havemos de ter à proa
o archote da poesia
que à poesia estou sujeito 

é um fado é o meu fado
tomai-o por manifesto
tal e qual me é imposto
e por gosto ou contra-gosto
mandamento e catecismo
té pelas pedras embalo
refém que sou do consolo
da melodia dos sonhos 

eleita e aclamada
na alvorada da surpresa
a poesia é proclamada
fada maior dos caminhos
que chora e veste de azul
que ri e sangra novelos
que de morte são por vezes
mas sempre de amor a rodos;
que flutua no orvalho
dos segredos descobertos
e em camadas desfiados
por pontes e por veredas
do caminho que alumia;
que rente aos canaviais
com raízes na ideia
nos conduz até ao cume
aonde a verdade habita: 

e pela  qual vale pena
a viagem a labuta
 

27.8.2020


soneto

o meu lugar

não me anima a intriga, faz-me azia
e a clubes de fãs não sou atreito
eu em grupos de moda não me ajeito
faz-me o verniz das unhas alergia

aquilo por que tenho simpatia
mora sossegadinho aqui no peito
com cantigas e abraços bem ao jeito
da vida com verdade e poesia

é tanto o brilharete, a lantejoula
tanto salamaleque afiambrado
e tão farta a finesse decantada

que eu quero escapulir-me a tal gaiola

no espaço dos amigos do meu lado
está sempre a minha porta escancarada

3.6.2020


poemas da pandemia

poemas da pandemia - IV

hoje dei por mim a pensar desertos
(por causa da sofia costa)
e fiquei feliz
o que é esquisito nesta modorra
cinzenta e insalubre

acontece que
a geografia perfeita dos desertos
é uma exactidão de hora e de lugar
uma disciplina do silêncio
integral e puro

e por isso são respeitáveis
os desertos
por isso e pela grandeza calma
o recolhimento de templo
a veneração saboreada
da lentidão
sensual e sábia

a sabedoria
é uma arquitetura
demorada e segura
e é na  leveza da demora
que se aprimoram
a edificação dos sonhos
a cozinha e o amor

na calma vénia dos sabores

esta pausada inquietação
desperta
uma poesia serena

mas aqui o deserto não é real
aqui há pessoas
e aqui faltam as pessoas

nesta paisagem calada
os pombos 

e as ervas à solta no quintal
são a liberdade visível
e desobediente
às leis condicionais

indiferentes as ervas
às gavetas do articulado

entretanto  às sete e meia da manhã
há um só homem
no largo do mercado
aqui onde não é deserto

estranha felicidade esta
que me chegou
com o pensamento nos desertos
(por culpa da sofia costa)

aguardo
urgentes enxurradas de riso
à solta

19.3.2020


poemas da pandemia - III

este nevoeiro
com fantasmas e mistério feio
empurra-me para o campo
não para o meu campo
que já não tenho
nem há
mas para o campo grande e só
que avisto
do terraço das esquivas

é certo que no campo
não mora o veneno
das estirpes
e se pode saborear o brilho do silêncio
sem discursos e estatística

mas não tem meninos
o campo
nem a algazarra fresca
das corridas
com arranhões no joelho
e mães a embalar
o choro que apetece

mas pode ser que o nevoeiro de veneno
que escorraça a ternura
e o petisco
me venha a devolver o campo
o meu campo
do tempo
com tempo
e com amoras
e mistérios
e sustos
e com o pai a morar nos abrigos

pode ser…

18.3.2020


poemas da pandemia - II

 morrer é uma variável
que não auguro
mesmo que de fartura gulosa
ou amor pleno e vário
 

tenho mais o que cozinhar
e esculpir
enquanto visto de música os sonhos
e observo
a florescência juvenil
e esfusiante
do desfiar das madrugadas
uma a uma

 houve um tempo em que
morrer
foi uma ideia sedutora
como as paixões vorazes
o inverso de uma escalada
a vencer a fera guerra
pela brandura da paz
toda 

mas essa morte morreu
de ausência
e novidade

e aqui estamos
vivos
sem a morte ao postigo dos radares
e com projectos
de lágrimas e riso
caldeiradas e vinho
homens  mulheres
e meninos
música e poesia
mãos carícia e raiva 

assim estando
morrer de uma qualquer
epidemia
é uma carneirada
sem classe
nem elegância 

um anonimato
enfadonho
que rejeito 

16.3.2020


pandemia

e o medo voou ondas de vazio
sobre o oráculo dos druidas
com bruxas e astrólogos
e brutos e cartomantes

embotaram os neurónios
da temerosa urbe
e nem o rosado
da coroa exposta
coroou de lucidez
a boçalidade
cinzenta
volúvel e tola

voaram as palavras
e o veneno
alertou os pássaros
e açaimou o canto

os meninos
passaram a rir de longe
como guizos de coleira
em névoa encoberta
e os amigos
algemaram
abraços de pudor
e os amantes
emigraram
segredos de frio

todavia
havia
homens gordos
a permanecerem gordos
e brilhantes
a pairarem como harpias
sobre o frio esquelético
dos vagabundos
da distância velha

e alarves
a rirem dentes podres

e ministros
a exibirem odores
de distinção
e a maquilhagem
emplumada
da tranquilidade
loira e fria

loira e fria
e nula

cancelados foram
os jogos e as festas
e as revoluções
   as sexuais
   e as demais
   menos urgentes
e proibidas foram
as novidades
porque novas
e azuis
de água fresca

a doença
fechou o céu
e ensandeceu
de susto

e os olhos
escancarados
na expectativa
das lágrimas a vir

só a poesia
que morava na ciência
acendia luas
no caminho novo

que havia de abrir-se

10.3.2020


despertar

despertar

depois do longo sono
e da apatia doce
chegou o espanto feio
de carvão e aço
a desvendar o medo

e revelou-se um inferno
que do céu não vinha
parido pela cloaca

da ganância
fétido dos bolores
e do veneno
cinza

então acordaste
para o verde
que esmorecia triste
e vestiste
as rendas de bilros
da avó
que velava desde o longe
e recolheste o azul
da madrugada antiga
e amassaste o pão
cheiroso e fresco
e despertaste
para os guizos
com o melro
e a erva
e os ovos loiros
da satisfação clara

então
esvaziaste os bolsos
da roupa nova
de que não tinhas falta
e atravessaste a rua
devagar
a caminho das contas claras
e do sossego da descoberta
que sorri e assobia
com as crianças todas
e os animais
que nadam
e voam
e caminham
e se movem
como as ideias
e o olhar

então
bebeste um vinho feliz
e foste novo

assim serás


26.1.2020


sabedoria

sabedoria

sei dos treze biliões
e meio
de anos do universo
dos quatro biliões
e meio
de tempo da nossa terra

sei da magia genética
e do código às bolinhas
que põe o azul nos olhos
ou o preto nos cabelos

sei de classes
e famílias
dos animais e das nossas
e das plantas
e das aves
e mais dos outros bichinhos
e duns tantos bicharocos
que vagam
voam
vagueiam
tontos
de tanto
labor

sei de modos e balanços
de modulações tonais
de paletas e esquadrias
de regras e temporais
de revoluções perdidas
de maldades infernais
de mares e condimentos
óvulos e embriões
do vai-vem das estações
de parténons e sinais
de tábuas que ditam ordens
que ninguém respeita mais

sei de molhos e mezinhas
de tizanas e de vinho
sei de mozart e camões
de tropeços no caminho
sei de quixote e ghandi
de males de amor sei demais
filosofias viagens
dulcineias imortais

de risos sei e de sonhos
e da essência da espera
do mistério dos amigos
do sabor a primavera

não sei contudo a ciência
que conduz à alquimia
ao ouro desta incerteza
que apenas balbucia
o fio da inteligência
que saboreia o saber
que está na tranquilidade

sei de prodígios celestes
sei os desastres humanos

mas em resumo e verdade
não sei demais sei de menos

30.12.2019


romance IV (da ria formosa)

romance IV
(da ria formosa)

leve e formosa é a ria
morada de pão e água
e homens sal e marisco
no bailado das marés
cujas se elevam no embalo
das medusas que esbeltas
coram vergonhas à vista
do hippocampus guttulatus
cavalo marinho chamado
altivo como um solista
em ondulante bailado
na transparente humidade

e tantos que a ria tinha
e que agora já não tem
pois que da china a crendice
de ressuscitar firmezas
e saudosas competências
da endocrinologia
fez voar redes furtivas
e pelo espanto embarcou
o peixe da extravagância
rumo à insana tolice

e o hippocampo abalado
fez-se deserto na ria

certo é que rara santola
e alguma ameijoa boa
inda por ali passeiam
com lingueirões e douradas
pequeninas dos viveiros
mas o berbigão a monte
que em tempos foi tapete
de areias que mal se viam
debaixo da tal fartura
já não se pisa na borda
da laguna espoliada
da população que tinha

pois que até a holotúria
pepino do mar chamada
que não tinha serventia
na petisqueira de amigos
é rapinada pela névoa
e pela sombra é levada
a ser manjar do japão
servida em prata lavrada

pobre ria transvestida
em estaleiro e vazadouro
que a navegar-lhe saudades
‘inda tem gente teimosa
que semeia amor na água
espelho que não se acanha
de brilhar a correnteza

ninfa é a ria formosa
tão de mágoa e de beleza
de esperança tão sequiosa

11.11.2018
















e holotúrias roliças


asmática papelada


romance III (peregrinar a miséria)
Afonso Dias

romance III
(peregrinar a miséria)

folhas secas pó de pedra
sombra imensa do passado
salpicado de esqueletos
com muita cruz e crescente
a arrastar romarias
à rés do arame farpado

como rosário de enguias
na correnteza do mar
de sargaço sempre longe
enxurradas de mulheres
em febril sonambulismo
com meninos e meninas
desabridos de fadiga
e homens cor de tristeza
peregrinam em demanda
do verde azul dum destino
tão promessa e incerteza
tão miragem de milagre
que mal se sabe se há

vêm do longe mais ermo
que há na rosa dos ventos
dos dois pontos cardeais
feitos de pedra e metralha
fome a rodos medo e sangue
vêm do sul e do leste
onde o inferno parece
ter instalado as lixeiras
da imundície mais podre
de que a maldade é capaz

são rios de gente e brilho
nos olhos que avistam seda
e portas escancaradas
de braços brancos à espera

mas só rouquidão fardada
e muralhas de indiferença
acham à porta do céu
fechada a sete trancas
e onde a humanidade
                   se escondeu

4.11.2018


romance II (medo)
Afonso Dias

romance II
(medo)

é o sábio desconforto
a habitar a honestidade
que nos dá a conhecer
as gerberas que florescem
naquele minuto preciso
que arde em deslumbramento
e abre as janelas do espanto
onde esvoaça a verdade  

não há areia que enrede
os pés que  fazem caminho
nem lama que não se faça
calçada a mais portuguesa
quando a vontade de andar
prensa o cascalho mais rude
e não assoma a virtude
na lágrima impertinente
que puxa pelas arrecuas 

o medo essa mula velha
é uma companhia brava
de tão translúcidas manhas
que ‘inda a ver-se através dela
e da névoa que a estrutura
só parede se vislumbra
de rocha negra e tão dura
que escopro algum a melindra
tão fera é e medonha 

no cerne do pesadelo
o coração da peçonha 

afinal passada a nuvem
fenece a sombra   e a luz
floresce no pensamento 

e o pavor que no tempo
de facas e armadilhas
erguia torpes muralhas
desfia por fim as teias
e toca rijas cornetas
no baile da novidade 

e hologramas de pedra
seguem a aragem do vento
e as gerberas florescem
           à vontade


romance I (no mercado)
Afonso Dias

O Romance é uma forma poética construída em versos de sete sílabas métricas - Redondilha Maior - e que, geralmente, conta uma história ou fantasia a partir de situações reais ou imaginadas: júbilos e desgostos amorosos, sorte e azar, aventuras e tormentas, vitórias e fracassos, chacotas e lamentos...
A origem do Romance leva-nos à Idade Média europeia, designadamente a Espanha e a Portugal, onde se impôs nos Séc. XV e XVI e evoluiu até hoje. Foi, em tempos mais remotos, cultivado por Gil Vicente, Camões e muitos outros e, sobretudo, manteve e estendeu raízes na criação popular.
São inúmeros os Romances recolhidos da tradição oral por literatos e académicos desde há séculos. Há um precioso espólio preservado em dezenas de publicações.
No Séc. XX muitos foram os poetas que mantiveram o Romance nas suas escrituras: Lorca, Gedeão, Ary, Cecília Meireles, são exemplos disso.

Tal corrente ainda não foi quebrada. Quer por escritores de poesia, que por repentistas populares que continuam a debitar as suas décimas com mote. No Alentejo, no Minho, nas Beiras, nos Açores.

Trago-vos um modesto Romance e, nas próximas edições, seguirei por aqui.

romance I
(no mercado)

o filho está em bordéus
a filha nem sabe aonde
e ele bebe vinho rasca
aos loros pelo mercado 

“se fosse surrealista
era picasso” decerto
e dá num passo de dança
uma pincelada heróica
nas meninas d’avignon 

“dê licença que me sente
que o mar anda marafado
à reboleta na escada
e o vento lá fora é bruto
gelado como uma bruxa
com aranhas no vestido
e até a chuva é azul
azul azul como o gelo
que nos olhos da maldade
é um bisturi desabrido
que fere o que está ferido 

agora que vou para velho
e a cinza do cabelo
não brilha com o sol de lado
cá dentro liberto um fado
e a madrugada adormece
no colo do esquecimento 

fique sabendo o amigo
sem vinho não aguento
e o dia grande é castigo
vale sem fundo ou abrigo
maior do que longe e  tempo 

não se esqueça do que digo” 

não me esqueço meu amigo 

1.11.2018

* imagem: detalhe de Les Demoiselles d'Avignon (1907) de Pablo Picasso


egipto
Afonso Dias

estive no Egipto, gostei e trouxe isto:
egipto

na rota do cairo
só os camelos passam
pelo cu benzido da agulha
e arrastam a cinza do deserto
rumo a mais deserto
e a mais cinza
todavia
adivinha-se um fogo
na moleza da cáfila

e é perfeita a luz

devoto mahmadou
muçulmano bom
amigo farto
erguido em poucos dias
doou-me o sorriso
mais limpo que se pode

e há uma infusão de menta
a santificar o entendimento

esgotada a pedincha
o preço é revelado
e a perfeita serenidade
releva longínquas
reverências
a navegar
secura

sobre os egípcios
empilham-se
gigantescas
as sombras
de pedra
de submissão
e de martírio
com vales de reis
e pirâmides
em mágica
maravilhosa
e absurda criação

uma massa de
anos e anos
e séculos
e mortos
e ossos
e mortos
mais ossos
mais pedras
e sangue
e mais pó
e oásis
que só há
muito longe
e não se pode

quanta dor
transportou
nefertiti
e Cleópatra
até ao folclore
nas margens do corão
com mar vermelho
wind surf
e bikini
que as mulheres dali
mal ousam

e muitas são
as mulheres que recolhem
trejeitos e sorrisos
nas vestes de noite
e menoridade
litúrgica e sombria

- apenas se adivinha um vislumbre
de lágrimas -

divido-me entre
a beleza
plena e sublime
e o mar
vermelho de dor
daquele deserto infindo

e ali à beira
a palestina
de lágrimas acesas
a arábia de petróleo
meca
e esperança inerte
a síria sempre mártir
em mar vermelho
de sangue
navegada

e israel a pairar
sob o “céu cinzento”
da american navy
sempre em riste

o sorriso limpo
de mahmadou
   de doçura tanta
é esperança pouca
que ele merecia ter
muita

e que eu não trouxe

porque não havia

21.7.2019


poesia aos molhos
Afonso Dias

“A propósito de certos meios que só aceitam uma poesia muito etérea, distante, metafísica. Com pessoas e ralações sociais é que nunca.”

poesia aos molhos

caríssimas caríssimos
sigamos pelo bom caminho

regurgitemos eructemos
uma poesia de etiqueta
sossegadinha quieta
comportada no cantinho
da poesia delicada
com’ássim delicodoce

mimozinha e arrumada
de bochechinha espremida
por dois dedos ternurentos
e beijinhos gordurosos
dos que se dão aos rebentos
amorosos

não queremos dona urraca
deixar que as ralações
- as sociais qué’dizer -
nos infectem a poesia
- a que já pegou de estaca
nas tertúlias preciosas -
deixemo-la arredada
da carne mal amanhada
e com bactérias manhosas

já não sei quem foi que disse
que as rosas senhor as rosas
as do colo da rainha
e o amor aos molhinhos
choroso e com rodriguinhos
é que se devem cantar
e mais as cogitações
matafísicas e tal
quem sou eu para duvidar
de tão sábia indiferença
afinal

então com vossa licença
venho já: vou só bolsar

4.6.2019

inventário
Afonso Dias

inventário

cada vez menos objectos
ocupam o meu espaço

livros discos roupas pesadelos sapatos
insónias contas e adornos
fazem-me pouca falta
quase nenhuma

mas é claro
continuam por cá
cordas de viola
poesia em papéis
asseio pleno
mozart e zeca
paul simon e brel

e também
whitman e pessoa
camões e sophia
e demais cúmplices
da quimera feliz
e cósmica

e é claro
o meu prezado estendal de
silêncios
memórias
café
propósitos heróicos
ternura
amigos
angústias boas
vinho do douro
coentros
e azeite transmontano

e
mais intimamente
o meu acervo
de crianças
pequenas e grandes
belas
como todos os meninos
e muitas
como o elenco dos sonhos

11.5.2019